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Maria do Céu Gomes
Maria do Céu Gomes
Professora
A Reconfiguração Política da Educação de Surdos
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Publicado em 2011
Revista Indagatio Didactica, 3(1), 109-125
Maria do Céu Gomes
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Resumo

Nas últimas décadas, a Federação Mundial de Surdos e a União Europeia de Surdos têm lutado por uma nova perspetiva da surdez e por uma educação bilingue para os alunos surdos. No seio do Conselho da Europa, tais reivindicações têm-se traduzido em diversas orientações do Parlamento Europeu para os seus Estados membros. Apesar das reivindicações terem por base uma perspetiva cultural, o que se constata é que as políticas para a surdez e para a educação de surdos continuam a surgir enquadradas dentro de planos de ação para as pessoas com deficiência. Em Portugal, a situação é semelhante. A educação de surdos continua enquadrada dentro do âmbito da Educação Especial. Dentro deste contexto, a legislação recente tem vindo a reconhecer a importância de uma educação bilingue, tendo sido publicado em 2008 o Programa Curricular de Língua Gestual Portuguesa. Torna-se necessário, no entanto, garantir que a criação desta nova área curricular se traduza num reconhecimento desta língua como marcador cultural da comunidade surda e não apenas como um meio facilitador de comunicação entre os seus membros.

Introdução

O estudo apresentado neste artigo centra-se na análise das políticas para a educação de surdos no Conselho da Europa, com especial ênfase para Portugal, um dos seus países membros. A intenção é mapear as políticas da educação de surdos, através da análise de vários contextos (influência, produção de texto e prática). É usado como referencial analítico o “ciclo de políticas” de Stephen Ball (1992; 1994). Esta abordagem destaca a natureza complexa e controversa das políticas educacionais, articulando os processos macro e micro na análise desenvolvida. Paulston (2001) considera que mapear a educação é promover uma forma de ver o mundo e influenciar a visão do mundo de outros grupos. É também uma forma de produzir intertextualidade entre discursos que concorrem entre si, mostrando que todo o conhecimento é relativo a um espaço que é cada vez mais definido como um espaço mundial.

Mobilizamos para este artigo a análise de algumas orientações e resoluções do Parlamento Europeu (contexto de influência), diplomas legais de âmbito nacional (contexto de produção de texto), bem como dados recolhidos de três entrevistas semiestruturadas. A entrevistada A é representante da Comunidade Surda e participou no contexto de produção de texto, enquanto elemento das equipas do Ministério da Educação. Os entrevistados B e C pertencem ao contexto da prática. São coordenadores de Escolas de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos (EREBAS).

O trabalho de investigação aqui apresentado insere-se no âmbito de uma tese de doutoramento em Ciências da Educação. Partimos de uma breve contextualização teórica para a explicitação da metodologia seguida no estudo, analisando seguidamente alguns dos resultados obtidos.

Contextualização Teórica

O pensamento moderno encarava o processo de inclusão social como uma forma de erradicação das diferenças. Os cidadãos de um determinado Estado-nação eram aqueles que se incluíam dentro das suas fronteiras e não importavam as características heterogéneas de cada um. O que importava era o que se assumia como comum a todos, nomeadamente a língua e a cultura (Stoer & Magalhães, 2005). Dentro desta perspetiva, que Anderson (1983) designava de “comunidade imaginada”, o discurso político tentava promover a ideia de que todos tinham os mesmos interesses e as mesmas necessidades enquanto cidadãos.

O pensamento pós-moderno veio assumir uma nova perspetiva, uma nova ontologia social e, com ela, a forma como as relações sociais, os grupos e os indivíduos eram, enquanto tal, legitimados, começou gradualmente a mudar. Reconheceu-se que o corpo social não é um todo homogéneo, daí o repensar do conceito de cidadania com base em projetos de identidade (Stoer & Magalhães, 2005), não mais a identidade atribuída, mas a identidade reclamada a partir daquilo que os indivíduos tinham de diferente – o género, a opção sexual, a língua e a etnia (Giddens, 1992).

Nesse sentido, o modelo ocidental começou a ser questionado por vários atores sociais. Não só pelos indivíduos, grupos e comunidades “outros” a quem este modelo recusava o papel e a ação enquanto sujeitos das suas próprias escolhas, mas também por diversos intelectuais que o começaram a pôr em causa enquanto forma de organização política, civilizacional e cultural (Stoer & Magalhães, 2005).

Assim, foram muitos os grupos minoritários que, a partir dos anos 1960, começaram a reivindicar um novo estatuto e um novo olhar. Não queriam continuar a ser encarados como grupos portadores de subculturas e/ou línguas inferiores. Cada um queria ser reconhecido na sua diferença.

As comunidades surdas também passaram por este processo. Os diversos estudos realizados no âmbito da língua gestual a partir dos anos 1960 (Stokoe, 1960; Klima & Bellugi, 1979) ajudaram à emergência de uma nova visão sobre a surdez. A visão médica que sempre tinha predominado “concebia a surdez como uma deficiência auditiva” (Afonso, 2008, p.5). Com o novo estatuto atribuído à língua gestual, essa especificidade passa a ser encarada por alguns atores como uma diferença cultural, surgindo o paradigma sócio-antropológico da surdez.

Skliar (1997) considera que esta nova visão se traduz pelos sentimentos de identidade grupal, o autorreconhecimento e identificação como Surdo, pelos casamentos endogâmicos e pela utilização comum de uma língua. Segundo este autor, passa a existir um projeto Surdo da surdez. A língua gestual “anula a deficiência e permite que os Surdos constituam (…) uma comunidade linguística e minoritária diferente e não um desvio da normalidade” (Skliar, 1997, p.144).

A luta das comunidades surdas começa a desenvolver-se no seio de movimentos associativos que vão crescendo e assumindo um caráter transnacional. A Federação Mundial de Surdos (World Federation of the Deaf) é fundada em Roma, em 1951, durante o 1.º Congresso Mundial de Surdos. Esta organização não-governamental, composta por associações/ federações nacionais de surdos de todo o mundo, constitui-se com o propósito de lutar pelos direitos dos surdos, nomeadamente pelo direito de acesso à informação e à educação através da sua primeira língua, a língua gestual (Carvalho, 2007). A União Europeia de Surdos (European Union of the Deaf) é fundada em 1985 e representa os interesses dos surdos ao nível da União Europeia. O seu principal objetivo é estabelecer e manter o diálogo entre o mundo ouvinte e as associações nacionais de surdos, de modo a que possa ser melhorada a qualidade de vida das pessoas surdas.

Na sociedade atual, a identidade de projeto origina-se a partir da resistência comunal e dos sujeitos transformacionais que dela fazem parte (Castells, 2003). A transformação social parece assumir uma dinâmica de baixo para cima. A identidade de projeto nasce da identidade de resistência. Geralmente, há uma comunidade que agrupa os que se sentem excluídos e estigmatizados e é a partir daí que se geram as reivindicações e as lutas. Inicialmente, estas comunidades constituem-se enquanto identidades defensivas, funcionando como forma de proteção contra um mundo exterior hostil. São “organizadas em torno de um conjunto específico de valores cujo significado e uso compartilhado são marcados por códigos específicos de autoidentificação” (Castells, 2003, p. 79). As comunidades surdas são um exemplo deste tipo de comunidades. Não são apenas defensivas, mas também de resistência e de projeto. Protegem e dão voz aos seus membros. A sua maior luta é o reconhecimento da língua gestual, não apenas na legislação, mas também nas práticas educativas e sociais (Gomes, 2010).

Por “comunidade surda”, entende-se um conjunto de pessoas não ouvintes que procuram autodemarcar-se de outras formações sociais, garantindo a coesão grupal e uma identidade sociocultural. Não têm necessariamente que habitar o mesmo país ou estar vinculadas ao mesmo Estado (Guerra, 2005), daí o caráter transnacional da sua história. Todos passam pelas mesmas experiências e todos comungam de uma língua de raiz comum – o gesto. As vivências, as lutas e as reivindicações desta população têm sido semelhantes em quase todo o mundo. É por isso que Guerra (2005) usa a designação de “Povo Surdo”, um termo que remete para uma deslocalização territorial e coloca a tónica da surdez em termos de diferença cultural.

Metodologia

Neste estudo, optámos por uma metodologia qualitativa e interpretativa, tendo procedido à análise de conteúdo de documentos e de entrevistas. Segundo Fernandes (1991), os métodos qualitativos são uma alternativa às limitações impostas pela investigação de caráter quantitativo, na medida em que abrem possibilidades de gerar boas hipóteses de investigação, devido ao facto de se utilizarem técnicas como entrevistas profundas, observações minuciosas e análise de produção escrita.

O nosso trabalho empírico debruça-se sobre vários contextos, seguindo o referencial analítico do “ciclo de políticas” de Stephen Ball (1992; 1994). Esta abordagem permite-nos fazer uma análise crítica da trajetória de programas e políticas educacionais desde a sua formulação inicial até à sua implementação no contexto da prática. De acordo com esse referencial, a nossa pesquisa documental incidiu sobre orientações internacionais do Parlamento Europeu (contexto de influência) e legislação produzida a nível nacional (contexto da produção de texto). Neste segundo contexto, recorremos ainda à entrevista semiestruturada enquanto técnica auxiliar de recolha de dados, entendendo-a como prática discursiva, ou seja, “como ação (interação) situada e contextualizada, por meio da qual se produzem sentidos e se constroem versões da realidade” (Pinheiro, 2000, p.186). Uma vez que o objetivo deste trabalho não é a obtenção de generalizações de cariz quantitativo, mas sim buscar sentidos explicativos, a utilização da técnica da entrevista assumiu-se como o meio mais adequado.

Realizámos entrevistas semiestruturadas a representantes da comunidade surda que participaram nas equipas que elaboraram os diplomas legais relacionados com a educação de surdos, de modo a tentar compreender a forma como decorreu o processo negocial com o Ministério da Educação. Relativamente ao contexto da prática, entrevistamos alguns professores com funções de coordenação no Departamento de Educação Especial em Escolas de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos. O nosso objetivo foi conhecer as diferentes leituras e interpretações relativamente à legislação e a forma como esta tem sido implementada nas referidas escolas.

Usamos a análise documental e a análise de conteúdo enquanto técnicas de tratamento de informação do material empírico recolhido. Os procedimentos utilizados no trabalho de análise de conteúdo estão diretamente relacionados e, portanto, dependentes de fatores inerentes ao processo de pesquisa como os discursos a analisar, o estatuto destes na investigação e a identificação das categorias definidas para análise (Quivy & Campenhoudt, 2003; Strauss & Corbin, 2009). Importa referir que o processo de categorização foi feito com recurso a processos dedutivos e indutivos, isto é, algumas das categorias foram estabelecidas a priori e outras foram surgindo ao longo do processo, em resultado, quer da leitura de bibliografia diversa quer da análise das entrevistas. Recorremos à análise documental, com o objetivo de complementar a informação obtida. Esta análise pode ser definida como “uma operação ou um conjunto de operações visando representar o conteúdo de um documento sob a forma diferente da original, a fim de facilitar, num estado ulterior, a sua consulta e referenciação” (Bardin, 2008, p.47). Não poderíamos falar de políticas da educação de surdos sem nos debruçarmos sobre os pareceres, recomendações, relatórios, leis e decretos-lei que traduzem essas mesmas políticas. A análise destes documentos visa o acesso a informação pertinente e é crucial para a compreensão de todo o processo político e dos vários contextos que o enformam.

Resultados

Da análise do nosso corpus documental, verificámos que, em decorrência dos esforços da Federação Mundial de Surdos (WFD) e da União Europeia de Surdos (EUD), o Parlamento Europeu (PE) começou nos anos 1980 a debruçar-se sobre a questão do reconhecimento das línguas gestuais na Europa, uma questão colocada a este órgão em termos de direitos humanos. Do diálogo com as comunidades surdas resultaram várias orientações e recomendações tanto para o Conselho da Europa, como para os seus Estados membros.

A primeira resolução (Documento A2-302/87, de 1988) invoca inúmeras razões para o reconhecimento das línguas gestuais, nomeadamente:

  1. A existência de cerca de meio milhão de surdos profundos na União Europeia;
  2. O facto de a maioria nunca poder vir a ser proficiente na língua falada;
  3. A existência de estudos que mostram que a língua gestual é uma língua genuína, com uma gramática própria e a língua natural das comunidades surdas.

Através deste documento, o PE mostra que é sensível às reivindicações do movimento associativo surdo e aos estudos desenvolvidos sobre a língua gestual e a surdez. Exprime a intenção de favorecer a integração dos surdos no mundo ouvinte, nos termos considerados justos para esta população. Neste sentido, pede ao Comité para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência (CD-P-RR), a redação de uma proposta para o Conselho da Europa, com vista ao reconhecimento das línguas gestuais nos Estados membros. Através deste documento, o PE apela a uma política material (Rizvi & Lingard, 2010) por parte do Conselho da Europa e seus Estados membros, de apoio às comunidades surdas. O PE não se limita a pedir um reconhecimento simbólico das línguas gestuais, mas defende a necessidade de financiamento de vários serviços e projetos, nomeadamente de formação, emprego e investigação. Este documento lembra ainda que é crucial envolver os surdos nas políticas que lhes dizem diretamente respeito, seja a nível nacional ou a nível da União Europeia.

Passados dez anos, o PE emite uma nova resolução (Doc C187), reiterando os princípios do documento anterior. A resolução de 1998 surge devido a pressões da União Europeia de Surdos, que considerava não estarem a ser seguidas muitas das orientações anteriores. Não estavam a ser implementadas no seio dos Estados Membros políticas materiais e redistributivas que permitissem a obtenção de resultados concretos.

No dia 23 de janeiro de 2001, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa adota a Recomendação 1492 sobre os Direitos das Minorias Nacionais (Timmermans, 2005). No parágrafo 12.xiii deste documento, esta instância recomenda que o Comité de Ministros dê às línguas gestuais existentes na Europa uma proteção similar àquela que está prevista na Carta Europeia para as Línguas Minoritárias ou Regionais, através da elaboração de uma recomendação para os Estados membros. Este documento é analisado pelo Comité de Ministros no dia 15 de fevereiro de 2001, o qual decide endereçá-lo para vários órgãos no sentido de obter os seus pareceres. Destacamos o parecer do CD-P-RR (2001), segundo o qual as línguas gestuais podem, em princípio, ser encaradas enquanto línguas não territoriais, uma vez que se enquadram no critério definido na Carta Europeia para as Línguas Minoritárias e Regionais (1992):

“Línguas usadas num Estado que diferem da língua ou línguas usadas pelo resto da população, mas que, embora sejam tradicionalmente usadas dentro do território do Estado, não se podem identificar com uma determinada região” (Parte I, Artigo 1c., Carta Europeia para as Línguas Minoritárias e Regionais).

No seu parecer, o CD-P-RR considera que os surdos constituem uma minoria linguística e cultural, tendo as comunidades surdas de cada Estado membro uma identidade cultural específica. Nesse sentido, recebe com agrado a Recomendação da Assembleia Parlamentar, considerando que esta constitui um passo substancial para o assegurar dos direitos humanos e da dignidade de todas as pessoas surdas. Recomenda, por isso, que o Conselho da Europa prepare um documento legal para salvaguardar as línguas gestuais e os direitos dos seus utilizadores. Algumas delegações representadas neste comité propõem a elaboração de um protocolo adicional à Carta Europeia para as Línguas Regionais ou Minoritárias (Timmermans, 2005).

O Parecer do Comité para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência é entregue ao Comité de Especialistas da Carta Europeia para as Línguas Regionais ou Minoritárias. Estes consideram, no entanto, que as línguas gestuais não se enquadram na filosofia deste documento. Segundo estes peritos, deveria ser criado um instrumento próprio para as línguas gestuais, dada a especificidade da população surda. Neste parecer, está implícita uma perspetiva médica relativamente aos surdos. É essa a razão porque a proposta não é aceite. Segundo Skliar (1999), é importante que se dê a rutura com este campo epistemológico, caso contrário as questões relacionadas com a surdez nunca irão desenvolver nenhuma profundidade política.

A 1 de abril de 2003, a Assembleia Parlamentar adota a Recomendação 1598 sobre a Proteção das Línguas Gestuais nos Estados Membros do Conselho da Europa. O documento começa por exprimir a preocupação da Assembleia Parlamentar pelo facto do Comité de Ministros não se ter pronunciado nem sobre a opinião do CD-P-RR, nem sobre o parecer do Comité de Especialistas da Carta Europeia para as Línguas Regionais ou Minoritárias (ETS No. 148). Este órgão apela ao Comité de Ministros para considerar as propostas destas instâncias. O que se pretende é a criação de um instrumento legal específico ou um protocolo adicional à Carta Europeia para as Línguas Regionais ou Minoritárias, para proteger os direitos das pessoas surdas. Segundo esta instância, só uma ação a nível europeu pode conduzir à solução dos problemas com que se debate esta população. Este órgão defende a ideia partilhada por alguns autores, nomeadamente por Rizvi & Lingard (2010), de que só uma ação concertada a nível internacional poderá ter efeitos em termos de justiça social para os grupos minoritários. O conceito de justiça social necessita, pois, de ser globalizado e articulado em termos que não remetam para os Estados-nação a única responsabilidade pelas políticas desenvolvidas.

É na Resolução 1598 (2003) que surge pela primeira vez a referência direta à importância do uso da língua gestual na educação de surdos e consequente necessidade de formação de técnicos e docentes. O documento enuncia ainda o direito de escolha dos surdos por uma via oralista ou bilingue.

A 16 de junho de 2004, o Comité de Ministros responde à Resolução 1598, considerando que, de facto, as línguas gestuais merecem especial consideração e proteção. No entanto, este comité considera que a ação do Conselho da Europa deve focar-se mais no acesso aos direitos das pessoas surdas do que propriamente em promover o status das línguas gestuais. Este órgão é de opinião de que, antes de se tomar qualquer decisão face a um possível instrumento de proteção das línguas gestuais, é necessário um estudo sobre as necessidades dos indivíduos surdos. O comité realça a importância de trabalhos de investigação nesta área, os quais podem servir de ponto de partida para a análise das necessidades existentes e desenvolvimento de possíveis linhas de ação.

Aproveitando o impulso dado em 2003 pelo “Ano Europeu das Pessoas com Deficiência”, a Comissão Europeia lança em 2004 um Plano de Ação que cobre várias áreas, nomeadamente o emprego, a educação e as acessibilidades. Esta iniciativa, “Igualdade de Oportunidades para as Pessoas com Deficiência: Plano de Ação Europeu 2004/2010”, teve como objetivo integrar questões ligadas à deficiência nas políticas comunitárias e executar ações concretas em domínios-chave, para uma melhor integração económica e social desta população. Foram vários os Estados membros que implementaram planos de ação nacionais com base neste documento, nomeadamente Portugal com o Plano de Ação para a Integração das Pessoas com Deficiência ou Incapacidade (PAIPDI).

Apesar das reivindicações da Federação Mundial de Surdos e da União Europeia de Surdos serem de ordem antropológica e cultural, as ações encetadas pelo Conselho da Europa e seus Estados membros têm-se enquadrado mais numa perspetiva social, dentro de um quadro de deficiência. Contudo, assiste-se dentro deste contexto ao reconhecimento gradual da importância da língua gestual e a uma aceitação do ensino bilingue enquanto opção. De certa forma, o discurso médico tem vindo a incorporar o discurso bilingue numa articulação intertextual que não deixa de ser estranha, uma vez que os princípios epistemológicos são significativamente diferentes. Segundo Guedes (2009), trata-se de mais uma estratégia de normalização da comunidade surda, através da redução da heterogeneidade cultural surda a uma língua de tradução. Esta autora considera que nos discursos oficiais, a língua gestual surge conotada não como um marcador cultural, mas apenas como um instrumento facilitador de comunicação.

Em Portugal, existe uma situação idêntica. A educação de surdos continua enquadrada dentro da legislação existente para a Educação Especial. O Despacho 7520/98, de 6 de maio, foi o primeiro diploma a reconhecer que o acesso dos alunos surdos à educação deveria ser feito através de processos que possibilitassem uma comunicação direta e sem restrições. Invocando as orientações do PE, bem como a Resolução n.º 48/96 das Nações Unidas (1994) e a Declaração de Salamanca (Unesco, 1994), este documento veio propor que a educação de alunos surdos se iniciasse o mais precocemente possível, sempre em grupos de socialização constituídos por crianças, jovens e adultos que utilizassem a Língua Gestual Portuguesa (LGP). No sentido de assegurar uma resposta educativa que garantisse o desenvolvimento destas orientações, foram criadas as Unidades de Apoio à Educação de Alunos Surdos (UAEAS) em estabelecimentos do ensino básico e secundário. Esta medida foi enquadrada nos apoios educativos previstos pelo Despacho Conjunto 105/97, de 30 de maio. A aplicação do Despacho 7520/98 nos contextos da prática não correspondeu, no entanto, às expectativas nele depositadas. Segundo Afonso (2008), tal deveu-se à indefinição das políticas educativas em geral e da Educação Especial em particular, que conduziram ao adiamento de algumas medidas imprescindíveis. O facto de o Decreto-lei 319/91, de 23 de agosto, ser o diploma com mais peso legal junto das escolas, levou a que muitas ignorassem as orientações do Despacho 7520/98. No Decreto-lei 319/91 não existiam orientações específicas para os alunos surdos, nem em termos de formação de turmas, nem em termos de medidas educativas. As diretrizes eram as mesmas para todos os alunos com necessidades educativas especiais. A comunidade surda portuguesa contestou estas práticas e insistiu na necessidade da revogação do Decreto-lei 319/91. Os representantes desta comunidade pretendiam ter legislação específica para a educação de surdos, mas uma legislação que fosse cumprida pelas escolas e não relegada para segundo plano. Na negociação com o Ministério da Educação, acabaram por ceder ao seu desejo de autonomia em relação à Educação Especial. Disso nos dá conta a entrevistada A, representante da comunidade surda:

“Nós, no início, queríamos que houvesse uma lei só para o ensino bilingue dos surdos. Não achamos que seja um ensino especial, é um ensino diferente. O que tem de ser feito é diferente. Mas a política do Ministério da Educação é incluir os surdos na Educação Especial. Nós achamos que mais vale ter uma lei dentro da Educação Especial que fale do ensino de surdos do que não ter nada” (Entrevistada A).

A comunidade surda portuguesa acabou por aceitar este enquadramento, não por ser o ideal, mas o possível. Por outro lado, ficando as orientações para os alunos surdos inseridas no diploma principal da Educação Especial, existiam mais hipóteses de que passassem a ser cumpridas:

“Se o Ministério da Educação vê os surdos dentro da Educação Especial e vai criar uma lei de âmbito geral, então tem que falar especificamente do ensino de surdos, porque o Decreto-lei 319/91 não falava nada de surdos, estava tudo dentro do mesmo saco. Então, foi melhor que nada. (…) A lei é da Educação Especial, mas depois há o artigo 23, que fala da educação bilingue para alunos surdos. Fala-se especificamente dos surdos” (Entrevistada A).

Ao revogar o Decreto-lei 319/91, o Decreto-lei 3/2008, de 7 de janeiro, passa a contemplar orientações específicas para os surdos. O artigo 23.º propõe uma educação bilingue para estes alunos e defende que a Língua Gestual Portuguesa (LGP) deve fazer parte do seu currículo. Reafirma deste modo as orientações do Despacho 7520/98:

“A educação de crianças e jovens surdos deve ser feita em ambientes bilingues, que possibilitem o domínio da LGP, o domínio do português escrito e, eventualmente falado, competindo à escola contribuir para o crescimento linguístico dos alunos surdos, para a adequação do processo de acesso ao currículo e para a inclusão escolar e social” (Artigo 23.º, Decreto-lei 3/2008)

Para a elaboração deste artigo foram convocados representantes da Associação Portuguesa de Surdos (APS), que tiveram a oportunidade de propor as medidas que consideravam adequadas para esta população:

“Houve um trabalho conjunto com a Fátima Cavaca. A Fátima Cavaca foi uma figura muito importante. Quando esteve no Ministério da Educação, isso representou um grande avanço para a comunidade surda. Tinha muito respeito por nós. (…) Sem ela não teria sido possível o Decreto-lei 3/2008 e o Programa Curricular de LGP. Deu-nos muito apoio” (Entrevistada A).

Em decurso desta colaboração, o Decreto-lei 3/2008 não só consolidou as orientações para uma educação bilingue, como criou um espaço próprio no currículo para a disciplina de LGP, enquanto primeira língua dos alunos surdos. Foi na sequência da criação desta nova área curricular que surgiu o Programa Curricular de LGP, com o propósito “de pôr em prática os princípios legais que defendem a sua utilização para a igualdade de oportunidades, no acesso à educação” (Cavaca et al., 2008, p.5). As autoras do Programa Curricular de LGP foram algumas das representantes da APS que colaboraram na redação do artigo 23.º do Decreto-lei 3/2008. É de realçar que as áreas nucleares deste programa não se centraram apenas no estudo da língua, mas também no estudo da história e cultura da comunidade surda, sendo enunciados neste âmbito os seguintes objetivos:

“Conhecer os diversos aspectos culturais e históricos que definem a Comunidade Surda, pela sua implicação directa ou indirecta na vida das pessoas Surdas ao longo do tempo, e desenvolver uma identidade e um auto-conceito positivo” (Cavaca et al., 2008, p.28).

O Decreto-lei 3/2008, apesar de se enquadrar no âmbito da Educação Especial, acabou assim por ir ao encontro de algumas das principais reivindicações da comunidade surda, nomeadamente a do reconhecimento da LGP enquanto expressão cultural da Comunidade Surda, cumprindo desse modo as orientações emanadas do Parlamento Europeu para a educação de surdos.

Torna-se necessário saber no entanto, como tem decorrido a implementação deste documento no contexto das Escolas de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos (EREBAS). Um dos nossos entrevistados do contexto da prática alerta para o facto de haver ainda muito a fazer:

“Do ponto de vista da importância é fundamental a criação desta área curricular, do ponto de vista da eficácia, ainda há um trabalho muito grande a fazer. É preciso que os surdos tenham consciência daquilo que é fundamental, que a disciplina reflita a sua própria identidade e que, para além disso, tenha uma vertente pedagógica, para que a língua gestual não seja vista apenas como um adorno que se introduz no currículo, mas sim como uma coisa essencial” (Entrevistado B).

Esta é, de facto, uma questão fundamental. Não basta o reconhecimento da importância de uma educação bilingue para os alunos surdos. São necessárias práticas que confiram à LGP a dignificação do seu estatuto. A entrevistada C, coordenadora de uma outra EREBAS, refere o seguinte:

“O programa de LGP é muito bonito, mas é mais uma utopia. Ele foi feito pensando em surdos com a língua gestual como primeira língua e nós ainda não os temos. Mesmo os surdos, filhos de pais surdos, têm por vezes uma língua gestual de pais com pouca cultura e poucas vivências. É uma língua pouco estruturada. Acho que o programa é interessante, é ambicioso, talvez excessivamente ambicioso. E neste momento, não está adaptado à realidade dos alunos que temos. Eu tenho notado com os formadores que eles não têm feito adequações curriculares, eles não sabem” (Entrevistada C).

Estes testemunhos dão-nos conta de algumas dificuldades na implementação do Programa Curricular de LGP. Como refere Ball (1992; 1994), as políticas não se referem apenas ao contexto de produção de texto, são um processo complexo que abarca a forma como são recebidas, interpretadas e implementadas nas escolas. Aí podem, por vezes, deparar-se com barreiras e constrangimentos que as podem distanciar da política original e dos objetivos inicialmente delineados. Também Pacheco (2002) insiste nesta ideia: “A política curricular decide-se e aplica-se numa perspectiva interpretativa e menos determinista ou num conjunto complexo de relações entre a escola, a experiência individual e a vida pública” (p.18).

Torna-se, por isso, fundamental analisar o que se passa nas escolas, o modo como é recebida e aplicada a legislação produzida. Tal permite-nos identificar falhas e propor determinadas linhas de intervenção. No caso particular do Programa Curricular de LGP, percebe-se que é crucial apostar numa formação dos docentes de LGP, não só em termos pedagógicos, mas também em termos do conhecimento da identidade e cultura surdas, para que a existência desta disciplina no currículo, se traduza por um reconhecimento efetivo do estatuto da LGP enquanto língua inteira e marcador da identidade cultural da comunidade surda. Não se pode esquecer também o papel crucial que a proposta de um Programa Curricular de LGP tem dentro das políticas educativas de bilinguismo para os alunos surdos.

Conclusões

A história dá-nos conta de uma evolução de conceitos e da emergência de um novo olhar relativamente à surdez e à língua gestual. Os novos discursos atribuem ao sujeito surdo uma língua, identidade e cultura próprias. Estas construções refletem-se na forma como é hoje encarado o exercício da cidadania por parte desta população.

Os surdos, tal como outros grupos minoritários, assumem agora o discurso: “Trata-me como igual, mas deixa-me ser quem sou!” (Stoer & Magalhães, 2005, p.165).

Exigem “uma política activa de reconhecimento cultural (…), somando dimensões culturais à intenção social da acção política” (Wieviorka, 2002, p.116).

As orientações do PE têm procurado aliar essas duas dimensões, no entanto as ações encetadas no seio do Conselho da Europa e dos seus Estados membros continuam a ser enquadradas dentro de um quadro de deficiência. Em Portugal, a legislação surge dentro do mesmo enquadramento. Contudo, a publicação do Programa Curricular de LGP abre portas para a dimensão cultural, uma vez que contempla o estudo da história e cultura surdas. Não é uma medida que, por si só, possa ser considerada suficiente. No entanto, constitui um primeiro passo para a mudança que se deseja alcançar nas políticas para a educação de surdos.

É preciso, no entanto, ter especial atenção à forma como se trabalha a disciplina de LGP na escola, para que não se transforme em mais uma folclorização da diferença surda. Assume, por isso, especial relevo a aposta numa formação adequada dos docentes que lecionam esta disciplina. Essa formação deve estender-se a todos os outros docentes que trabalham com alunos surdos, uma vez que o conhecimento da LGP e da especificidade cultural e identitária da criança surda é um elemento fundamental para o sucesso de uma educação bilingue.

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