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Elielson Sales
Elielson Sales
Professor de Matemática
Matemática Visual: Um olhar etnomatemático sobre uma prática docente com alunos surdos
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Publicado em 2010
III Jornada Nacional de Educação Matemática e XVI Jornada Regional de Educação Matemática, Passo Fundo. Educação Matemática: tendências, desafios e perspectivas. Passo Fundo : Editora Universitária
Elielson Sales
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Resumo

Este estudo aborda o tema surdez e pretende discutir a participação de Surdos3 em práticas sociais que envolvem conhecimentos matemáticos. Com o objetivo de empreender uma re-interpretação de algumas experiências profissionais e acadêmicas, a partir das contribuições de alguns autores abordados na disciplina Educação Etnomatemática: História, Cultura e Prática Pedagógica do curso de doutorado em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP campus de Rio Claro, sob orientação do professor Dr. Pedro Paulo Scandiuzzi4. Nesse contexto, utilizei pressupostos teóricos que consubstanciam: a linguagem viso-espacial, a Etnomatemática, e ainda questões sobre bilinguismo, identidade, cultura e representação. Assim, neste estudo, entendemos que o grupo de Surdos difere do grupo de ouvintes por questões linguísticas e culturais. Acreditamos também que existam diferenças no interior de cada grupo. Ao término dessa incursão foi possível observar que os estudos em Etnomatemática deram suporte significativo às reflexões empreendidas e proporcionaram um “novo” olhar sobre a comunidade Surda. Percebi, também. que apesar de apresentarem histórias de fracasso escolar, o Surdo, possui experiências de participação significativa na sociedade, sejam estas mais autônomas, ou limitadas pela família, que contribuem para a constituição de aspectos linguísticos e culturais específicos de sua comunidade.

1. Introdução

Numa ótica sociológica [...] o surdo não é um deficiente, mas uma pessoa que tem uma forma de ver o mundo distinta da sociedade majoritária; os problemas enfrentados em sua vida não são físicos e intrínsecos ao indivíduo, mas de natureza política e relacional, pois residem precisamente no ponto de contato do indivíduo com uma sociedade despreparada para recebê-lo (WILCOX, 1994).

Minha vida acadêmica teve seu ponto de partida em 1993, quando ingressei na Universidade do Estado do Pará - UEPA, no curso de Licenciatura Plena em Matemática. Em 1996, por ocasião do término do curso, por necessidade e, também, desejo de socializar os conhecimentos, dei início às minhas atividades como professor da disciplina matemática em uma escola de Ensino Fundamental e Médio da rede privada na cidade de Belém/PA.

No ano de1999, atuando, substituindo outro professor, fui lecionar em uma escola pública estadual, e me deparei com uma 5a série que mudaria a minha história. A turma tinha uma média de 40 alunos - bastante agitados. Depois de duas semanas de trabalho, adentrei na sala e a turma não parava de falar, senti como se estivessem ignorando a minha presença (e estavam), analisei a situação e pensei na seguinte “estratégia”: vou ditar o conteúdo e quem estiver conversando vai perder as partes iniciais, isso fará com que a turma fique quieta, pois terão que se concentrar para copiar o conteúdo ditado. Fiquei totalmente empolgado com o plano que se afigurava infalível, anunciei em alto e bom som: “Atenção turma! Anotem lá no caderno de vocês”, foi quando um aluno que era o “líder” da turma, Wesley, falou: “o senhor não pode ditar”. Nesse momento a situação ficou muito difícil, pois, teria que reagir àquele desafio – afinal não poderia deixar que me desafiasse – eu era a “autoridade máxima” da sala de aula... Não poderia deixar que ele me impedisse de utilizar o método que julgava mais adequado para a situação em curso e indaguei: “como assim, não posso ditar?” O Wesley respondeu: “é isso mesmo! O senhor não pode ditar porque aquela aluna lá... (apontando para o fundo da sala) é surda”. Silêncio! O profissional “completo” desabou e por pouco não conseguiu indagar: “ela é Surda, como assim?” E a turma contribuiu para agravar ainda mais a situação: “é professor ela é surda, ela não escuta. Ela, ele, ela, ele...” E assim apontaram para oito colegas: Larissa, Brena, Ana Cláudia, Maria de Nazaré, Gisele, Madson, Raimundo e Flávio. Nesse momento eu só pensava em desaparecer da sala de aula, dei um sorriso “amarelo” para os “novos alunos” que a turma havia me apresentado e voltei-me para o quadro e escrevi tudo o que eu iria ditar e a turma aproveitou o meu estado atônito para fazer uma bagunça ainda maior. Esse momento foi o marco inicial, mesmo que traumático, das minhas atividades na educação de Surdos.

Após alguns meses percebi que o que está em jogo quando nos referimos às práticas pedagógicas realizadas com os Surdos é que esta, muitas vezes, em nada se difere das práticas destinadas aos alunos ouvintes. Parece-me também que a Matemática, no geral, tem sido considerada como que acessiva apenas a uma parcela “eleita” da população, tornando-se, assim, mais uma ferramenta de exclusão e, com isso, estigmatizando aqueles que não obtêm sucesso em tal disciplina. Outro fator que também parece estar em jogo é o fato de que muitas concepções precisam ser modificadas em relação à surdez, à pessoa Surda, à aprendizagem e a Matemática.

Considerando que tais questões são ainda pouco discutidas no cenário brasileiro, pretendemos dar contribuições a uma reflexão que possa contribuir para a revisão destas e de outras concepções tão importantes quando o assunto tratado é a prática pedagógica junto a pessoas Surdas. Nesse sentido, o estudo visa contribuir para tais discussões e eu caminhar reflexões aos seguintes questionamentos: como são as práticas sociais que envolvem os conhecimentos matemáticos no cotidiano e no contexto de Educação Bilíngue de pessoas Surdas? E quais elementos de tais práticas podem contribuir para o trabalho desenvolvido nas instituições educacionais e não educacionais? Com este intuito, envolvi aspectos lingüísticos, políticos e sociais, a partir da discussão teórica que abrange, entre outros, conceitos como culturas e representações, na tentativa de poder fornecer subsídios para a reflexão sobre a Educação Matemática dos Surdos.

Finalmente, ao recordar a minha trajetória acadêmica, lembro-me que durante os quatro anos na universidade nunca havia participado de discussões sobre Educação Especial e/ou Educação Inclusiva. E, sem descartar os vários elementos positivos do processo, hoje percebo que no meu curso de licenciatura plena fui educado durante anos para reforçar os movimentos de exclusão da pessoa com deficiência.

2. No Contexto da Experiência Acadêmica

Após um breve conhecimento sobre a pessoa Surda, propiciado por uma inserção em um primeiro curso de Língua Brasileira de Sinais - Libras 5, e ainda com inquietações que apenas a licenciatura plena em matemática não pudera responder, houve a necessidade da procura por especializações em Educação Especial. Tais cursos possibilitaram, além de novas discussões, uma significativa convivência com a comunidade Surda, o que me motivou ainda mais a buscar o mestrado e, atualmente, o doutorado em Educação Matemática do Programa de Pós-graduação em Educação Matemática - PGEM do Instituto de Geociências e Ciências Exatas - IGCE da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP campus de Rio Claro.

Vale ressaltar que as pesquisas feitas no mestrado evidenciaram a necessidade de se conhecer melhor a relação da L1, L2 e linguagem matemática no contexto de educação bilíngue. Sobretudo, pela área do Multiculturalismo, Plurilinguismo e Educação Bilíngue.

3. Sobre a Surdez, a Pessoa Surda e a Língua de Sinais

Autores como Lane (1992) apontam para o fato de que em grande parte da literatura produzida por ouvintes, os Surdos geralmente são classificados com referência ao grau de suas perdas auditivas ou com base na etiologia da surdez. Entretanto, tais classificações não constituem o foco deste estudo. Preocupa-nos apenas dizer que, aqui, os Surdos serão considerados parte de uma minoria linguística e cultural. Contudo, torna-se impossível não mencionar a existência de dois modelos de Surdez ainda presentes também em nossa sociedade: as perspectivas clínicas e as sócio-antropológicas.

Vale ressaltar tendo como base as idéias apresentadas por Cavalcanti (1999) que, quando o que está em jogo é a diversidade linguística, a distinção entre minoria e maioria está mais relacionada a poder (e prestígio) do que a quantidade.
Em síntese, poderíamos dizer que, segundo Skliar (1998), no modelo clínico a surdez é descrita em termos relacionados à noção de patologia e de deficiência e o Surdo é considerado um doente que pode ser reabilitado. De acordo com Skliar, quando outros especialistas, como antropólogos, lingüistas e sociólogos começaram a se interessar pelos Surdos, originou-se o modelo sócio-antropológico, no qual os Surdos são vistos como formadores de uma comunidade linguística minoritária, caracterizada por compartilhar uma língua de sinais e valores culturais, hábitos e modos de socialização próprios. Como podemos notar, a surdez e os Surdos são percebidos a partir de diferentes concepções, sejam elas baseadas na deficiência ou na diferença cultural e linguística.

Tratando mais especificamente da questão linguística, Cunha Coutinho (2003) coloca que a língua de sinais sempre foi à forma mais natural de comunicação entre os Surdos. Entretanto, durante muito tempo, a língua de sinais foi desvalorizada pela comunidade ouvinte, e talvez ainda o seja pelo não reconhecimento desta como língua. No Brasil, a Lei Federal 10.436/2002, decreta, o reconhecimento da Libras (Língua Brasileira de Sinais) como meio legal de comunicação e expressão, o que não implica dizer que tal reconhecimento tenha favorecido sua efetiva inclusão nas práticas educativas com estudantes Surdos. Acreditamos, porém, que a importância da língua de sinais deve ser projetada também para o cenário educacional do qual o Surdo participa. Na dinâmica imposta pelo processo de “inclusão”, somente a L2 - geralmente, em sua variedade de maior prestígio - não garante ao Surdo as condições necessárias ao seu desenvolvimento. Daí a defesa da inserção e valorização da L1 em ambientes educacionais em todas as suas atividades, apontando para um reconhecimento da especificidade linguística do Surdo e um abandono das tentativas de torná-lo ouvinte, principalmente no que diz respeito a sua comunicação. Entretanto, sabemos que ser surdo não implica ser falante de L1 e, muito menos, ser membro de uma comunidade Surda. Sabemos que existem aqueles que não se identificam e não querem ser reconhecidos como Surdos, ou seja, “deficientes auditivos”. Nesse sentido é preciso considerar que, igualmente a outros, os grupos de Surdos são compostos por sujeitos com diferentes identidades.

3.1. Abordagens na Educação de Surdos

Na fase inicial, da minha atuação como professor de matemática da Educação Especial, deparei-me com duas realidades, ou melhor, duas abordagens educacionais implementadas na educação de Surdos: visual-espacial e oral-auditiva, que se apresentavam de forma divergente no campo da educação desses indivíduos. Atualmente várias são as pesquisas (KARNOPP, 1994; QUADROS, 1995) na área da Educação Especial, para compreender como o Surdo, por meio da língua espaço-visual, constrói seu sistema de significados, utilizando-se de sistemas culturais e linguísticos, tal como os ouvintes se utilizam da língua oral auditiva. Os autores compartilham da idéia que, embora a língua de sinais seja uma modalidade linguística diferenciada, uma vez que utiliza o espaço para estabelecer a comunicação, isto não é obstáculo para que ela seja considerada, da mesma forma como a oral auditiva, um instrumento semiótico, através do qual os sujeitos humanos, como diz Alro e Skovsmose (2006), partilham e negociam significados.

Nesse sentido, apesar de ainda hoje existirem defensores da oralidade, sobretudo no meio escolar, considera-se que a língua de sinais é um instrumento potencialmente mais adequado para o Surdo construir seu conhecimento (FELIPE, 2000). Argumenta-se que, por meio da língua de sinais, é possível a expressão de conteúdos sutis, complexos ou abstratos, de modo que os seus usuários podem discutir qualquer área do conhecimento, da filosofia à política, utilizando-se dos seus recursos para consolidar a comunicação, como ocorre com qualquer outra língua, isto é, para conferir conteúdo significante aos objetos do mundo e às pessoas que o cercam.

Góes (1996) afirma que a língua de sinais deve ser entendida como a língua materna dos Surdos e, principalmente, é por meio dela que as outras estruturas se constituem. Nesta perspectiva, Góes (1996), parte do pressuposto de que não existem quaisquer limitações, cognitivas ou afetivas, que possam ser consideradas ligadas diretamente à surdez. Para a autora, é a qualidade e a diversidade de vivências e possibilidades relativas à consolidação de sua linguagem que determinariam a ocorrência de prejuízos na aprendizagem ou não para os Surdos.

Vale destacar que vários outros estudos compartilham desta posição, a exemplo, Quadros (1997), que pesquisando na área de aquisição da linguagem em crianças Surdas - filhos de Surdos - verificou que o contato precoce com uma linguagem viso-espacial e a sua função lingüística, proporciona a estas crianças um desenvolvimento na linguagem, contribuindo significativamente para a comunicação.

Nesse sentido, Fávero (2005) afirma que a progressão de interações visuais (esquemas sociais), ligadas num primeiro momento, a pessoas, num segundo momento, progridem para a interação visual vinculada às referências e a um posterior maquinar ou movimentar objetos, que levam, naturalmente, a criança ao desenvolvimento da capacidade de coordenar gestos relacionados às suas necessidades e, conseqüentemente, estabelecem tipos de comunicação que permitem pequenos ajustes sociais.

Finalmente, estas pesquisas (GÓES, 1996; FERREIRA-BRITO, 1997; QUADROS, 1997 e FÁVERO, 2005) têm demonstrado que crianças pequenas, Surdas ou não, utilizam-se, igualmente, da linguagem gestual para se expressar e comunicar com o mundo, assim como, estabelecer seus vínculos sociais, reforçando a necessidade de aprofundamento destas experiências linguísticas.

3.2. Cultura

Conceitos como cultura e identidade são sempre alvos de muitas discussões teóricas. Tratando do conceito de cultura, Silva (2006) coloca que a concepção mais corrente é fundamentalmente estática. Segundo o autor, trata-se de uma concepção na qual a cultura é vista apenas como produto acabado, finalizado. Neste sentido, a cultura só pode ser dada, transmitida, recebida. Contudo, em contraste a essa concepção estática, Silva ressalta a existência de uma noção essencialmente dinâmica de cultura. Outra perspectiva na qual a cultura seria vista menos como produto e mais como produção, como criação, como trabalho.

É dentro desta perspectiva de Silva e de Candau (2002) abordam a cultura é um processo em contínua construção, desconstrução e reconstrução, ou seja, a cultura não é, está sendo a cada momento. Partindo da possibilidade de interpretar a cultura de forma que ela não pareça única e estática, dando margem para o pensamento de diversas culturas não homogêneas, constituídas em diferentes momentos, considerando sua história e suas particularidades. Acredito, também, que as sociedades atuais são compostas por diferentes sujeitos e identidades, que as tornam palcos onde atuam simultaneamente múltiplas culturas que se interpenetram, mas não em relações de simetria. Deste modo, devemos então estar atentos às diferenças existentes entre o grupo de Surdos e o grupo de ouvintes e ainda, às diferenças existentes no interior de cada grupo e, às relações de poder presentes em tais sociedades.

Ao acrescentar tais elementos à discussão que se estabelece, pretendemos romper com a visão de “surdo genérico”, ou seja, com uma visão essencialista que considera como única característica determinante da identidade (no singular) da pessoa Surda - a própria surdez, sem considerar se tal pessoa é branca ou negra, rica ou pobre, homem ou mulher, etc.Pior, ignorando que cada indivíduo é fruto das experiências vivenciadas, das relações de significados que atribuem a elas.

Entretanto, não quero negar que, como Bueno (1998) adverte, a surdez é um traço de identificação, mas seria isso suficiente para dizer que os Surdos fazem parte de uma mesma cultura ou comunidade? Afinal, acreditamos que os processos de identificação não se constroem “naturalmente”. Assim, as discussões sobre identidade(s) se tornam relevantes para o presente estudo e, vale dizer que, o conceito de identidade é aqui compreendido como algo plural e em constante processo de construção e transformação.

Para mim, os processos de identificação são sempre conflituosos. Todo esse conflito certamente se faz presente nas significações que os Surdos produzem na dinâmica da sala de aula e em seus diversos processos de aprendizagem, e também se reflete nas possibilidades pedagógicas propiciadas pelos professores de matemática e outros que, muitas vezes, recebem esses Surdos sem o mínimo de conhecimento necessário sobre a surdez. Contudo, na busca por alternativas advindas de outras práticas sociais dos surdos, nas quais a aprendizagem de conhecimentos matemáticos também ocorra, é que essa pesquisa encontra relevância, na medida em que poderá auxiliar na discussão sobre os contextos escolares, concebidos como lugares sistematizados para a aprendizagem, porém, não como os únicos possíveis.

4. Aprendizagem e Conhecimentos Matemáticos

Quando falamos em aprendizagem, logo pensamos na escola, na sala de aula, no professor e no seu “trabalho” com o aluno.

Pensamos no aluno que aprende porque existe um professor que ensina e, muitas vezes, ao falarmos de aprendizagem, limitamo-nos ao espaço escolar. Isso porque, desde cedo, é passada a idéia de que devemos ir para a escola “aprender”, como se antes, fora dela, nada fosse aprendido (Fernandes, 2007, p. 20).

Contudo, é importante considerar que a aprendizagem ocorre também em outros locais e situações, talvez, não tão sistematizados quanto à escola. Afinal, a partir das idéias apresentadas por Wenger (2001), em sua obra intitulada: Comunidades de práctica: Aprendizaje, significado e identidad, pode-se concluir que a aprendizagem é um fenômeno social que faz parte de nossa vida cotidiana e que, portanto, não pode estar ligada apenas às imagens de aula, livros, professores, isto é, não pode estar ligada apenas ao contexto escolar. É um erro considerá-la, apenas, ligada à escolarização, ignorando os mais diversos conhecimentos matemáticos presentes no dia-a-dia em práticas que muitas vezes se diferem das práticas escolares.

Em se tratando do ensino e aprendizagem da matemática escolar, além da descontextualização, tem-se o desafio de torná-la palatável, conseguir, de fato, que os alunos aprendam. Para Gerdes (1989, p. 152),

[...] a necessidade de se reconsiderar toda a experiência escolar à luz do fracasso escolar de muitas crianças de comunidades minoritárias, é cada vez mais reconhecida. Aumenta a pressão para que o currículo escolar reflicta a naturaleza multi-cultural dessas sociedades. Como as fronteiras coloniais herdadas raras vezes tomaram em conta as realidades culturais existentes, muitos países do Terceiro Mundo vêem-se hoje em dia, no difícil processo da construção de uma ação, confrontados com a mesma necessidade de “multi-culturalizar” seus currículos, incl. seu currículo matemático.

Por essas e outras razões, tais preocupações fazem parte da agenda da Etnomatemática, sobre a qual, passamos a discorrer.

5. A Etnomatemática a as Interfaces com a Língua

Sabemos que todos os povos produzem diferentes tipos de conhecimentos tentando responder aos mais variados tipos de problemas e situações. Daí a necessidade de se acrescentar as idéias sobre a Etnomatemática, definida por D’Ambrosio como:

[...] a matemática praticada por grupos culturais, tais como comunidades urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, classes profissionais, crianças de uma certa faixa etária, sociedades indígenas, e tantos outros grupos que se identificam por objetivos e tradições comuns aos grupos (D’Ambrosio, 2002, p. 9).

Entretanto, para o autor, além desse caráter antropológico, a Etnomatemática apresenta uma dimensão política. A Etnomatemática não deseja rejeitar a Matemática Acadêmica, mas pretende discutir as relações de poder que a tornam legítima e superior, enquanto conferem aos outros tipos de conhecimento o status de mera curiosidade ou de folclore e, ainda, a idéia de que os conhecimentos matemáticos podem surgir de maneiras distintas daquelas impostas e aceitas pela escola.

À medida que conhecemos a Etnomatemática de um grupo social, este grupo passa a fazer parte de nós e seus hábitos e costumes serão respeitados, não serão folclore e nem tidos como “menores”, necessitando de uma reeducação (SCANDIUZZI, 2004, p. 198)

Retomando a questão da educação de pessoas Surdas, existe um fator relevante a ser considerado e que pude constatar ao longo da minha história como professor de matemática nos Institutos 6, a forte influência da LÌNGUA, leia-se diferenças e especificidades existentes entre a Língua Portuguesa e a Libras, que em situações de ensino - quando precisamos transpor didaticamente os conhecimentos matemáticos e mobilizar os alunos a construírem, elaborarem, os conceitos matemáticos relacionados ao conteúdo em uso, tais diferenças que se tornam, ainda maiores e mais concretas. Ademais, há de se considerar Fasheh (1980, p.8) quando afirma que “a cultura o modo pelos quais as pessoas vêem as coisas e compreendem conceitos”

Nesse sentido, Fasheh (1980, p. 14) aborda que

Nós devemos pedir os significados pessoais e culturais do conceito ou fato em lugar de pedir aos estudantes somente para memorizá-lo ou solucionar problemas de rotina relacionados a ele. A matemática pode ser usada para ajudar os estudantes a descrever, organizar, ver alternativas e tomar melhores decisões. Nós como professores e educadores de matemática, devemos encontrar meios de realizar isto.

Autores, como Moita Lopes (2006), têm indicado a necessidade de se pensar em uma linguística aplicada que incorpore teorizações relevantes das Ciências Sociais e das Humanidades. Nessa nova perspectiva, as práticas sociais e seus atores, as questões éticas, políticas e ideológicas tornam-se relevantes e ganham visibilidade. Trabalhos que se inserem na Etnomatemática também se aproximam de tais questões ao procurarem analisar, valorizar e divulgar as práticas sociais de grupos (geralmente, excluídos ou marginalizados).

Percebemos que também os estudos em linguística aplicada ampliam seus olhares para questões históricas, políticas, sociais e culturais, antes consideradas apenas em pesquisas de outras áreas. Moita Lopes (2006, p. 87-88), ao discutir novos modos de teorizar e fazer linguística aplicada coloca que:

[...] aqueles que foram postos à margem em uma ciência que criou outridades com base em um olhar ocidentalista têm passado a lutar para emitir suas vozes como formas igualmente válidas de construir conhecimento e de organizar a vida social, desafiando o chamado conhecimento científico tradicional e sua ignorância em relação às práticas sociais vividas pelas pessoas de carne e osso no dia-a-dia, com seus conhecimentos entendidos como senso comum pela ciência positivista e moderna.

Também a lingüística aplicada pode colocar seu foco de interesse naqueles que se encontram marginalizados, visando à valorização de seus conhecimentos, sem a intenção de hierarquizá-los. E, dentro dessas novas possibilidades de se fazer pesquisa, em contextos de minorias (e de maiorias tratadas como minorias), a preocupação com conceitos como identidades, culturas e representações torna-se cada vez mais freqüente. Enfim, pode-se dizer que é em busca desse novo jeito de se fazer pesquisa em Etnomatemática e em linguística aplicada que o presente projeto de pesquisa deseja caminhar.

6. Considerações Finais

Fernandes e Correia (2005, p.7) afirmam que “O sistema lingüístico é entendido, dentro das ciências humanas, como uma capacidade eminentemente humana de comunicação por meio de símbolos e é compreendido, também, como condição para o desenvolvimento cultural”. Segundo os autores, a capacidade de operar com signos, de forma completa e complexa, tal qual ocorre com a espécie humana, infere à aquisição da linguagem um perfil fundamental no processo de desenvolvimento cognitivo.

Nesse sentido a pesquisa revelou que é desse repertório vivencial que a criança retira elementos para os seus trabalhos. São, sobretudo, as formas e objetos que ela conhece que a estimulam de diferentes maneiras. São também formas e objetos que por sua singularidade e vivacidade causam-lhe prazer, alegria e admiração. Desse modo, é possível afirmar que a criança Surda também desenvolve a sua capacidade de representação simbólica por meio da visão, encontrando na Língua de Sinais, a modalidade visual - gestual, para se inserir no mundo em que vive e a partir daí organizar o raciocínio e desenvolver seus processos cognitivos. (BRITO, 1998).

Nesse sentido, pontua-se que a postura dos educadores deve ser de orientação ao Surdo, da maneira mais autêntica possível no seu processo de crescimento pessoal, social, cultural e de sua sensibilidade para que possa desenvolver o raciocínio.
Assim, o trabalho de resgate dos potenciais criativos, socializantes, cognitivos e afetivos só é possível ao Surdo se este puder utilizar os canais sensoriais que ‘estão intactos, principalmente a visão. Desta forma, pode tornar-se capaz de produzir símbolos e atribuir significados, de fazer abstrações e liberar o seu pensamento, e suas funções simbólicas.

Finalmente, considera-se que uma proposta pedagógica a ser implementada na educação de Surdos, principalmente em caso de surdez severa e profunda, deve estar baseada em atividades adequadas às necessidades especiais e específicas desses alunos, assim como em estratégias voltadas à construção de conteúdos semânticos que possam ser representados em língua de sinais, como meio para o desenvolvimento do potencial cognitivo. Tal proposição não exclui a L2 como instrumento importante para a aquisição da leitura e escrita, devendo fazer parte integrante do plano de atuação docente do dia-a-dia da escola.

Foi possível constatar que as relações de poder também têm seus efeitos na educação dos Surdos. Em resumo, poderia dizer que, apesar de suas histórias de fracasso escolar, os Surdos indicaram que conseguem participar da sociedade, e encontram modos próprios de se inserirem nas práticas matemáticas.

Certo de que não existirá nunca uma resposta que consiga contemplar todas as situações e especificidades, pois mesmo em grupo de Surdos existem notáveis diferenças entre seus membros, acreditamos que as pistas para a sua educação surgirão do próprio Surdo e do próprio contexto no qual ele possa estar inserido. Entretanto, impossível negar a carência por textos escritos pelos próprios Surdos que apontem suas expectativas, seus desejos, enfim, que permitam reflexões sobre a educação dos Surdos a partir de suas próprias idéias, significações e teorias.

Notas

5 Na abordagem bilíngue para a educação de Surdos considera a língua de sinais como a primeira língua - L1 - e a língua portuguesa como segunda língua - L2.
6 Unidade Escolar Especializada Professor Astério de Campos e Escola em Regime de Convênio Instituto Felipe Smaldone, que são unidades/institutos especializados na educação de Surdos do estado do Pará.

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