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Neiva de Aquino Albres
Neiva de Aquino Albres
Fonoaudióloga
Formação e trabalho docente de professores surdos para o ensino de Libras como língua materna
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Publicado em 2012
In: Anais do V Congresso Brasileiro de Educação Especial (V CBEE) / VII Encontro Nacional dos Pesquisadores da Educação Especial (VII ENPEE). São Carlos: UFSCar. pp. 663-679
Neiva de Aquino Albres
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Resumo

O reconhecimento da Libras como língua natural e como língua da comunidade surda brasileira é recente. O seu ensino para surdos como componente curricular e a formação de professores para este fim também o são. Este trabalho está focado na reflexão sobre a formação inicial de professor de Libras como língua materna no curso Letras Libras desenvolvido na modalidade a distância. Optamos pelo método dialético, usando o procedimento de grupo focal reflexivo com cinco professores recém formados (2010) da primeira turma do curso Letras Libras. Analisamos os discursos enunciados neste espaço coletivo a partir dos indicadores do que foi prescrito ou informado para as ações destes professores, as exigências em relação aos saberes específicos dos surdos professores de Libras como língua materna. Finalmente, com base na abordagem histórico-crítica, exploramos uma alternativa de formação baseada na práxis formativa, teoria e participação na prática social. Apontamos mudanças para a formação e ação desse professor, a caminho da educação bilíngue para surdos.

Introdução – Educação Bilíngue para surdos

A educação de surdos no Brasil já vivenciou diversas diretrizes. No Final da década de 1980 passa a usar a língua de sinais junto à fala do português na educação. Em virtude da visão de que línguas de sinais eram inferiores e formas concretas de representação, até o final dos anos de 1990, as pessoas com surdez foram tolhidas do direito de fazer uso de sua língua no espaço educacional, uma vez que, como aponta Albres (2005), a política de educação nacional na década de 1980 primava pelo ensino da fala em detrimento, inclusive, dos outros componentes curriculares.

Foi somente no final dos anos 90 que escolas de surdos em todo o Brasil incorporaram a Libras como meio de instrução e as universidades passaram a contratar intérpretes dessa língua para acompanhar acadêmicos surdos em cumprimento à portaria n.º 1.679 de 2 de dezembro de 1999.

O reconhecimento científico e político da língua de sinais no Brasil como língua natural foi fundamental para a construção de projetos de implementação de educação bilíngue para surdos. Foram mais de 100 anos de educação oralista (educação em que os surdos são considerados “deficientes” e as línguas sinalizadas, “incompletas”) que resultaram em narrativas discriminatórias sobre os surdos e sobre a língua de sinais, nos diversos setores de sua vida social. Tornando atualmente necessário mudar os rumos da educação dos surdos, até então, centrada na fala e escrita da língua oral do país, voltando-se agora para a língua dessa minoria linguística, aprendê-la e aplicá-la como língua de instrução na educação.

O modelo bilíngue adotado no Brasil é de que a pessoa surda deve ser exposta o mais precocemente possível a uma língua de sinais, e o português como segunda língua, em sua modalidade oral e/ou escrita, sendo que será ensinado com base nos conhecimentos adquiridos por intermédio da língua de sinais (LACERDA E MANTELATTO, 2000, p. 38).

Um dos problemas a ser superado com o recente reconhecimento das línguas de sinais tem sido a necessidade de conhecimentos linguísticos de pais, de educadores e de intérpretes de crianças e jovens surdos. “Há pouca qualidade do ensino de Libras no Brasil” (LEITE, 2001b, p. 21).

O decreto n.o 5.696 (2005) prevê a formação de profissionais que trabalhem no ensino e tradução dessa língua em cursos de letras-libras e em cursos de especialização em Libras. A Educação Bilíngue é garantida e a Libras reconhecida como língua materna e língua de instrução na educação. A Libras torna-se matéria de ensino desde Educação Infantil, Ensino fundamental, em cursos livres e em disciplinas nas Instituições de Ensino Superior.

A formação dos professores de Libras indicada no decreto supracitado como formação inicial deve ser por meio do curso de graduação em Letras com habilitação em Libras. As primeiras turmas dessa formação foram organizadas na modalidade a distância e coordenado pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006 a 2010).

Por meio da análise do discurso de professores surdos formados por este curso, buscamos explicitar a rede composta por saberes docentes, mobilizados pelos acadêmicos durante o último período de instrução formal. Momento este em que participaram do período de estágio docente.

Como os professores em formação recebem e compreendem a enunciação de outrem (professor e colegas) e como essas enunciações orientam as suas próprias palavras e a elaboração de conceitos e práticas (sobre formas de ensinar)? Temos como objetivo perceber a relação entre os conjuntos de elementos que como alunos utilizam (dizeres, objetos, vivencias) no processo de elaboração de sua didática.

Referencial teórico

Os saberes docentes, por sua vez, são concebidos como “um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais” (TARDIF, 2002, p. 36). Por focalizarmos professores em formação, os saberes experienciais possuem a especificidade de serem pouco marcados pela prática profissional atuando na docência, mas sim, pela experiência dos acadêmicos ainda como alunos da educação básica. Adotamos a abordagem sociológica dos saberes docentes, pois nos interessamos pelos “aspectos ideológicos, tensões e conflitos que subjazem às relações sociais, relativamente ao ensino e aos processos de produção, distribuição, apropriação dos saberes” (BORGES, 2004, p. 64).

A discussão da Libras como disciplina escolar é muito recente, como também a necessidade da formação de professores para esta língua. Para Saviani (2011, p.17) o “clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado” [...] “por meio da organização de um conjunto de atividades nucleares distribuídas no espaço e tempo escolar”.

Silveira (2006) aponta que são poucos os surdos com formação pedagógica e mesmo os que a tem não sabem elaborar um currículo de disciplina escolar. Registra que em 2006 o ensino de Libras em escolas de surdos completa aproximadamente dezesseis anos, tem verificado muita improvisação, os professores surdos formados pela FENEIS como instrutores de Libras para trabalhar com ensino dessa língua para ouvintes são contratados para serem professores de Libras nas escolas de surdos pela falta de profissional habilitado nessa área.

Na tentativa de sistematizar essa ação o MEC (BRASIL, 2006) a partir de uma visão de educação inclusiva propõem algumas funções para o instrutor surdo de Libras na educação infantil, são elas:

Professor surdo: - ser regente de turmas de creche ou préescolas, desenvolvendo o currículo em LIBRAS; - proporcionar ao aluno com surdez a aquisição da LIBRAS; - participar do apoio pedagógico ao aluno na sala de apoio ou sala de recursos; -desenvolvendo atividades como contar histórias, ler poesias e ensinar brincadeiras; - auxiliar na construção da identidade da criança com surdez, servindo como modelo; - ensinar LIBRAS para as crianças ouvintes, funcionários e toda comunidade escolar; - auxiliar os professores ouvintes regentes das turmas que têm alunos com surdez; - participar, juntamente com o professor ouvinte, de encontros, eventos e reuniões na comunidade escolar. (BRASIL, 2006, p. 26)

Os professores em formação continuada passam por um processo que revelam a força da apreensão do “saber escolar”, da ressignificação do conceito de ensinar-aprender mediado pela ação pedagógica que vivenciam na universidade. Consideramos ser o professor a peça fundamental que coordena toda a ação, a planeja usando os instrumentos necessários para chegar ao êxito do seu trabalho, compreendendo sempre que as formas e abstrações são subjetivas e individuas e dependem de diversos fatores.

Saviani (2011, p. 122) compreende “o professor, enquanto alguém que, de certo modo, apreendeu as relações sociais de forma sintética, é posto na condição de viabilizar essa apreensão por parte dos alunos, realizando a mediação entre aluno e o conhecimento que se desenvolveu socialmente”.

No início da profissão, os professores são mergulhados na prática, nos conflitos de condições reais de ensino-aprendizagem do objeto que pretendem ensinar, nesse caso a Libras.

Os saberes experienciais adquirem também uma certa objetividade em sua relação crítica com os saberes disciplinares, curriculares e da formação profissional. A prática cotidiana da profissão não favorece apenas o desenvolvimento de certezas “experienciais”, mas permite também uma avaliação dos outros saberes, através da sua retradução em função das condições limitadoras da experiência. Os professores não rejeitam os outros saberes totalmente, pelo contrário, eles os incorporam à sua prática, retraduzindo-os porém em categorias de seu próprio discurso. Nesse sentido, a prática pode ser vista como um processo de aprendizagem através do qual os professores retraduzem sua formação e a adaptam, eliminando o que lhes parece inutilmente abstrato ou sem relação com a realidade vivida e conservando o que pode servir-lhe de uma maneira ou de outra (TARDIF, 2010, p. 53).

Para o professor é necessário muito estudo, a busca por uma melhor compreensão do conceito que deseja trabalhar com os alunos, isto nos reporta a relação entre conteúdo e método (FONTANA, 1996). A forma de organização pedagógica dentro de uma perspectiva histórico-crítica requer uma sólida formação conceitual do professor nas áreas que se propõe ensinar, formação didática e compreensão das estratégias de aprendizagem e de como os alunos apreendem novos conceitos (idem, 1996).

Metodologia

A concepção dialética materialista histórica nos fornece a lente para olhar o objeto de estudo em questão. “A dialética situa-se, então, no plano da realidade, no plano histórico, sob a forma da trama das relações contraditórias, conflitantes, de leis de construção, desenvolvimento e transformação dos fatos” (FRIGOTO, 1994, p.75).

A consciência é a representação que fazemos das coisas, as idéias que construímos e estas são diretamente imbricadas com a atividade material, ou seja, com as relações sociais, com o processo de vida ativo. Nessa perspectiva, qualquer análise parte do processo real de vida e dos ecos ideológicos deste processo de vida. Como parte do instrumento de pesquisa está o discurso.

O texto produzido pelo homem é o principal objeto de investigação, este texto reflete outros textos possíveis de um determinado contexto e constrói esferas de sentidos. Um texto emerge na fronteira entre duas consciências, dois sujeitos (BAKHTIN, 2010). Dessa forma, o foco para a construção dos dados será desenvolvida a partir de trocas, dos diálogos desenvolvidos entre os professores de LIBRAS em formação continuada sobre o seu fazer pedagógico e as concepções que construíram até o presente momento.

Optamos pelo grupo focal reflexivo como instrumento metodológico coerente com a pesquisa qualitativa da abordagem histórico-cultural. Consiste da formação de grupo de discussão composto por sujeitos que apresentam características em comum. O critério de participação de professores (sujeitos) foi: a) ter sua formação em capacitação pela FENEIS e graduação (licenciatura em Letras Libras), e b) atuarem como professores no ensino da Libras. Participaram de dez encontros de estudo 5 adultos surdos proficientes em Libras, com idade entre 27 e 50 anos.

Nesta perspectiva o pesquisador/participante tem como papel “lançar questões e os focos de discussão e refletir junto com os sujeitos buscando uma compreensão responsiva ativa. Manter os objetivos do trabalho, controlar o tempo”. (BELLOTI, 2010, p. 42) Para Guimarães (2006, p.158) “é necessário que a condução seja feita com base num roteiro previamente estabelecido, mesmo com a inserção de questões circunstanciais”.

As enunciações proferidas em grupo de estudo entre professores se configuram como dado de pesquisa a ser ressignificado e interpretado. Enunciações que revelam crenças implícitas, valores, ou seja, a subjetividade dos professores. Há um “valor da compreensão construída a partir dos textos signos criados pelo homem, portanto, assinalando o caráter interpretativo dos sentidos construídos” (FREITAS, 2003, p. 28).

Análise dos dados

A Libras como disciplina curricular em escolas de surdos é introduzida apenas na década de 90 e com pouca estruturação. Professores e instrutores surdos começam a ser contratados em escolas especializadas, mas a pequena formação e a falta de experiência com o ensino da Libras como língua materna resultou em equívocos metodológicos (PEREIRA, 2008).

Em um desses encontros, o grupo de recém formados em Letras Libras (turma 2006 - 2010) estava discutindo sobre seu processo de formação e sobre as oportunidades de trabalho no início de carreira e as dificuldades que enfrentam.

Primeiro Episodio:

Claudia Trabalho no colégio de integração Caminho de Luz (nome fictício), este é nome da escola, tem crianças surdas e ouvintes. Eu dou aula para os professores.
Eu tinha muita vontade de trabalhar lá, pois quando eu fiz o estágio no último período do curso Letras Libras. Antes de terminar o curso, lembra? Eu fiz o estágio na escola HK. Conheci muitos alunos surdos que eram super oralizados, mas escreviam muito mal. E descobri que eles tinham vindo desta escola que eu trabalho agora. Também foi este meu interesse em trabalhar lá.
Pesquisadora Tem professores surdos que têm contato com os alunos surdos?
Gustavo Quem da aula para os surdos?
Claudia Não, não tem professores surdos. Eu só dou aula de Libras para os professores ouvintes no período noturno e eles (ouvintes) que são os professores dos alunos surdos.
Fonte: 1º encontro de 2011 - Vídeo 1 (8:06 a 8:17 minutos)

Os professores surdos relatam que têm pouco espaço de trabalho, mesmo em escolas de surdos. Silveira e Rezende (2008) mostram o quão inferior o surdo se apresenta no contexto profissional, observaram no ambiente educacional várias distorções. Consideram que historicamente os surdos são chamados para serem o “dicionário ambulante” (de Libras) de muitos professores na escola.

Há aí uma questão de formação e de confiabilidade no profissional. Lacerda e Caporali (2001) abordam que historicamente há dificuldade em encontrar instrutores surdos com uma formação adequada que consiga contemplar os aspectos desejados para o ensino de Libras como língua materna ou como segunda língua. Dessa forma, muitas vezes, o trabalho do instrutor surdo precisa ser orientado e acompanhado. Assim também indicam Dias e Pedroso (2000).

Lodi (2005) recomenda a necessidade de professores surdos no sentido de que

[...] a construção da subjetividade do ser surdo depende, fundamentalmente, da relação que eles estabelecem tanto com seus pares quanto com ouvintes e, nesse sentido, a presença de professores surdos na educação ganha relevância para a construção de uma percepção positiva da surdez pelos alunos (LODI, 2005, p. 419).

Nesta perspectiva, o professor surdo ou instrutor surdo é importante como outro que contribuirá com a constituição das crianças surdas em relação com um todo social diverso, não mais só pautado na percepção de um mundo exclusivamente ouvinte, mas convivendo com coexistência de duas formas de vivenciar o mundo.

Para Rebouças (2009) o professor surdo “vive” o que “ensina”, ressalva que se faz muito importante o “contato” e a “convivência” com uma pessoa surda. Martins (2010) indica a importância do professor surdo bilíngue, visto que favorece o processo de construção do conhecimento da criança surda pelo compartilhar de reflexões metalinguísticas específicas, subjetivamente particular às pessoas com surdez e tem efeitos significativos na elaboração conceitual e na construção de uma identidade surda.

Consideramos que apesar da formação inicial se faz necessário um trabalho de formação continuada e de aprofundamento em aspectos específicos do processo de ensino-aprendizagem de Libras como primeira língua. A enunciação de Claudia: Eu tinha muita vontade de trabalhar lá [...] Não, não tem professores surdos. Eu só dou aula de Libras para os professores ouvintes [...]. Claudia aponta para a valorização do trabalho do professor surdo, ou seja, ter espaço social para atuar, revela o desejo de atuar com crianças surdas no ensino de L1 e o confinamento imposto ao ensino de L2. Dado aos modos como as escolas ainda estão estruturadas, a caminho para consolidação de uma abordagem bilíngue de educação de surdos.

Segundo episódio:

Pesquisadora Quando vocês são convidados a dar aula de Libras de onde vocês tiram subsídio para construir suas práticas pedagógicas? Onde se inspiram para construir o plano de aula e para a prática em sala de aula?
Gustavo Eu vejo o material do curso Letras Libras, das disciplinas anteriores.
Claudia Eu percebi que no curso de capacitação da FENEIS discutíamos mais a prática em sala de aula, mais como fazer uma atividade. No Letras Libras nos mostravam muitas teorias com pouca prática.
Gustavo O Letras Libras era mais profundo.
Claudia O interessante é que paralelo ao curso Letras Libras muitos dos formandos já trabalhavam e com a troca de experiências entre os colegas pudemos aprender mais. Se eu tinha alguma dúvida, discutia com os colegas e trocávamos atividades.
Por exemplo, quando me pediram para preparar algumas aulas, já em um nível mais avançado, de crianças maiores, eu não sabia muito bem o que fazer, o que eu iria ensinar. Chegava lá e trabalhava conversação com os alunos, mas sem um propósito muito definido. Senti que faltava alguma coisa. Tinha um professor que tinha mais experiência que eu, ele até me deu algumas dicas, mas parece que tudo aquilo eu já tinha feito, não tinha nada de novo. Parece que não funcionava, não sabia qual era o caminho.
Gustavo Verdade, não tem livro. Eu monto minhas próprias apostilas.
Claudia O problema não é só material. A questão é olhar para nossa prática. Vejo que ainda falta muito para mim, não tenho uma prática boa. Aprendi muita teoria, mas não a prática, a realidade em sala de aula é diferente, por exemplo, de tudo que sabemos de fonética e fonologia. Não posso pegar este conhecimento e simplesmente transmiti-lo aos alunos ou jogar esse tema em sala de aula.
Fonte: 2011 – 1º ENCONTRO - Vídeo 2: 14º minutos

Um trabalho pedagógico da Libras como língua materna requer a introdução da Libras como parte do projeto político pedagógico de uma escola de surdos ou de escola bilíngue inclusiva. Não se pode esperar que o professor surdo seja o único responsável por ministrar algumas aulas e o problema da Libras está resolvido.

O que a professora surda Claudia relata é a preocupação com uma prática em sala de aula, muitas vezes esvaziada da teoria que em sua formação inicial não se fez consistentemente articulada com a teoria. Ela questiona a improvisação e a falta de um saber da ação, e questiona o quão valorizado foi em sua formação o saber “erudito”, de conhecimentos científicos, como aqueles encontrados nas disciplinas universitárias.

Esses conhecimentos exigem também autonomia e discernimento por parte dos profissionais, ou seja, não se trata somente de conhecimentos técnicos padronizados a serem listados e lançados mecanicamente diante de uma situação ou outra, como se fossem um procedimento a ser seguido ou uma receita. É o oposto disto.

Os conhecimentos profissionais exigem sempre uma parcela de improvisação e de adaptação a situações novas e únicas que exigem do profissional reflexão e discernimento para que possa não só compreender o problema como também organizar e esclarecer os objetivos almejados e os meios a serem usados para atingi-los (TARDIF, 2000, p. 07).

É o que Schön (1983 apud TARDIF, 2000) chama de “construção do problema”, em oposição à “resolução instrumental do problema”, que seria baseada na aplicação de teorias e técnicas prévias. Assim, o processo de ação pedagógica se caracteriza por um coeficiente de indeterminação (I) no trabalho em relação a um coeficiente de tecnicidade (T). Ser profissional é ter condições de administrar a razão entre indeterminação (I) e tecnicidade (T) na realização do processo de trabalho, o que exige dos profissionais uma construção de julgamentos em situações de ação.

Todavia, a fala da professora Claudia indica também a situação concreta das escolas do trabalho individualizado, de metas específicas de cada professor pouco articuladas com o coletivo. Um trabalho pedagógico da Libras como língua materna requer a introdução da Libras como parte do projeto político pedagógico de uma escola de surdos ou de escola bilíngue inclusiva. Não se poderia esperar que o professor surdo fosse o único responsável por ministrar algumas aulas e com isso propiciar a aquisição da linguagem, a Libras não pode ficar a cargo exclusivamente do professor de Libras.

Bakhtin / Volochínov (1992 [1929]) discute sobre os sentidos construídos na dialogia – mas como um propósito para o locutor. A professora Claudia fala sobre a aula de conversação: “Chegava lá e trabalhava conversação com os alunos, mas sem um propósito muito definido. Senti que faltava alguma coisa” – revela, que ela como locutora, como quem conduzia a “conversação” em sala de aula não sabia muito bem o que fazer, como fazer. Assim, há um propósito no fazer dela que fica esvaziado e ela questiona o sentido maior de seu fazer (ensino de Libras para crianças surdas). Ensinar uma língua é mais que usar a língua entre interlocutores, Claudia percebe isso e quer ‘teorizar’ sobre sua prática para poder exercer uma ação consciente de ensino. A aula poderia até ser de conversação, mas se dá conta que o professor precisa ter uma finalidade para o grupo, percebendo que naquele momento, não tinha objetivos implicados para ela como professora.

Basso, Strobel e Masutti (2009) indicam que para crianças pequenas da educação infantil e primeiros anos do ensino fundamental geralmente se tem trabalhado com vocabulário por campo semântico em brincadeiras. Na disciplina de “Metodologias de ensino de primeira língua” do curso Letras Libras foi enfatizada a importância da dinâmica de contação de histórias em Libras, sendo que para alunos surdos maiores, dos últimos anos do ensino fundamental, é introduzido o trabalho de análise linguística (gramática da Libras).

Todavia, estas informações são poucas para quem de fato vai assumir uma disciplina de Libras ao longo de um ano letivo. Quem todos os dias precisa ter algo preparado para enfrentar uma sala de aula e tem a responsabilidade de proporcionar às crianças surdas um espaço de aquisição da Libras, visto que nas famílias desses alunos a maioria das pessoas, inclusive seus pais, são ouvintes e não sabem Libras.

A palavra alheia (da Universidade) é incorporada pelos formandos como um dizer valorizado, e seu sentido é estabilizado neste momento, apesar de poder sofrer transformações conceituais por toda sua vida. Vejam que Gustavo valoriza a Universidade por ter lhe proporcionado “um conhecimento mais aprofundado”. Todavia, a palavra é reconhecida e re-elaborada por eles, entrelaçando-se dinamicamente a suas palavras interiores e suas experiências. Pela elaboração conceitual de conteúdos acadêmicos e científicos e pelo enfrentamento de uma sala de aula, provinda da escola a Claudia constitui-se como ser docente e reflexivo, criticando sua própria formação inicial.

Claudia preocupa-se em não produzir uma prática desprovida de princípios e de teoria, ou seja, sem fundamentação. Isso é o que tem acontecido com o ensino da Libras. Pesquisas indicam ser comum a tradução e comparação da Libras com o português, objetivando ajudar os alunos surdos no aprendizado da escrita. Pereira (2008) adverte que mesmo nas escolas que tem professores surdos os mesmos desenvolvem uma prática que valoriza o português. Em todas as observações feitas da aula de Libras, feitas por Pereira, as atividades tiveram a presença da língua portuguesa, embora a aula fosse de Libras como L1. Esse fato, de certa forma, contradiz várias concepções linguísticas sobre primeira língua e, até mesmo, as reivindicações linguísticas e políticas da comunidade surda.

Em aula de Libras observada Pereira (2008) relata que era comum a dinâmica de o professor ditar sinais que possuíam as configurações de mão, anteriormente citadas, e os alunos terem que escrever a palavra correspondente em língua portuguesa. Considera que a Educação de Surdos precisa passar por profundas mudanças conceituais e os professores surdos de Libras como L1 são mal preparados por curso de capacitação. Importante se levantar esses equívocos e apontar caminhos para a superação e transformação. Assim, Pereira (2008) recomenda que:

A Libras, [...] pode ser trabalhada como um gênero oral no sentido que as interações, e informações são feitas de uma forma presencial, assim como as culturas de línguas orais e que são ágrafas. Contação de histórias, piadas e outros gêneros podem ser trabalhados de muitas maneiras criativas que coloquem em questão, para as crianças surdas, “as diferentes formas de dizer”, determinadas por diferentes situações comunicativas (PEREIRA, 2008, p.14).

O que os professores indicam precisar é de um repertório de atividades práticas para aplicar em sala de aula. O professor Gustavo indica que consulta materiais didáticos e cria suas próprias apostilas, como uma adaptação de materiais já existentes.

A questão é que os materiais de Libras disponíveis no mercado são destinados para alunos ouvintes e com o objetivo de ensino de Libras como segunda língua.

Como lembra Kleiman (2001, p. 17), os livros didáticos estão cheios de exemplos em que texto é apenas pretexto para o ensino de conteúdo gramatical, isto é, para procurar adjetivos, sujeitos ou frases exclamativas, e assim as atividades tornam-se desmotivadoras. Mais complexo ainda se torna a tentativa de adaptação de um material de português ou de Libras como L2.

Os professores surdos, como revelado no segundo episódio, conservam em suas aulas resquícios de uma metodologia tradicional do ensino de língua, já que propunham as atividades com base nestes livros ou em suas experiências como alunos.

Há orientações no material base do livro de formação em Letras Libras da disciplina de “Metodologia de ensino de Libras como língua materna” para a organização de planos de aula e projetos em que é explicitada a importância de trabalhar com a leitura de textos em Libras e gêneros diversos. Porém, se nas atividades os professores se baseiem em atividades de Livro didático as atividades realmente aplicadas não implementam tal intenção. Nos deparamos novamente com a dicotomia entre teoria e prática. Saviani afirma que:

[...] a prática tem primado sobre a teoria, na medida em que é originante. A teoria é derivada. Isso significa que a prática é, ao mesmo tempo, fundamento, critério de verdade e finalidade da teoria. A prática, para desenvolver-se e produzir suas conseqüências, necessita da teoria e precisa ser por ela iluminada. Isso nos remete à questão do método. (SAVIANI, 2008 - 1944, p. 142)

Este é a essência do processo pedagógico, do movimento da apropriação de um conceito, da reflexão, “em que se passa da síncrese à síntese pela mediação da análise”. (SAVIANI, 2008 – 1944, p. 142). Ao professor de Libras, assim como para qualquer outro professor é necessário desenvolver a competência para transformar um conteúdo científico em conteúdo escolar, respeitando as características dos alunos (idade, maturidade, conhecimentos prévios, entre outros).

A desvalorização do conteúdo transmitido na Universidade não resolve o problema, isso leva os professores à busca por “dicas”, como dito por Claudia, de professores mais experientes ou através de outras fontes. Uma prática distante da teoria, ou seja, sem fundamento em uma concepção de língua, concepção de ensino aprendizagem e de homem não ajuda ao professor. Da questão levantada por Claudia recorre um problema: Como estudar a língua sem reduzí-la a um sistema abstrato de normas, despido dos contextos de uso?

Bakhtin/Volochínov (1992) propõe uma ordem metodológica para o estudo da língua, nos serve para o estabelecimento de uma metodologia de trabalho.

  1. As formas e tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza.
  2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal.
  3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual (BAKHTIN/VOLOCHIVÓV, 1992, p.124)

Partindo destes princípios podemos pensar uma prática de ensino de língua materna que em sua aplicação com crianças surdas, na construção coletiva de professores surdos adultos com formação inicial poderiam de fato produzir conhecimento tanto na perspectiva de teorias sobre metodologia de ensino, didática visual e de materiais específicos para o ensino de Libras para crianças surdas.

“A responsabilidade de tornar possível o acesso desse conhecimento ao aluno, como um ser em processo de desenvolvimento de suas capacidades essencialmente humanas, cabe ao educador” (MILLER, 2009, p. 484). Nesse processo a metodologia de ensino-aprendizagem adotada se constitui um elemento importante da prática docente e a formação dos professores deve primar por este conhecimento, por saber prático.

Considerações finais

A Educação Bilíngue tem sido indicada como diretriz para educação de surdos no Brasil. Entretanto, para sua execução é necessária toda uma reestruturação do sistema educativo, dentre eles está a formação dos professores surdos de Libras.

Constatamos que as reflexões sobre a complexidade do processo pedagógico advinda dos próprios professores surdos formados em curso Letras Libras revelam uma concepção crítica da sua formação, principalmente do processo de ensinar uma língua fazendo uso dos conhecimentos adquiridos na formação inicial.

Desenvolver a capacidade de transitar entre conteúdos da área a que se dirige a prática do ensino e a ciência que constrói esse conhecimento, como também conhecer a educação e seus aspectos didáticos de como ensinar é difícil tarefa e requer uma formação atenta para esta problemática.

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