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Maria do Céu Gomes
Maria do Céu Gomes
Professora
O panorama actual da educação de surdos. Na senda de uma educação bilingue
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Publicado em 2010
Exedra, nº 3, p59-73
Maria do Céu Gomes
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Resumo

Os séculos dezoito e dezanove foram uma época dourada para a educação de surdos. Existiam muitos professores surdos e era natural o uso da língua gestual. Tudo mudou com o Congresso de Milão, de 1880, que aprovou o método oral puro. Nos anos 1960, a consciência do fracasso do oralismo levou ao regresso dos gestos à sala de aula. Contudo, estes eram usados como um mero instrumento, e não como um marcador da identidade e cultura surdas. O bilingualismo/ biculturalismo apareceu nos anos 1980, procurando assegurar esse reconhecimento e garantir aos surdos o acesso à educação através da sua primeira língua. Embora a Federação Mundial dos Surdos considere que o uso deste método é uma questão de direitos humanos, as práticas escolares mostram que outras abordagens subsistem, nomeadamente o oralismo e a comunicação total. Neste artigo, reflectimos sobre os obstáculos que se têm colocado à implementação do bilinguismo na educação de surdos, questionando os discursos actuais sobre a diferença.

1. Introdução

Neste artigo, pretendemos reflectir sobre a situação actual da educação de surdos. Várias abordagens educativas subsistem neste campo, nomeadamente o oralismo e a comunicação total. Ao contrário do que seria de supor, e tendo em conta o conhecimento que temos da história da educação de surdos, estas abordagens continuam a ser praticadas, mesmo quando se defende a educação bilingue como uma questão de direitos humanos.

No seio de alguns projectos bilingues existem também alguns constrangimentos. Torna-se pois pertinente analisar a dimensão política e epistemológica inerente a cada uma das abordagens educativas existentes e reflectir em conjunto sobre o que se almeja para a educação de surdos.

2. Relembrando um pouco a história

Nos séculos XVIII e XIX, a educação de surdos viveu uma época dourada. Existiam muitos professores surdos e a língua gestual era usada em algumas escolas, nomeadamente no Instituto de Surdos de Paris. L’Epée e Sicard ficaram na história por reconhecerem o valor da língua gestual e a usarem na educação de surdos. Em 1880, o Congresso de Milão ignorou estas experiências educativas, afirmando que era incontestável a superioridade da fala para incorporar os surdos na vida social e para lhes proporcionar uma maior facilidade de linguagem (Delgado-Martins, 1986). Considerando a utilização simultânea dos gestos e da fala prejudicial, o Congresso decidiu que o método oral puro deveria ser o preferido, o que eliminou completamente a possibilidade de os gestos continuarem a ser usados, ainda que como simples suporte (ibidem). Os professores surdos acabaram por ser banidos das escolas.

Importava segundo a perspectiva do método oral puro, determinar o mais precocemente possível a etiologia, o tipo e grau de perda auditiva, para a partir daí, pôr em marcha um plano de reabilitação, com o objectivo de “desmutizar e transformar a criança surda num futuro adulto ouvinte” (Ruela, 2000: 62). A medicina associou-se a esta perspectiva desenvolvendo próteses e terapias com o objectivo de aproveitar os resíduos auditivos dos surdos e assim aumentar a sua capacidade de audição.

Foi apenas a partir de 1960, com os estudos desenvolvidos nos Estados Unidos, acerca da língua gestual e da surdez que as concepções em torno da educação de surdos começaram a mudar. Os trabalhos de Stokoe (1960), Klima e Bellugi (1979) mostraram que os gestos dos surdos não eram uma simples mímica, mas um código linguístico estruturado com regras para a construção de palavras e frases. Estas regras obedeciam a uma gramática própria, o que permitia atribuir aos gestos usados pelos surdos, o estatuto de uma língua e não meramente o de uma linguagem (Afonso: 2004:90).

Quigley e Frisina (1961) realizaram uma investigação com alunos surdos, filhos de pais surdos, aos quais tinha sido facultada a língua gestual desde o nascimento, demonstrando que estes alunos obtinham resultados superiores em termos de rendimento educativo comparativamente a crianças surdas, filhas de pais ouvintes, às quais não tinha sido facultada a língua gestual. Mais tarde, Maestas y Moores (1980) estudou a comunicação gestual de crianças surdas, filhas de pais surdos, e encontrou as mesmas sequências de desenvolvimento, interacção e de estádios linguísticos que se encontram nas crianças ouvintes. Todas estas investigações mostraram que a língua gestual, não só não era um obstáculo à aquisição da língua oral como ainda a favorecia (Amaral, 1993). A pouco e pouco, foi-se reconhecendo que esta língua, tal como todas as outras, permitia o acesso “ao conhecimento, ao discurso lógico e criativo, em suma à plena apreensão do mundo” (Amaral, 1993:28-29).

O constatar dos fracos resultados dos modelos de ensino de inspiração oralista reforçou a necessidade da adopção de novas abordagens educativas. De facto, foram inúmeras as pesquisas que alertaram para o estado de atraso considerável em que se encontrava a maioria dos alunos surdos relativamente aos seus colegas ouvintes, em quase todas as áreas académicas. Allen (1986) refere que o nível médio de leitura dos adolescentes surdos americanos era equivalente ao de uma terceira ou quarta classe. Conrad (1979) afirma que a capacidade de leitura média dos adolescentes surdos ingleses era de nove anos e dois meses. Referindo-se ao contexto italiano, Volterra (1989) dá-se conta, num dos seus estudos, de que mais de 43% dos significados de um certo número de palavras avaliadas era totalmente desconhecido pelos adolescentes surdos. Também Baptista (2008), ao pronunciar-se sobre o contexto português e em particular sobre um estudo realizado com uma aluna surda do secundário (10º ano), afirma que esta, ao nível da morfologia e da declinação verbal, não possuía as competências próprias de uma criança ouvinte de quatro, estando ainda pior ao nível da sintaxe. Estudos semelhantes ocorreram um pouco por toda a Europa e Estados Unidos, com resultados idênticos.

Por todas estas razões, o oralismo puro começou a ser abandonado, sendo substituído gradualmente por outras propostas, das quais destacamos a comunicação total, introduzida em 1967 por Roy Holcomb e o bimodalismo, introduzido em 1980, por Bornstein (Cabral, 2004). A comunicação total não pode ser considerada propriamente um método, mas mais uma filosofia. Como refere Coelho, esta, para facilitar a integração dos alunos surdos no mundo dos ouvintes, “preconiza a aliança entre técnicas dos métodos oralistas e toda uma panóplia de estratégias” (2007:45) como a dramatização, o cued speech 1, o finger spelling 2, o makaton 3, a expressão plástica e, inclusivamente, a língua gestual, tendo por objectivo “o estabelecimento de uma comunicação maximizadora de potencialidades e conducente a um desenvolvimento total e harmonioso” (ibidem).

Na filosofia da comunicação total, os gestos usados pelos professores não obedeciam à sintaxe da língua gestual, mas sim à sintaxe da língua oral (Coelho, 2005). Afirmava-se por isso, que eles continuavam a usar as respectivas línguas nacionais, só que gestualizadas. A esta forma de usar a língua gestual dá-se a designação de comunicação bimodal ou bimodalismo.

Conforme refere Brito (1993), os surdos consideravam que esta prática era uma descaracterização da sua língua, uma negação do seu estatuto como língua genuína, pois os princípios ideológicos continuavam a ser os mesmos do oralismo, aceder o mais rapidamente possível à língua oral, sendo a língua gestual reduzida ao papel de mero suporte. Assim, a intenção de reconhecimento das línguas gestuais era eliminada tanto em termos de filosofia como de implementação, porque se perdiam de vista as implicações sociais da surdez. Ao manter como referencial o modelo dos ouvintes, mantinham-se as mesmas relações de poder e saber destes sobre os surdos (ibidem).

Surgiu a necessidade de uma outra abordagem educativa que respeitasse a estrutura da língua gestual e reconhecesse que os surdos possuíam uma identidade e cultura próprias. Em 1982, Bouvet propôs o bilinguismo. Uma pessoa bilingue é aquela que é capaz de produzir enunciados significativos em duas línguas, mostrando capacidade de uso em pelo menos uma das esferas de funcionamento linguístico – ler, escrever, falar ou compreender (Góes, 1996). Associado ao conceito de bilinguismo está também o conceito de estatuto social de igualdade (Galisson e Coste, 1976). O bilinguismo está intimamente relacionado com o biculturalismo, ou seja, pressupõe o reconhecimento de duas comunidades linguísticas e culturais diferentes e o tratamento dos seus membros em pé de igualdade. Optar pelo bilinguismo é admitir que a educação está inserida no meio social e político de uma comunidade e assim deve ser encarada e respeitada. O processo escolar é, portanto, nesta perspectiva,

um processo no qual a integração deixa de ser a busca de integrar o surdo à comunidade ouvinte, para caracterizar-se como uma via de mão dupla: estar o surdo bem integrado em sua própria comunidade e na comunidade ouvinte e estarmos todos nós, que com ele convivemos, integrados, do mesmo modo, nas duas comunidades (Fernandes, 2002: 1).

3. A educação de surdos nos países em desenvolvimento

Em 2009, a Federação Mundial de Surdos (World Federation of the Deaf –WFD), em conjunto com a Associação Nacional de Surdos Sueca (Swedish National Association of the Deaf – SDR) publicou um relatório elaborado com base na análise de inquéritos distribuídos por 93 países do mundo inteiro. Ficaram de fora desta análise os países da América do Norte e da Europa Ocidental. Os inquiridos foram membros das associações nacionais de surdos de cada país, membros da WFD ou não. O relatório intitulado Deaf People and Human Rights procura dar uma visão geral de como se encontra a situação dos surdos em termos de direitos humanos nos países em desenvolvimento.

Hauland e Allen, os responsáveis pela análise dos dados, referem que a língua gestual só foi reconhecida oficialmente em quarenta e quatro dos noventa e três países inquiridos. O relatório considera que nenhum país nega completamente o direito dos surdos à educação, porque mesmo nos países que afirmam não considerar este direito (Bolívia, Eritreia, Guiné, Seicheles e Coreia do Sul) existe uma ou mais escolas para surdos. No entanto, não existe nenhum país em que o sistema educativo e/ou níveis de literacia sejam considerados completamente satisfatórios. Os inquiridos neste relatório referem que a qualidade da educação é baixa e o nível de iliteracia alto, o que, segundo Hauland e Allen é um indicador de que existe ainda um grande desconhecimento sobre a importância da língua gestual na educação de surdos.

Os mesmos investigadores referem que, dos países inquiridos, apenas vinte e três afirmam ter uma abordagem bilingue e só em algumas escolas. A confiança no método oral ainda é forte, o que significa que uma grande parte das crianças surdas continua a não aceder à educação através da língua gestual. Os mesmos investigadores informamnos que no relatório Deaf People in the Developing World (Joutselainen, 1992) existiam treze países a afirmar que usavam apenas o método oral: Argentina, Cuba, República Dominicana, Haiti, Quénia, Lesoto, Mauritânia, Nicarágua, Panamá, Suazilândia, Tanzânia, Gâmbia e Zimbabué. Desses treze países, Cuba, Quénia e Nicarágua afirmam ter agora uma abordagem bilingue. Na República Dominicana, Haiti, Lesoto, Mauritânia, Panamá, Suazilândia, Tanzânia e Gâmbia o método oral é agora usado juntamente com a comunicação total. Só a Argentina e o Zimbabué é que afirmam continuar a usar apenas o método oral. Para além destes dois países, o relatório de 2009 indica mais quatro: a Algéria, o Iraque, o Malawi e o Senegal. A abordagem mais usada é a da comunicação total, usada em 66 dos países inquiridos.

Hauland e Allen (2009) assumem que não estão seguros de muitos dos dados obtidos, porque segundo eles, ainda há uma grande confusão entre conceitos. Estes investigadores dão conta da dificuldade dos inquiridos em saber exactamente em que é que consiste o bilinguismo para surdos. Segundo eles, essa dificuldade existe até no seio das próprias associações de surdos e de muitas entidades políticas.

A maioria dos países que no relatório da WFD (2009) afirma ter já implementado o bilinguismo, admite que ainda há muito trabalho a fazer, antes que se possa dizer que as crianças surdas usufruem de uma verdadeira educação bilingue. São apontados alguns problemas, nomeadamente, o facto de os professores terem pouca fluência em língua gestual e continuarem a ter baixas expectativas relativamente à capacidade de aprendizagem das crianças surdas. Estes países observam que, apesar de novas orientações pedagógicas, as representações em relação aos surdos continuam a ser as mesmas, o que se traduz em baixos resultados. São poucos os alunos que têm oportunidade para prosseguir estudos no ensino secundário, profissional ou universitário. As oportunidades para os surdos arranjarem um emprego são por isso ainda muito limitadas na quase totalidade dos países inquiridos.

4. A educação de surdos na Europa e nos Estados Unidos

Em 2006, o Conselho da Europa publicou um estudo preliminar designado Signed languages in Education in Europe (Leeson, 2006). Segundo este trabalho, também no continente europeu continuam a subsistir várias abordagens na educação de surdos, nomeadamente o oralismo e a comunicação total. O estudo mostra que o bilinguismo ainda não se conseguiu impor de forma consensual.

Esta diversidade de respostas reflecte a controvérsia que continua a rodear a educação dos alunos surdos. Como afirma Leeson (2006), embora exista um discurso epistemológico e até político que reconhece os surdos como membros de uma minoria linguística e cultural, estes continuam a ser encarados pela maioria da população ouvinte como meros deficientes auditivos, ou seja, como indivíduos que necessitam de reabilitação para se aproximarem do modelo ouvinte. Segundo a mesma investigadora, as tensões entre a visão médica e a visão antropológica e cultural continuam a existir, devido, em grande parte, ao facto da maioria das crianças surdas (90-95%) nascer no seio de famílias ouvintes. O filho sonhado ainda continua a ser aquele que se enquadra nos parâmetros ditos normais e, como a surdez continua a ser encarada como um desvio da norma, importa mascará-la através do uso de próteses ou de implantes cocleares.

A dificuldade em atribuir um estatuto de igualdade à língua gestual, reflecte-se não só na postura dos pais, mas também na forma como muitos Estados implementam as suas políticas educativas. Em muitos países europeus, a língua maioritária continua a ser considerada a primeira língua dos alunos surdos, sendo utilizada como língua de acesso à educação. Esta situação acontece mesmo em países onde se deu o reconhecimento oficial da língua gestual. Leeson (2006) considera que o problema está no facto de as línguas gestuais continuarem a ser usadas como um mero instrumento para aceder mais rapidamente à língua oral. Referindo-se ao contexto britânico, Knight e Swanwick dão conta disso mesmo:

Continuam a existir muitas escolas e serviços que trabalham com as abordagens do oralismo e da comunicação total. Mais recentemente, tem surgido o interesse em identificar mais claramente o uso e o papel da língua gestual e dos sistemas de fala complementada como suporte das línguas faladas (Knight e Swanwick, 2002:22-23) 4.

Estas autoras falam de um despertar para a língua gestual e para sistemas combinados que usam gestos e fala (cued speech), como uma forma de apoio para o ensino das línguas orais. Também em França se usa muito a LPC (Langue Française Parlée Complétée). Neste país, a figura do codeur LPC substitui cada vez mais a do intérprete de LSF (Langue des Signes Française). O codeur LPC é um técnico que intervém em escolas do ensino regular, onde estejam integradas crianças surdas com bastantes dificuldades na recepção auditiva e/ou labial (surdez severa e/ou profunda). O seu papel é transmitir todas as mensagens orais em língua francesa com a ajuda do código da LPC (http://anco.asso.free.fr/index.php/codeur, 2009).

Nos Estados Unidos, embora existam projectos bilingues de referência como o de Gallaudet, também existem escolas que continuam a praticar o oralismo puro e a comunicação total. No sítio da internet da American School for the Deaf pode ler-se:

A filosofia de comunicação total desta escola abarca o inglês e a língua gestual americana, a integração da fala, o treino auditivo, a leitura, a escrita e o uso de tecnologias de apoio, como partes essenciais de uma comunicação total que permite aos alunos atingir uma verdadeira linguagem e literacia comunicacional (http://www.asd-1817.org/).

A Clarke School, considerada há algumas décadas a escola mais oralista do mundo, não deixou de funcionar, nem mudou de método de ensino. Pelo contrário, cresceu e hoje em dia faz parte de uma rede de escolas denominada Clarke Schools for Hearing and Speech. Estas escolas estão hoje espalhadas por cinco cidades dos Estados Unidos. Mudou o nome, mas a filosofia continua a mesma: “Dar às crianças que são surdas profundas ou surdas parciais as competências de audição e de fala que precisam para ter sucesso na vida” (http://www.clarkeschool.org/new/).

O estatuto inferior que continua a ser dado às línguas gestuais em muitos contextos educativos entra em contradição com as orientações emanadas do Parlamento Europeu (Documento A2-302/87), das Nações Unidas (Resolução n.º 48/ 96 de 1994) e da UNESCO (Declaração de Salamanca, 1994), que têm vindo a reconhecer desde há algumas décadas a língua gestual como uma língua com uma gramática própria e como a língua natural das comunidades surdas.

O facto de existir o direito de opção linguística para as crianças surdas, significa que os pais podem continuar a optar por várias vias, nomeadamente a oralista. Estando todas as escolhas em aberto, nada muda de forma substancial. Diferentes modelos de atendimento e diferentes métodos de ensino continuam a subsistir.

Na maior parte das vezes, a definição do percurso a seguir não se baseia numa avaliação do grau e tipo de surdez das crianças surdas ou no facto de terem sido ou não implantadas. Muitos pais escolhem a via oralista, apenas por considerarem que esse é o melhor caminho para a integração social. Não são tidas em conta as possíveis consequências da sua opção em termos do desenvolvimento cognitivo, linguístico e psicológico dos seus educandos.

Segundo o estudo de Leeson (2006), na maior parte dos países europeus, a tendência actual é para a integração dos alunos surdos em escolas e turmas regulares, o chamado mainstream. Entre a integração plena em turmas de ouvintes (escolas regulares da área de residência) e a frequência de escolas especiais para surdos, existe um modelo intermédio: as unidades de apoio a surdos, inseridas nas escolas regulares, onde os alunos podem estar em integração parcial ou plena ou em turma de surdos, tendo apoio da Educação Especial (ibidem). Segundo Knight e Swanwick (2002), esta é uma experiência positiva, sobretudo quando há um grande número de alunos surdos e surdos adultos que sirvam de modelos:

Os dados recolhidos parecem sugerir que as escolas regulares que concentram um número significativo de crianças surdas (…), particularmente aquelas com uma forte presença de surdos adultos, favorecem o sentimento de identidade entre os alunos. (…). A oportunidade que as crianças surdas têm de conhecer e interagir com surdos adultos permite-lhes desenvolver a sua competência em BSL e ter modelos surdos como parte da sua experiência educativa (Knight & Swanwick, 2002:38).

Em algumas escolas porém, são poucos os alunos surdos e não há modelos de surdos adultos. Aí, a experiência já não é tão enriquecedora. Nesses casos, o método de ensino assenta sobretudo numa visão médica e usa-se a comunicação total (Leeson, 2006). Apesar de todas as críticas, esta abordagem continua a ser usada hoje em dia, juntamente com o bimodalismo, pois a maioria dos professores ouvintes sente bastante dificuldade em dominar a estrutura da língua gestual (ibidem). Por outro lado, há a questão das representações. Muitos profissionais ainda atribuem um estatuto inferior à língua gestual, não investindo muito nela em termos de formação.

Em alguns contextos, nem sequer se usa a comunicação total. Segundo Leeson (2006), a integração plena de crianças surdas em turmas de ouvintes, seguindo um modelo oralista, continua a ser feita em grande escala por toda a Europa. Nos Estados Unidos, também existe um grande número de alunos surdos a frequentar o ensino regular (Neisser, 1990). Em nome da integração na sociedade, ignora-se a língua e a especificidade dos alunos surdos.

Em Portugal, as crianças surdas podem optar pela via oralista em escolas regulares da área de residência ou pela via bilingue em escolas de referência para a educação bilingue de alunos surdos. Estas escolas de referência são antigas unidades de apoio à educação de alunos surdos (UAEAS). A sua designação mudou com a publicação do Decreto-Lei 3/2008, de 7 de Janeiro. O objectivo da mudança foi reduzir o número de unidades, de modo a aumentar a concentração dos alunos surdos e assim favorecer o ensino bilingue. As unidades seleccionadas foram consideradas escolas de referência. É de referir que as outras unidades não foram extintas. Continuam a acolher alunos surdos, embora sem recursos suficientes para tal atendimento, uma vez que os docentes e intérpretes de LGP são colocados prioritariamente nas escolas de referência. Nestas ex-UAEAS pratica-se a comunicação total.

Os países nórdicos têm uma filosofia diferente, considerando que devem existir escolas próprias para os surdos. A integração nas escolas regulares não é por isso vista como uma opção viável para estes alunos (Leeson, 2006). Nestes países, defende-se o bilinguismo, sendo a Suécia uma referência nesta área. As escolas de surdos suecas estão distribuídas por cinco “cidades-modelo”, onde se encontram concentrados os recursos necessários para levar a cabo uma educação bilingue (Coelho, 2007). Estas escolas estão dispersas geograficamente e abrangem os alunos surdos de todo o país. Em cada uma destas cidades, existem creches e jardins-de-infância para crianças surdas, a partir dos 0 anos de idade, onde se fomenta a aquisição precoce da língua gestual e se dão os primeiros passos na iniciação da escrita. Dos 6 aos 16 anos, existem escolas especiais só para surdos. A partir do secundário, surdos e ouvintes frequentam as mesmas escolas (ibidem). Os pais suecos aprendem a língua gestual em massa e autorizam os filhos a frequentar escolas de surdos, mesmo que sejam distantes de casa (Baptista, 2008). É uma outra forma de encarar a surdez.

5. O pseudo-bilinguismo

Como já tivemos a oportunidade de referir, a proposta bilingue não privilegia uma língua, mas quer dar ao surdo o direito e as condições de poder utilizar duas línguas, a língua gestual enquanto primeira língua e a língua nacional, enquanto segunda língua, na sua vertente escrita e eventualmente falada.

A educação bilingue para surdos é no entanto, “algo mais do que o domínio, em algum nível, de duas línguas” (Skliar, 1999:7). Se nos limitarmos a pensá-la desse modo, ela não será mais do que um mero dispositivo pedagógico especial, mais uma grande narrativa educacional, mais uma utopia a ser rapidamente abandonada (ibidem).

Não podemos esquecer que o objectivo inicial da educação bilingue foi o do reconhecimento político da surdez como diferença, afirmando-se desse modo, como alternativa ao oralismo e à comunicação total, abordagens ancoradas numa perspectiva do surdo como deficiente. Este modelo propõe-se dar à criança surda não só as mesmas possibilidades psicolinguísticas da criança ouvinte, como também levá-la a criar uma identidade bicultural, isto é, a desenvolver as suas potencialidades dentro da cultura surda e aproximar-se, através dela, da cultura ouvinte (Skliar, 1997).

A diferença enquanto significação política, é construída histórica e socialmente, é um processo e um produto de conflitos e movimentos sociais, de resistências às assimetrias de poder e de saber, de uma outra interpretação sobre a alteridade e sobre o significado dos outros no discurso dominante (Skliar, 1998). Como afirma Tadeu da Silva,

A cultura é teorizada como campo de luta entre os diferentes grupos sociais em torno da significação. A educação e o currículo são vistos como campo de conflito em torno de duas dimensões centrais da cultura: o conhecimento e a identidade (2000:32).

O que Skliar denuncia (1999) e vários autores confirmam (Kyle, 1999; Dorziat, 1999; Hauland & Allen, 2009) é que, mesmo no seio daqueles que defendem uma educação bilingue, há por vezes práticas que denunciam uma outra perspectiva. Muitos profissionais continuam a exercer pressões sobre a linguagem, a artificializar a língua gestual, a manter baixas expectativas sobre os alunos surdos e a fazer grandes cortes no currículo destes alunos. Continua muito forte a ideia, de que o essencial é dominar a língua oral para uma melhor integração na sociedade.

Ramirez (1999) afirma que, nas escolas onde se iniciaram projectos bilingues, o trabalho em equipa entre surdos e ouvintes colocou sobre a mesa a problemática das relações de poder e de saber entre ambos os grupos. Em algumas escolas, a constatação desse problema levou à criação de espaços de reflexão e debate sobre o papel dos surdos na planificação, liderança e tomada de decisões e também sobre as atitudes que surdos e ouvintes assumem em termos de trabalho cooperativo. Mas, em outras escolas não se favoreceu este debate e a relação entre surdos e ouvintes continua difícil, dificultando um trabalho articulado e proveitoso para os alunos surdos.

Alguns programas bilingues têm promovido o contacto de pais ouvintes com as comunidades surdas locais, o que os tem levado a uma mudança de atitude perante a surdez dos seus filhos e a uma aceitação gradual da língua gestual (Davies, 1994). A participação em actividades sociais e recreativas com pessoas surdas das comunidades locais provoca nos pais mais confiança e esperança no futuro dos seus filhos. Mas, mais uma vez, este tipo de iniciativas não acontece em todos os países e em todas as escolas com projectos bilingues. O desconhecimento provoca a angústia e a ansiedade e deixa os pais divididos entre vários caminhos.

Não é apenas nas abordagens oralistas e da comunicação total que se constatam obstáculos ao real reconhecimento da língua gestual e da identidade e cultura surdas. Também alguns projectos bilingues se afastam do tão desejado reconhecimento da surdez enquanto diferença. Assume-se um discurso que não corresponde minimamente às práticas existentes. Assim, em vez de um verdadeiro bilinguismo, existe apenas um “pseudo-bilinguismo” (Skliar, 1999:10), pois

o abandono progressivo da ideologia clínica dominante e a aproximação aos paradigmas sócio-culturais, não podem ser considerados, por si só, como suficientes para afirmar a existência de um novo olhar educacional (Skliar, 1998:8).

6. Conclusão

Actualmente, os programas bilingues encontram-se em expansão por todo o mundo, sendo esta abordagem reconhecida por várias organizações internacionais como aquela que melhor satisfaz as necessidades e a especificidade das comunidades surdas. É uma questão de justiça social garantir que todos os indivíduos tenham acesso à educação através da sua primeira língua.

A revisão da literatura e a análise de alguns relatórios, permite-nos constatar a prevalência das abordagens oralistas e da comunicação total, pelo que ainda são poucos os países onde a língua gestual faz parte do currículo. Como diz Ramirez (1999), apesar de aparentemente estarem reunidas condições favoráveis para a implementação de uma educação bilingue, esse processo não tem sido fácil, pois implica uma reestruturação profunda do sistema educativo que se oferece à população surda. O problema é que continua a existir uma grande diversidade de respostas para as crianças surdas. Todas essas opções continuam em aberto, ficando a escolha ao critério dos pais. Estes continuam a poder optar por escolas oralistas ou por escolas que usem a comunicação total. A educação bilingue não assume um carácter vinculativo para os alunos surdos.

Assim, em nome de uma escola igual para todos, esquece-se muitas vezes a importância da diferenciação e como diz Pacheco, “a pior discriminação dos alunos é aquela que é praticada em nome da igualdade de direitos e da uniformização de conhecimentos” (2002:88). Embora seja considerado uma questão de direitos humanos, o bilinguismo continua a chegar a um número reduzido de crianças e jovens surdos.

Por outro lado, constata-se que mesmo em escolas que afirmam possuir uma educação bilingue, há por vezes práticas que não são condizentes com esta filosofia, nomeadamente a pouca formação dos professores em língua gestual, a falta de articulação com as famílias e com as associações de surdos, práticas de avaliação que não têm em consideração a primeira língua dos alunos, currículos que não contemplam a história e a cultura das comunidades surdas, etc.

Devido ao peso da história, o percurso afigura-se difícil. Importa recuperar os aspectos pedagógicos, a transformação das representações sociais sobre os surdos e a surdez e as relações de trabalho cooperativas entre surdos e ouvintes. De facto, há ainda vários obstáculos a ultrapassar. Como diz Leeson (2006), é importante reflectir em conjunto e lembrar que a implementação de programas verdadeiramente bilingues exige algumas condições, nomeadamente:

  • Uma visão das crianças surdas como seres capazes de aprender, se lhes forem dadas as condições adequadas;
  • O reconhecimento real das línguas gestuais, enquanto línguas genuínas e como línguas de acesso ao currículo;
  • A aceitação do bilinguismo como um novo olhar sobre a surdez em vez de ser apenas mais um método para facilitar a aquisição da língua maioritária;
  • A avaliação das aprendizagens na primeira língua dos alunos;
  • A formação contínua dos docentes surdos e ouvintes em metodologias próprias e na língua gestual;
  • A produção de materiais bilingues;
  • A articulação com as famílias e com as associações de surdos;
  • O apoio do Estado na implementação das políticas.

Como diz Apple, “a educação é intrinsecamente política mesmo nos seus caminhos mais práticos e tortuosos” (1999:13). É nesse sentido que a existência de todas estas condições é crucial para que exista coerência e honestidade na implementação de projectos bilingues. Há princípios que não podem ser esquecidos ou relegados para segundo plano. Só assim estes projectos se poderão afirmar como um exemplo de boas práticas para a educação das crianças surdas.

Notas

1 Sistema de apoio à leitura lábio-facial. Os gestos criados são desprovidos de significado e destinam-se a esclarecer a informação presente nos lábios, o que faz do Cued-Speech um sistema oral (Cabral, 2004:45).
2 Significa o mesmo que dactilologia. Consiste em soletrar a palavra escrita através do alfabeto manual (Coelho, 2007:45).
3 Modo de comunicação que utiliza o gesto codificado (ibidem).
4 Tradução minha.

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