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Maria do Céu Gomes
Maria do Céu Gomes
Professora
Jovens surdos: percurso escolar e expectativas profissionais
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Publicado em 2011
Educação, Sociedade & Culturas, n.º 32, 111-128
Maria do Céu Gomes
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Resumo

Este trabalho tem como intenção dar a conhecer alguns dos lugares de inclusão/exclusão social com que se deparam os indivíduos surdos ao longo dos seus percursos de vida. São analisados os lugares do corpo, da identidade e da cidadania, com relevância para este último, uma vez que o artigo se debruça em especial sobre o percurso escolar dos entrevistados. É dada a voz aos próprios sujeitos, através de testemunhos biográficos. Embora, nas últimas décadas, se tenha vindo a registar um reconhecimento gradual dos direitos dos surdos por parte do Estado, quer nos discursos quer na legislação produzida, verifica-se que em termos reais, as mudanças ocorridas continuam a ser pouco significativas. Torna-se por isso pertinente, em termos científicos e na linha dos Estudos Culturais, lembrar as práticas que subsistem e que resistem à mudança de paradigmas, impedindo que os membros deste grupo minoritário cresçam e se desenvolvam com estigmas, num mundo que se quer imbuído de justiça social e de igualdade de oportunidades.

Introdução

Este artigo resulta de uma investigação desenvolvida a partir de entrevistas biográficas realizadas a indivíduos surdos, pré e pós-linguísticos. A publicação deste texto surge com o intuito de prestar homenagem a um dos entrevistados, Carlos Ferreira, já ausente do nosso convívio. Este jovem fez questão de ser identificado na altura, considerando que desse modo o seu testemunho teria mais impacto junto dos pares e mesmo junto da sociedade ouvinte.

O trabalho em foco centrou-se na análise dos vários espaços estruturais em que se move o indivíduo surdo, nomeadamente o espaço da família, o espaço da escola e o espaço mais alargado da comunidade em geral. Inspirámo-nos na obra publicada em 2004, por Stephen Stoer, António Magalhães e David Rodrigues, Os Lugares da Exclusão Social: Um Dispositivo de Diferenciação Pedagógica. Nesse livro, os autores atribuem ao corpo, ao trabalho, à identidade, à cidadania e ao território a designação de «lugares». Os lugares são «as instâncias em que o impacto dos espaços estruturais acontece e onde se activa a agência individual e social e os constrangimentos sociais que a delimitam e a inspiram» (Stoer, Magalhães & Rodrigues, 2004: 133).

No nosso estudo, decidimos analisar apenas três lugares: o corpo, a identidade e a cidadania. Considerámos que o lugar do corpo deveria ser o nosso ponto de partida, porque foi devido ao facto de não ouvirem que os surdos criaram uma linguagem gestual, em alternativa à verbal. Esta linguagem evoluiu, dando origem a línguas estruturadas, reconhecidas oficialmente em muitos países, tais como a África do Sul, a Finlândia, a República Checa, o Brasil, a Venezuela, o Reino Unido, Espanha e Portugal. É através da defesa do uso da língua gestual, quer para comunicar, quer para aceder a serviços sociais como a educação e o trabalho, que o indivíduo surdo se assume na sua diferença.

Neste artigo, abordamos os três lugares, dando especial ênfase ao da cidadania, através da análise do percurso escolar do entrevistado e da reflexão sobre os diferentes modelos educativos existentes para os alunos surdos. As dificuldades sentidas no ensino superior são também contempladas, bem como as expectativas deste jovem em termos profissionais. As questões do corpo, da identidade e da cidadania estão interligadas e por isso surgem naturalmente quando abordamos problemáticas relacionadas com a surdez.

O testemunho de Carlos Ferreira é confrontado com o de outro entrevistado que teve um percurso em alguns aspectos semelhante ao seu. São ainda mobilizados testemunhos retirados da literatura. Este segundo biografado tem um nome fictício – André Soares –, por opção do próprio. Os testemunhos em análise permitem-nos obter conhecimento sobre algumas das experiências e vivências por que passam muitos surdos, bem como sobre a forma como os próprios sujeitos as interiorizam e perspectivam. As dificuldades são muitas e nem sempre fáceis de superar.

Homenageamos deste modo alguém que ficará na nossa memória pelas lutas que travou, pelo exemplo que deu a todos aqueles que privaram da sua companhia: alunos, técnicos, docentes, familiares e amigos. Nem sempre habitamos as narrativas que construímos e que sonhamos e por vezes desistimos. Mas a lembrança não morre, é um lugar que permanece.

A reclamação de um novo estatuto

Os grupos minoritários, quando aderem ou são confinados aos valores preconizados pela sociedade dominante, correm o risco de se autoperceberem como identidades sociais negativas (Pacheco & Caramelo, 2005), identidades invisíveis, sem direito de escolha e sem voz. No caso dos surdos, esta interiorização começa desde cedo na família, ao negar-se à criança o estatuto de ser comunicante. Prossegue depois na escola, no trabalho e na vida social em geral.

Para fugir a este estigma, a este estatuto do não ser, os surdos, tal como outras minorias, formaram comunidades para defender os seus interesses e reclamar uma nova identidade e cidadania. De identidades invisíveis, passaram a identidades de resistência (Castells, 2003), dispostas a assumirem-se como agência, como enunciadoras dos seus próprios discursos. Começaram a reivindicar o respeito pela sua especificidade, pela sua língua e pela sua cultura.

No entanto, embora o poder político tenha demonstrado abertura e até adoptado um discurso antropológico e cultural, de reconhecimento dos surdos como minoria linguística, o facto é que as desigualdades sociais continuam a existir, escondidas por detrás de um discurso de teor democrático (Pacheco & Caramelo, 2005). Klein (2005) refere que, no caso dos surdos, as fronteiras da exclusão aparecem, desaparecem e voltam a aparecer, multiplicam-se e disfarçam-se. Os seus limites ampliam-se, mudam de cor e de nome, mas permanecem. Talvez por isso, a discussão em torno da surdez não deva ser tratada em termos de audiologia, mas em termos epistemológicos, numa análise das relações entre conhecimento e poder, dentro de uma perspectiva de entendimento político (Wrigley, 1996).

Um dos grandes obstáculos à igualdade de oportunidades e à justiça social é o facto de se atribuir ao indivíduo a responsabilidade pelo seu sucesso ou insucesso na vida pessoal. Esta foi a forma que os Estados actuais, pós-Providência, encontraram para se desresponsabilizarem em relação ao indivíduo. Teoricamente, todos os homens são livres e iguais em direitos, participam como outros tantos seres singulares na vida quotidiana, acedendo ao emprego, ao dinheiro, à saúde, à educação e à habitação, segundo modalidades inumeráveis, mas sempre enquanto indivíduos (Wieviorka, 2002).

O problema é que, devido à especificidade de cada um, não se encontram todos em igualdade de circunstâncias quando se trata de aceder aos serviços disponibilizados pelo Estado. O acesso é para todos, o sucesso é só para alguns. Em todas as definições sobre inclusão/exclusão, aparece sempre a ideia de tratar-se de propriedade ou carência do indivíduo, de ser possuidor ou não de alguns dos atributos fundamentais considerados necessários para a sua escolarização, a sua profissionalização e a sua inserção no mercado de trabalho. Os documentos oficiais traduzem muitas vezes as relações entre inclusão e exclusão em termos de irresponsabilidade/responsabilidade individual e não como um processo cultural, social e relacional (Klein, 2005).

Pacheco e Caramelo (2005: 32) afirmam que o discurso sobre a diferença «esconde, hoje, uma hipocrisia social que permite a manutenção de políticas ineficazes – até pela incapacidade de aplicar a legislação que produzem». No caso específico do nosso país, onde, através da alínea h do artigo 74º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o Estado se compromete a «proteger e valorizar a Língua Gestual Portuguesa enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e igualdade de oportunidades», o que se verifica é que a maioria dos alunos surdos continua a não usufruir deste direito, por falta de coerência na aplicação dos normativos legais. Como refere Afonso (2004: 182), assiste-se «à coexistência de um cumprimento escrupuloso de certas directivas com uma permissividade enorme relativamente a outras, sem que ninguém se sinta responsável pela sua omissão ou desrespeito». Esta situação de ambiguidade favorece as hipóteses de fuga ao cumprimento da legislação. Sempre que as orientações não vão de encontro aos interesses particulares de determinados actores ou entidades, são simplesmente ignoradas ou interpretadas da forma considerada mais conveniente (Ball, 1992). É por essa razão que Pacheco (2002) encara as escolas como locais de luta ideológica, arenas de competição e de contestação.

O insucesso não é, no entanto, atribuído à escola, que não faculta os recursos, ou ao Estado, que age de forma inconsequente, mas aos alunos, sobre quem as expectativas sempre foram baixas. Como afirma Gonçalves, o fracasso escolar que é atribuído ao surdo resulta de um imaginário e de uma representação «que lhe dita uma incapacidade de aprender decorrente da sua perda biológica e da sua exclusiva responsabilidade» (2005: 99), como se a relação pedagógica não fosse interactiva. Os alunos acabam assim por ser direccionados para um ensino compensatório, no âmbito da educação especial. O pensar a educação deste modo reflecte-se «na redução do número de alunos surdos ao longo dos percursos escolares» e os efeitos deste processo são «particularmente visíveis se pensarmos na presença ainda bastante limitada de estudantes surdos no ensino universitário» (Pacheco & Caramelo, 2005: 27).

O que está em causa no que diz respeito a Portugal é a «existência, de pleno direito, da Língua Gestual Portuguesa, como língua materna dos surdos e como uma língua segunda – também portuguesa – para os ouvintes» (ibidem: 26). Trata-se, segundo estes autores, de uma outra lógica de pensar os direitos e deveres de cidadania, garantindo aos surdos a legitimidade de uma língua que é a sua, mas abrindo, ao mesmo tempo, a escolha de um espaço comum de troca entre portugueses com especificidades diferentes, o que permite a compreensão de que estas diferenças são biunívocas.

No mesmo sentido, Stoer e Magalhães advogam o abandono do culto da mesmidade em prol de um modelo relacional: «Já não somos o “Nós” que tem a legitimidade universal de determinar quem são os “Eles”. Mas, ao assumirmos que a diferença também somos nós (…), é a nossa alteridade que se expõe na relação» (2005: 138). Esta proposta recusa a postura da tolerância e da generosidade, e pretende ir mais além na relação com o outro, encarando-o como um possível parceiro de negociação. É, nas palavras de Skliar, a «espacialidade da diferença»: «Como poderemos negociar entre a minha história e a sua?» (2003: 26).

Pacheco e Caramelo (2005: 26) consideram que o espaço cívico

é um espaço heterogéneo em que a legitimidade da pertença e da construção deste espaço não se define exclusivamente pelo critério do maioritário/minoritário, nem pelos poderes do grupo dominante, mas sim pela pertinência dos contributos originais de cada cultura.

Só através da participação activa em todas as áreas sociais, culturais, educacionais, de trabalho e de lazer podem os membros dos grupos minoritários sentir-se verdadeiramente incluídos como cidadãos.

Um testemunho autobiográfico

Como já referimos anteriormente, seleccionámos para este artigo duas das entrevistas autobiográficas, realizadas no âmbito do trabalho de pesquisa do nosso mestrado. É dado especial destaque ao entrevistado que pretendemos homenagear. Os discursos do segundo biografado, André Soares, bem como os testemunhos recolhidos da literatura são mobilizados pontualmente, quando se pretende mostrar que as vivências dos indivíduos surdos apresentam muitos aspectos em comum. Como refere Plummer (2001), ao analisarmos as experiências de um indivíduo, obtemos informações que não são exclusivas desse indivíduo e que podem ser tratadas como características de um determinado grupo social.

Com a democratização da sociedade, começou a considerar-se que as pessoas comuns, e não apenas as pessoas ricas e poderosas, poderiam ter algo de importante a dizer. As vozes anteriormente silenciadas e escondidas poderiam fornecer dados para a compreensão de certos fenómenos sociais. E assim começaram a surgir as histórias de vida e as entrevistas autobiográficas de indivíduos pertencentes às minorias marginalizadas. O retrato autobiográfico destas pessoas passou a ser significativamente diferente do que era habitual, pois elas não se referiam unicamente a si próprias, mas a toda a classe ou grupo social em que estavam inseridas e que de certo modo representavam. A sua voz tornou-se a de muitos, isto é, a consciência do «self» deixou de ser privada para se tornar uma exploração colectiva. Plummer (2001) considera que deixamos de ter perante nós a história de um indivíduo isolado, para passarmos a ter a história de um grupo, de uma comunidade. Os percursos biográficos passaram assim a constituir-se como instrumentos que permitiam não só chegar às significações subjectivas dos factos vividos, mas também recolher testemunhos das próprias práticas sociais.

O objectivo do nosso trabalho empírico foi conhecer de que modo os lugares de inclusão/exclusão social se reflectiam nos percursos dos sujeitos e se o facto de cada um ter experiências diferentes relativamente à surdez tinha implicações na forma de interpretar e sentir o mundo. Procurámos dar expressão aos sentimentos e pontos de vista dos biografados, levando-os a olhar para dentro das suas vidas e a compreender os seus processos de autoconstrução. Como diz Stanley (1992), qualquer trabalho (auto)biográfico é como um caleidoscópio. Cada vez que se olha vê-se uma coisa diferente composta dos mesmos elementos, mas com uma nova configuração. Através da subjectividade do sujeito, podemos ver a realidade de vários ângulos, pois as histórias de vida não são sempre contadas da mesma maneira. Variam de cultura para cultura e de indivíduo para indivíduo.

Dos diversos procedimentos levados a cabo na nossa pesquisa, salientamos a elaboração de um guião, a presença de um intérprete de Língua Gestual Portuguesa durante a realização da entrevista, a gravação áudio e a posterior transcrição. Posteriormente, estas entrevistas foram sujeitas a uma análise de conteúdo, tendo sido estabelecidas categorias de análise. Ao sustentarem-se no princípio da conversação e abertura ao diálogo, as entrevistas semi-estruturadas permitem que os biografados façam emergir aspectos não previstos e que acabam por ser incorporados mais tarde na definição das categorias.

Os testemunhos aqui apresentados, embora pessoais, são representativos das vivências de uma minoria e da forma como os seus membros vivenciam e sentem os lugares de inclusão/exclusão social.

Percursos autobiográficos

Carlos Ferreira tinha quatro anos quando ficou muito doente. Esteve internado num hospital, durante quatro ou cinco meses, não se lembra muito bem. Chegou mesmo a entrar em coma. Quando voltou para casa, sentia-se diferente: «Parecia que todas as recordações tinham ficado apagadas. Só passado algum tempo comecei a recordar». Foi como se começasse um novo ciclo na sua vida e tudo o que estivesse para trás tivesse sido apagado. Algo nele tinha mudado, queria falar com os outros e não conseguia, as pessoas falavam com ele e não compreendia nada do que diziam. O seu corpo estava aparentemente igual, nada de visível o distinguia dos outros, mas em termos sensoriais mudara, já não ouvia.

A surdez atribui-lhe uma nova identidade, pois o corpo faz parte do sujeito, mais do que isso, é o próprio sujeito. Nesse sentido, ocupa um lugar, delimita-o e inscreve-se nele (Ribeiro, 2005). O corpo de Carlos Ferreira transforma-se assim num lugar de exclusão social, pois, como referem Stoer, Magalhães e Rodrigues (2004), nele passam a estar as marcas que determinam uma nova categorização do sujeito. Nos surdos, esta questão está intimamente ligada com a capacidade comunicativa. É na relação com os outros que este jovem se apercebe da sua diferença. De repente, passa de possível interlocutor a um ser incapaz de comunicar. André Soares, o outro entrevistado, passou pela mesma experiência da incomunicabilidade: «Eu via que as pessoas falavam, mas eu não conseguia falar. Percebi que aí é que estava a diferença, só isso. Mas a cabeça, o corpo, as mãos são iguais».

Moura (2000) refere que é nos primeiros anos de vida, quando a criança surda se percebe à parte da família, que tem o seu primeiro contacto com a sua condição de estigmatizada, de desacreditada na sua possibilidade de comunicação e de interlocução, e começa uma construção da identidade baseada no que «não é». Esta autora considera que um dos papéis da linguagem é promover a identificação inicial entre o sujeito e a família e «dar-lhe oportunidade de se constituir como ser humano, relacionando-se e colocando-se como diferente e único num momento posterior» (ibidem: 111). É através da linguagem, não no sentido único das representações das palavras, mas na forma como ela é tratada nas relações intersubjectivas – representando a igualdade quando passível de interlocução e a diferença enquanto capaz de poder manifestar-se de forma autónoma –, que a identificação e a diferenciação entre o «eu» e o «outro» se dão. A identidade começa a construir-se «nas relações comunicativas tanto entre sujeitos como na formação dos discursos únicos de cada um» (ibidem), ou seja, para que a criança comece a construir a sua identidade,necessita que os seus pais a reconheçam como ser comunicante, como ser capaz de linguagem. É através da interacção comunicativa com o outro, que o indivíduo se especifica e se individualiza «num processo constante de procura de coesão e consenso, que lhe permite a autonomização e a consciência da singularidade própria» (Pacheco, 1996: 31).

A mãe abandonou o emprego para cuidar dele; no entanto, não estava muito informada sobre as questões da surdez: «Senti-me desamparado, porque os meus pais não sabiam como fazer, não tinham formação sobre surdos». Este é um dos problemas mais graves com que se depara a maioria das crianças surdas, o viverem no seio de famílias ouvintes que não sabem como comunicar ou como proceder com elas. Quando estas famílias procuram apoio, poucas pessoas estão habilitadas para o dar.

Como só ficou surdo aos quatro anos, o nosso biografado Carlos Ferreira adquiriu a língua através de um processo natural como as outras crianças. Tinha por isso uma memória auditiva e conseguia oralizar. Estava em vantagem em relação aos surdos pré-linguísticos que nunca tiveram nenhuma experiência com o som. Mesmo assim, o seu percurso escolar no 1º ciclo não foi nada fácil. Foi colocado numa turma de ouvintes, em integração plena. Era o único surdo e tinha bastantes dificuldades em comunicar com os pares. Sentia-se discriminado: «Os meus colegas discriminavam-me através de violência física e psicológica. Chamavam-me mudo, mouco». Às vezes tentava integrar-se numa equipa para jogar futebol, mas não o aceitavam. Os pares não se identificavam com o colega surdo e este não encontrava qualquer elo que o ligasse aos outros.

Como refere Vieira (2000), é através do contacto com os outros que nos construímos, que nos definimos, pois «só com os outros e com o contexto, a pessoa é» (p. 43). A identificação é uma «necessidade íntima», pois não se é pessoa sem essa procura do outro em si, sem um sentimento de filiação, de pertença, de aceitação social (Wallon, 1979). A identidade individual mistura-se assim com a identidade social, que Cuche define como o «conjunto das suas pertenças no sistema social: pertença a uma classe sexual, a uma classe etária, a uma classe social, a uma nação» (2003: 136), o que significa que o indivíduo acede à consciência de si «por diferenciação dos outros e assimilando a identidade do grupo que designa e identifica como seu» (Vieira, 2000: 50). Esta identificação permite ao indivíduo localizar-se no sistema social e ser ele próprio localizado socialmente, pois a identidade para si, ou seja, a imagem que construímos de nós mesmos, «é correlativa do Outro e do seu reconhecimento: eu só sei quem sou através do olhar do Outro» (Dubar, 1997: 104). Nesta perspectiva, a construção da nossa identidade está intimamente ligada às identidades que nos são atribuídas pelos outros (actos de atribuição). A identidade nunca é dada, é sempre construída a partir daquilo que os outros definem que nós somos e, nesse sentido, é sempre inclusão e exclusão: identifica o grupo a que pertencemos e distingue-o dos outros grupos. Carlos Ferreira é identificado como não ouvinte. Passa a ser a excepção, a diferença, aquele com que o grupo maioritário não se identifica e, nessa medida, começa a sentir o estigma da discriminação.

Os pais eram ouvintes. Não sabiam nem nunca tentaram aprender a língua gestual. Colocaram próteses auditivas no filho numa tentativa de reabilitação:

Quando me levantava, punha o aparelho. Era uma caixa para pôr no bolso da camisa, como um maço de cigarros, com um fio e com auscultadores para pôr nos ouvidos. Quando ia para o Centro, ouvia o barulho do eléctrico, era horrível. Na escola primária também era chato, porque ninguém tinha consideração. Por exemplo, queria ver o que a professora falava, ligava e ouvia todo o tipo de ruído: o virar das páginas, o arrastar das cadeiras. A professora falava e riscava o quadro ao mesmo tempo. O chão era de mármore, as crianças faziam muito barulho. Não me conseguia concentrar.

O processo de intervenção no corpo ocorre com quase todos os surdos. Sobre a mesma experiência, conta-nos André Soares: Quando me colocavam próteses, eu sentia-me muito confuso e sentia muito barulho, porque o meu mundo é o mundo do silêncio. De repente, mudei para o mundo do barulho, com muitos barulhos, buzinas, etc. Foi muito confuso, mas depois, com o passar do tempo, fui-me habituando aos barulhos diferentes. Mas eu não consigo...eu percebo que há som e que as pessoas estão a falar, mas não percebo o que é que elas estão a dizer.

Há uma tentativa de modificar o corpo, de transformar o surdo num indivíduo ouvinte. É com o mesmo intuito que as crianças surdas começam a fazer terapia da fala. Carlos Ferreira fala-nos desta sua experiência:

Só aos sete anos fui para uma terapeuta da fala (...). A professora Fátima ensinava a ver as palavras, fazia desenhos e escrevia o nome por baixo para eu ler. Uma vez escreveu «chichi» e eu não sabia o que queria dizer. Então desenhou um menino a fazer chichi. Perguntou-me se eu queria fazer chichi e eu disse que sim. Ela trouxe um bacio dos acamados, em forma de tubo comprido. Fiquei envergonhado. Não consegui fazer. Se ela me mandasse à casa de banho eu tinha feito. Fiz queixa à minha mãe, não era nenhum deficiente.

Este jovem começa a sentir-se mal consigo próprio, primeiro com o uso da prótese, depois com a terapia da fala, porque o tratam como um deficiente. Surge no seu discurso a referência ao termo «deficiência», com o qual o sujeito não se identifica. Sente-se revoltado com essa identidade que lhe atribuem, mas que ele não aceita. André Soares fala-nos do mesmo sentimento, da violência que de certo modo constitui a tentativa de modificação do corpo: «Tinha aulas com uma terapeuta. Sentia-me preso, porque parecia que me obrigavam a fazer tudo, puxavam a voz e eu ficava um bocado nervoso. Queria estar à vontade, mas não conseguia. Eu parecia uma máquina que iam afinando». Esquecemos que o outro não pode ser separado da expressividade que o constitui, nem mesmo quando consideramos o seu corpo como um objecto, as suas orelhas e os seus olhos como meros apêndices anatómicos (Deleuze, cit. in Skliar, 2003).

Nesta altura, nem Carlos Ferreira nem André Soares tinham consciência do que significava ser Surdo. Ainda não lhes tinha sido dada a conhecer a língua gestual e a possibilidade que tinham de se constituir enquanto seres comunicantes através de uma outra forma de expressão. Na escola do 1º ciclo só se utilizava a língua oral. Por essa razão, Carlos Ferreira acabou por constatar que era diferente de todos os modelos que tinha perante si. Para reforçar o sentimento de exclusão, a professora colocava-o ao lado dela a brincar com uma caixa de Legos. Dava a aula para a turma e ignorava-o. Com a primeira professora do 1º ciclo nunca aprendeu nem a ler nem a escrever.

São vários os testemunhos existentes na literatura sobre a indiferença dos professores à problemática da surdez. Souza (1998: 13) apresenta o testemunho de uma aluna surda:

Na escola de ouvintes era difícil. Os professores andavam, andavam (...), e ler nos lábios era difícil, porque (...) o professor andava para trás, andava para a frente e eu não podia acompanhar (...). Eu copiava, às vezes nem ligava na aula (...). Para mim, nem precisava ir para a escola; o melhor era estudar em casa, porque era a mesma coisa.

Carlos Ferreira, tal como muitos outros surdos, não ia à escola adquirir conhecimentos. Ninguém se preocupava com ele, com as suas necessidades específicas. A professora ignorava a sua surdez e comportava-se como se na sala só existissem alunos ouvintes. No 3º ano, veio uma outra professora que ficou surpreendida com o facto de ele não saber ler nem escrever. No final do ano lectivo, enquanto os outros alunos passaram para o 4º ano, Carlos Ferreira teve que regressar ao primeiro para adquirir as competências que lhe faltavam: «Custou muito ter de voltar para o 1º ano, quando os outros foram para o 4º. Senti-me muito mal com isso».

A filosofia da integração falhou precisamente por considerar apenas o aspecto do acesso à escola, esquecendo-se que era também necessário criar condições para o sucesso. A consciência das limitações deste modelo fez surgir a «ideologia da inclusão»: «Uma escola pública que garanta a universalidade do acesso, a igualdade das oportunidades e a continuidade dos percursos escolares, aberta à diversidade dos públicos, mas praticando uma política activa de justiça social em benefício dos mais desfavorecidos» (Barroso, 2006: 276). No entanto, e tal como afirma Rodrigues (2006), é preciso não invocar o nome da inclusão em vão, porque entre o discurso e as práticas há ainda uma grande distância a percorrer. A escola não é inclusiva só porque a anunciamos como tal. Para o ser verdadeiramente, tem que ser sinónimo de uma escola compreensiva e significativa para todos (Gonçalves, 2005).

Há alunos surdos que chegam à escola com algum conhecimento de língua gestual, principalmente filhos de pais surdos ou crianças educadas em ambientes que lhes tenham proporcionado um banho linguístico de Língua Gestual Portuguesa (LGP). Daí a importância das crianças crescerem em contacto com outros surdos, do mesmo nível etário e mais velhos. Foi com este intuito que o Despacho nº 7520/98 criou as Unidades de Apoio à Educação de Alunos Surdos (UAEAS) e que o Decreto-Lei nº 3/2008 estabeleceu as Escolas de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos (EREBAS). Como refere este último decreto (Cap. V, art. 23º, ponto 2),

a concentração dos alunos surdos, inseridos numa comunidade linguística de referência e num grupo de socialização constituído por adultos, crianças e jovens de diversas idades que utilizam a LGP, promove condições adequadas ao desenvolvimento desta língua e possibilita o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem em grupos ou turmas de surdos [com metodologias e estratégias adequadas a esta população].

Ainda são muitas as crianças surdas que chegam à escola sem sequer saberem da existência quer de outros surdos quer da língua gestual. É muitas vezes só no 2º ciclo que se dá o encontro e a descoberta. Foi o que aconteceu com este jovem: «Só aprendi língua gestual quando fui para o 2º ciclo, com 13 anos. Fui discriminado pelos outros surdos por não saber LGP. Aprendi com eles a falar». É curioso que, apesar de começar a conviver com outros surdos, tenha continuado a sentir-se discriminado. E mais uma vez por uma questão de comunicação. Se antes era por não conseguir comunicar com os ouvintes, na nova escola era por não conseguir comunicar com os surdos. Há vários testemunhos que contam relatos semelhantes de situações de rejeição, de discriminação e do esforço pela pertença ao grupo. Os surdos são um grupo tão heterogéneo, com vivências por vezes tão diferentes, que por vezes oferecem resistência aos pares, ou porque não sabem língua gestual, ou porque não se identificam com os valores da comunidade surda.

A necessidade de pertença faz parte de cada um de nós. Os surdos não podem aprender a ouvir, mas podem aprender língua gestual e é isso que Carlos fez. A LGP abriu-lhe as portas para um mundo até aí desconhecido:

A língua gestual trouxe-me muitos ganhos. Aprendi muita coisa sobre a vida social, por exemplo, pedir um café. Também aprendi que havia outros surdos que já nasciam surdos, aprendi que existiam outras línguas para além da LGP… No início, pensava que existia uma língua gestual única.

André Soares passou por uma situação semelhante ao entrar no 2º ciclo e conta a importância que a LGP teve na sua reconstrução identitária:

A LGP ajudou-me, porque antigamente eu não sabia o que é que eu era, a minha identidade, se era surdo, se era ouvinte, se era um bocadinho dos dois. Eu sei, eu sou o André, mas... e mais? E o resto? Eu estava um bocado confuso. Quando eu entrei para a escola do 2º ciclo é que eu descobri «Ah! Eu sou Surdo», porque havia muitos surdos que comunicavam como eu. Eu fui avançando assim...

A língua gestual leva estes dois jovens a descobrir que não é Surdo quem não ouve, mas quem quer ser Surdo, ou seja, quem se considera membro de uma comunidade linguística e cultural diferente (Afonso, 2004). O grau de surdez pouco importa; o que é mais importante para se poder pertencer à comunidade surda é o uso da língua gestual (Wrigley, 1996). É esta língua que permite aos surdos afirmar a sua diferença e rejeitar o discurso da deficiência.

Para além do significado que a LGP assume em termos identitários, ajuda também nas aprendizagens, que se tornam mais acessíveis. Na nova escola, Carlos Ferreira já se sentia melhor: «Foi muito bom. Já percebia os professores. Tinham mais atenção. Já sabia a ordem das palavras para escrever. Os meus pais tinham-me ajudado». Nesta escola, já não era ignorado pelos professores, que já davam atenção à sua especificidade. Os seus pais ajudavam-no em casa: «A minha irmã ajudava-me a perceber a Matemática. A minha mãe ajudava-me a perceber o significado do vocabulário. Por exemplo: persiana. Apontava para a persiana. Apontava para as coisas». Os seus pais também costumavam dar-lhe jornais para ler: «Passava o tempo a ler o jornal. A minha mãe perguntava: “Como?”, “Porquê?”. Assim aprendi a falar e a desenvolver a minha capacidade». O desenvolvimento cognitivo e metacognitivo da criança surda depende da qualidade do diálogo desenvolvido com as pessoas que lhe estão mais próximas. A maneira como este jovem foi educado pelos pais contribuiu de forma decisiva para o seu desenvolvimento posterior.

Sobre a integração de alunos surdos no ensino regular, diz que esta é muito positiva, «mas nem sempre funciona bem quando os professores não são especializados». Considera também que «faltam manuais próprios» para estes alunos. Defende qualquer tipo de modelo de atendimento desde que sejam garantidas condições de uma boa formação para a criança surda. Também aceita qualquer metodologia, desde que esta esteja adaptada à especificidade de cada criança. Cada caso necessita de uma intervenção diferenciada, daí a importância de uma resposta flexível.

No 3º ciclo, este jovem passou a frequentar outra escola. Aí, surgiram alguns problemas:

No 7º ano foi muito bom. Mas, quando morreu a coordenadora da escola, veio outra, que não gostava de LGP. Os professores podiam fazer como queriam, usar a língua gestual ou não. Ela ignorava as queixas dos surdos. Também os orientava mal na escolha dos cursos.

Na nova escola, a mudança na coordenação implicou um retrocesso em termos da metodologia usada para trabalhar com os surdos. Já não lhes era garantido o acesso à educação através da LGP. A coordenadora também não lhes reconhecia capacidade para outros cursos que não fossem os profissionais. O discurso do entrevistado deixa transparecer revolta pela falta de respeito para com os direitos de cidadania dos surdos. Diz a propósito do ensino para os surdos:

Os alunos surdos têm uma filosofia de aprendizagem diferente da dos ouvintes, porque sofrem de privação de informação. Vêm para a escola sem saber nada. Precisam de um tipo de ensino diferente, um ensino que os motive e lhes permita serem seres autónomos. A surdez priva-os de muitos conhecimentos.

Considera que os surdos «não podem ter o mesmo ensino dos ouvintes e um professor sem formação ou ter um professor especializado em deficiência mental». Pensa também que «a Língua Gestual Portuguesa devia ser uma disciplina obrigatória como qualquer língua estrangeira, não só para os surdos, como também para os ouvintes». Diz ainda a propósito do currículo: «As outras disciplinas, como Desenvolvimento Pessoal e Social, também são muito importantes para os surdos, para que estes possam desenvolver as suas capacidades cognitivas, porque há falta de comunicação em casa, com a família».

Como referem Stoer e Magalhães (2005), o conhecimento tem vindo a assumir-se como o instrumento que confere competências ao serviço do posicionamento dos indivíduos no mercado de trabalho. Se a uma determinada comunidade linguística não são dadas as mesmas oportunidades de sucesso educativo, está-se à partida a condicionar e a limitar as competências que irão ser adquiridas e a remetê-los para saídas profissionais desvalorizadas. Por outro lado, o conhecimento assume-se também como uma forma de poder, uma espécie de literacia política, ao serviço dos projectos reflexivos dos indivíduos e dos grupos, potenciando a sua capacidade de agência (ibidem).

Foi devido a uma representação do surdo como ser limitado cognitivamente que este jovem foi mal orientado, acabando por isso por abandonar a escola no fim do 9º ano:

No 9º ano queria escolher Informática para terminar no 12º ano. Infelizmente, a coordenadora disse que não havia Informática, que devíamos tirar um curso técnico-profissional de Construção Civil. Este curso fez-me terminar. Não queria. Depois descobrimos que havia Informática. A escola mentiu.

Há neste discurso a insinuação da mentira, o que traduz alguma falta de confiança na sociedade ouvinte. Esta é uma ideia de que comungam muitos surdos. Sentem-se muitas vezes mal orientados na consecução dos seus projectos de vida.

Na Carta dos Direitos da Pessoa Surda, os representantes da Comunidade Surda Portuguesa, através da Federação Portuguesa das Associações de Surdos (FPAS), proclamam vários princípios, nomeadamente o direito a escolher a formação profissional e o emprego (artigo 8º). Esse direito também está consagrado na CRP, através do artigo 3º da Lei nº 38/2004. No entanto, a realidade é bem diferente. Só algumas escolas estão dotadas dos recursos necessários para atender à especificidade destes alunos, o que à partida reduz as ofertas. E, mesmo naquelas que estão vocacionadas para os receber, acontecem situações como as que acabaram de ser descritas. As escolhas são condicionadas e os alunos desencorajados de seguir determinadas opções. Rodrigues (2006) considera que não basta dar aos indivíduos ditos «diferentes» um lugar de possível acesso na sociedade. É necessário que a perspectiva inclusiva se alargue até estar assegurada a possibilidade de escolha e opção. Essa possibilidade de opção poderá até chegar à recusa de aceitar o lugar que a sociedade «preparou» e previu para a sua «colocação» (Rodrigues, 2006: 12). A frase atribuída a Samuel Goldwin «Include me out!» (cit. in Rodrigues, ibidem) é um exemplo limite do direito que qualquer pessoa tem de optar pela recusa do tipo de inclusão que lhe é oferecida.

Carlos Ferreira deixou a escola e foi trabalhar para uma empresa. Começou a tirar um curso nocturno de formador de Língua Gestual Portuguesa, na Associação de Surdos do Porto. Entretanto, a empresa onde trabalhava faliu e tornou-se formador a tempo inteiro. Na escola, onde começou a trabalhar, criou uma oficina de Língua Gestual Portuguesa, que estava aberta não só aos surdos, mas também aos ouvintes, pois considerava que estes alunos deviam «aprender língua gestual para poder comunicar com os surdos».

Os alunos surdos, na sua maioria filhos de pais ouvintes que não sabem língua gestual, não têm com quem conversar em casa. É na escola e mais propriamente na figura do formador surdo que encontram alguém mais velho a quem podem contar os seus problemas e pedir conselhos. O adulto surdo é o modelo com o qual se identificam. Como refere Carlos Ferreira,

ser surdo não é crime. Eu posso conduzir um carro, posso casar com qualquer rapariga, seja surda ou ouvinte, posso tomar um café, posso fumar. Eles olham para mim. É para saber que surdo é humano, não é nada diferente. (…) [E acrescenta] Imagina se não houvesse formador na escola, as crianças olhavam umas para as outras e pensavam que só existiam crianças surdas, não viam surdos mais velhos porque não existia formador.

Infelizmente, ainda há muitos surdos isolados, não só em Portugal, mas em outras partes do mundo. Emmanuelle Laborit, uma surda francesa, pensava que ia morrer criança, porque não conhecia outros surdos adultos:

Eu havia de «partir». Tal como o gato. Não me imaginava como adulta, via-me sempre criança. Toda a vida. Julgava-me limitada ao meu estado actual. E sobretudo achava que era única, só no mundo. «Só a Emmanuelle é que é surda, mais ninguém. Emmanuelle é diferente. Emmanuelle nunca há-de crescer». Eu não podia comunicar com as outras pessoas, portanto não era como as outras pessoas, os adultos. Ia pois «acabar». (...) Sei agora porquê: nunca tinha visto um adulto surdo. (Laborit, 2000: 36)

Cabe aos pais a decisão final sobre a escola que mais convém aos seus filhos e muitas vezes a opção baseia-se apenas no critério de proximidade à residência. Estes surdos acabam por crescer com o estigma da deficiência, não têm outros surdos com quem se possam identificar, nem sabem muitas vezes que existe uma comunidade surda com uma língua própria. Esta é uma das razões porque a tecnologia política da escolha está imbuída de forte contestação (Ball, 2008). Muitos autores vêem nela uma forma de desresponsabilização do Estado quanto às suas responsabilidades sociais e de regulação. Segundo Cookson (1994), o cliente substitui o cidadão, marginalizando quer séculos de pensamento sobre a educação, quer tentativas coerentes a partir do interior do próprio sistema para melhorá-la, o que acaba por ter implicações em termos de desigualdade social. Também Whitty (1996: 115) considera que «cada vez mais a educação é tratada como um bem privado em vez de ser vista como uma responsabilidade pública». Este autor explora as implicações da escolha parental em termos de justiça social e, baseando-se na experiência de um determinado número de países, conclui que esta tecnologia política tende a exacerbar as divisões sociais entre escolas e entre alunos que frequentam escolas diferentes. Argumenta que há uma necessidade urgente de conseguir um equilíbrio melhor entre os direitos dos pais e o dever das autoridades públicas de promoverem uma educação de qualidade para todos os alunos.

A Escola Superior de Educação de Coimbra criou no ano lectivo de 2005-06 uma licenciatura em Língua Gestual Portuguesa, direccionada para estudantes surdos e ouvintes. Antes não existiam cursos superiores nesta área. Existiam apenas cursos de formadores de LGP nas associações de surdos de Lisboa e Porto. Quando o curso foi criado, Carlos Ferreira ficou com receio de perder o seu emprego, de ser substituído por um ouvinte:

Estou preocupado com o meu futuro e com a minha profissão. Estou preocupado com as pessoas que vão sair deste curso, ouvintes que vão aprender LGP, mas que vão ter pouca prática. Estou a tentar estudar para ir para a universidade, para ser professor de LGP.

Apesar de as perspectivas não serem animadoras, este jovem decidiu voltar a estudar. Inscreveu-se à noite no ensino recorrente para tentar fazer o 12º ano e poder aceder ao ensino superior. As dificuldades, no entanto, eram muitas: «Os professores da noite têm falta de formação. Por exemplo, não consigo captar a atenção dos professores. Os professores não escrevem no quadro». Os professores especializados dão geralmente aulas de dia e em escolas vocacionadas para o ensino de surdos. O ensino recorrente ocorre à noite e é entregue a professores do ensino regular que não têm formação para trabalhar com estes alunos. Carlos Ferreira refere que os seus professores não recorriam a suportes visuais e quase nunca escreviam no quadro. Alguns davam apontamentos e esse era o único apoio que obtinha para o estudo. Não tinha intérprete e pensava por isso muitas vezes em desistir. Eram os colegas que lhe davam força e o incentivavam a continuar. André Soares referiu os mesmos problemas, a propósito do ensino superior: «Os professores falam muito e eu fico a olhar para eles. Como é que eu os vou perceber? Como é que eu vou escrever o que eles estão a dizer? Não consigo anotar nada».

Após a realização da entrevista a Carlos Ferreira, acompanhámos o seu percurso escolar e profissional. Este jovem conseguiu concluir o 12º ano, apesar de todas as dificuldades encontradas. No entanto, em vez de se candidatar à licenciatura de Língua Gestual Portuguesa, decidiu enveredar por uma outra via. Questionava o facto de todos os surdos optarem pela mesma saída profissional, o de docentes de LGP. Decidiu por isso matricular-se numa licenciatura em Educação Básica. O seu objectivo era ser professor do 1º ciclo de crianças surdas. Mas, mais uma vez, deparou-se com dificuldades várias, nomeadamente ao nível da produção de textos em Língua Portuguesa, requisito considerado fundamental para um professor deste nível de ensino.

A escrita dos indivíduos surdos apresenta inúmeras lacunas uma vez que a estrutura sintáctica da Língua Gestual Portuguesa é completamente diferente da estrutura do Português. Assim, em vez de produzirem textos em conformidade com as regras gramaticais do Português, a maioria dos surdos produz enunciados que se encontram ainda num determinado estágio de interlíngua, isto é, num sistema que deixou de ser fiel à primeira língua, mas que ainda não representa a língua alvo (Baptista, 2010). Um dos grandes desafios que se coloca ao ensino da Língua Portuguesa a surdos é o modo como se poderá ultrapassar este problema. A questão torna-se problemática quando um indivíduo surdo ambiciona ser professor. Foi por essa razão que Carlos Ferreira acabou por ser convidado a desistir do curso que tinha escolhido. Outro dos problemas que surgiu foi a questão de como se desenvolveria o seu período de estágio. Não estava previsto pela instituição onde estudava que este se fizesse numa escola de surdos e assim era mais um problema a resolver. Como é que um indivíduo surdo ia dar aulas a crianças ouvintes?

Devido ao empenhamento de alguns professores da instituição, sensíveis à problemática da surdez, houve um esforço para tentar contornar estes problemas e permitir a Carlos Ferreira prosseguir os seus estudos. Mas a luta e as dificuldades continuaram e com isso cresceu a sua desmotivação pessoal. Acabou por desistir, não só do curso, mas da vida.

Os testemunhos citados neste artigo mostram que, apesar dos novos discursos, as relações sociais continuam a não atender à valorização das diferenças. É por essa razão que Skliar afirma que na espacialidade e na temporalidade pós-moderna se instalou comodamente a ideia das transformações, «da imagem vertiginosa do mundo, daquilo que logo após ser nomeado deixa automaticamente de ser o que se acreditava» (2003: 196). Segundo este autor, tudo não passa de uma operação de cosmética, maquilhagem sobre maquilhagem e nada mais. Pergunta ele a propósito:

Onde fica o outro irredutível, misterioso, inominável, nem incluído nem excluído, que não é regido pela nossa autorização nem pelo nosso respeito, nem por nossa tolerância, nem pelo nosso reconhecimento para ser aquilo que já é e/ou aquilo que está sendo e/ou aquilo que poderá ser? (ibidem: 23)

Conclusão

Através da análise da entrevista autobiográfica de Carlos Ferreira, que confrontámos com o discurso de outro entrevistado e com testemunhos recolhidos da literatura, procurámos mostrar como os lugares do corpo, da identidade e da cidadania se podem constituir enquanto lugares de inclusão/exclusão social. Demos especial relevo ao lugar da cidadania e nesse âmbito ficámos a conhecer algumas das barreiras com que se deparam os surdos ao longo dos seus percursos escolares e o reflexo que isso tem em termos de expectativas profissionais.

O nosso entrevistado começou por sentir dificuldades no 1º ciclo do ensino básico, quer no relacionamento com os pares, quer no acompanhamento das aprendizagens. Foi com bastante esforço que conseguiu concluir esta etapa, tendo sido um estigma para ele ter que regressar ao 1º ano quando já estava no 3º. É importante não esquecer que a integração plena da criança surda passa necessariamente pela garantia de convívio num espaço onde esta possa assumir sem receio a sua surdez, onde possa expressar-se da maneira que mais a satisfaça, mantendo situações estimulantes de comunicação e de aprendizagem. Não deve ser nunca uma situação em que o aluno prescinda da sua identidade e da sua língua.

É no 2º ciclo que a perspectiva que este jovem tinha de si próprio vai mudar, pois descobriu finalmente a língua gestual. Este processo de reconstrução identitária não é isento de dificuldades, mas estas fazem parte do crescimento. Nesta fase, os pares e os surdos adultos que trabalham nas escolas desempenham um papel importante. Ao conviverem com eles, as crianças e os jovens surdos ficam a saber que não são únicos no mundo e que também eles podem crescer e construir um projecto de vida. Carlos Ferreira aprendeu LGP e adaptou-se à nova realidade. Pela primeira vez, começou a comunicar eficazmente com os professores e com os pares.

No 3º ciclo do ensino básico regressaram as dificuldades, pois a LGP não é usada como língua de acesso ao ensino. Sentiu-se mal orientado na escolha do curso de formação profissional e abandonou a escola. Regressa mais tarde para frequentar o ensino recorrente, mas a igualdade de oportunidades continuou a não existir para ele. Para conseguir ter sucesso teve que trabalhar e se esforçar muito mais do que os outros.

Conseguiu aceder ao ensino superior. Tinha uma especificidade própria que precisava de ser contemplada pelos outros. Não ouvia e por isso só podia aceder à informação e ao conhecimento através do olhar, de dispositivos visuais e dos serviços de um intérprete. No entanto, o processo não é fácil, porque às vezes os docentes esquecem-se que têm um aluno diferente dentro da sala de aula. Para além disso, a sua escrita é de surdo. Não a consideram adequada para quem quer ser professor.

Com este estudo procurámos mostrar que as situações de exclusão social continuam a ser uma realidade para muitos surdos. Consideramos no entanto que a surdez não tem que se constituir necessariamente como uma barreira ou como um problema. Os obstáculos estão na sociedade que insiste em se fechar às necessidades dos grupos minoritários, à especificidade dos indivíduos «outros», a um novo pressuposto de acessibilidade que ultrapasse o conceito meramente físico. Como referem Stoer e Magalhães (2005), não é possível ignorar o lugar donde parte o olhar ou fazer de conta que há apenas um lugar, porque a trajectória que toma não é inconsequente. Nesse sentido, continuar a insistir em «falar e fazer programas políticos para os “outros”, para os incluir, ou para os excluir, sem questionar e investigar a natureza da relação que existe entre o “Nós” hegemónico e os outros, definidos como diferentes» (ibidem: 10) é uma estratégia cada vez mais questionável. É importante deixar de contemplar a diferença apenas enquanto objecto do nosso discurso, por mais autorizado que seja. No mesmo sentido, não podemos esquecer que nós próprios também constituímos diferenças.

Promover a denominada igualdade de oportunidades através da criação de leis iguais para todos pode ser por isso uma grande falácia, que camufla outras narrativas e poderes desiguais que levam à discriminação e ao fracasso, quer escolar quer social, de muitos grupos culturais (Lopes, 1998). Quer os indivíduos quer os grupos têm características específicas, pelo que precisam de ser considerados na sua singularidade. Os direitos de cidadania só podem ser considerados como tal se atenderem à particularidade dos sujeitos.

Tal como Carlos Ferreira, consideramos que os surdos podem fazer tudo o que os ouvintes fazem, excepto ouvir. Depende da sociedade a construção de um mundo mais justo e com as mesmas oportunidades de vida para todos.

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