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Neiva de Aquino Albres
Neiva de Aquino Albres
Fonoaudióloga
Ensino de Libras como segunda língua e as formas de registrar uma língua visuo-gestual: problematizando a questão
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Publicado em 2012
ReVEL, v. 10, n. 19
Neiva de Aquino Albres
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Resumo

O objetivo do presente trabalho é analisar a interação em sala de aula de curso de Libras intermediário, e nela discutir as estratégias envolvidas no ensino-aprendizagem que de alguma forma demandam o registro da língua de sinais por meio da escrita. O referencial teórico está pautado na perspectiva sociocultural de Vygotsky (2001), especialmente o conceito de sentido e de consciência, como também por Bakhtin (1992). Faremos uso dos princípios do método de Vygotsky (1998) em que se analisam os processos das interações e não apenas os produtos finais alcançados. Essa abordagem articula a gênese das interações sociais com o exame do funcionamento dialógico-discursivo. Analisamos dois episódios de interações em sala de aula. Constatamos que a busca pelo sentido da palavra proferida pelo outro ocupa um lugar de destaque e a aprendizagem é mediada pelos sinais e pela língua materna – falada e escrita em forma de glosa da Libras.

Introdução

Em 2002, a língua brasileira de sinais (Libras) foi reconhecida como meio legal de comunicação e expressão dos surdos brasileiros pela Lei Federal n. 10.436. Três anos mais tarde, em 2005, a Libras foi regulamentada pelo Decreto n. 5.626, o qual prevê a formação de profissionais que trabalhem no ensino e tradução dessa língua em cursos de Letras-Libras e em cursos de especialização em Libras.

O ensino da Libras sofre um grande movimento a partir dessa legislação com aumento de cursos, aumento da demanda de profissionais e de material didático. A preocupação com a formação e certificação dos profissionais que atuam no ensino desta língua passa a ser programa de governo (Albres, 2005). Todavia, ainda a descrição das características linguísticas da língua é insuficiente e pouco se sabe das diferenças no ensino-aprendizagem por conta da modalidade visuo-gestual.

O campo da Linguística Aplicada (LA) tem uma história de desenvolvimento de métodos para ensino de segunda língua ou língua estrangeira, cada qual com base em diferentes abordagens de ensino. Dentre as metodologias de ensino de segunda língua estudadas, os métodos da abordagem comunicativa têm sido indicados como os mais adequados para o processo de ensino-aprendizagem. O campo do ensino da Libras tem, timidamente, se aproximado do conhecimento construído pela Linguística Aplicada. Pela diferença de modalidade, esse campo requer prudência, isto é, o uso de métodos desenvolvidos primeiramente para o ensino de línguas orais-auditivas precisa de investigação sobre sua aplicabilidade no ensino de línguas de modalidade visuo-gestual.

O problema está na diferença de modalidade de língua. Esses métodos foram pensados para línguas de modalidade oral-auditiva e há uma tentativa de aplicação em línguas de modalidade visuo-gestual que não têm uma escrita difundida e formalizada para servir como apoio ao processo de aprendizagem da segunda língua.

O registro gráfico, por meio de anotações, é um recurso recorrente no ensino de segunda língua (uso da escrita na língua estrangeira tanto para fixar a modalidade oral da língua, quanto para discutir e exercitar aspectos outros da língua, para além de aprender a escrever a língua estrangeira). Contudo, como a Libras é uma língua que não possui uma representação na modalidade escrita 2 que tenha emergido da própria comunidade surda, a possibilidade do registro escrito constitui-se em problema que requer investigação. Como o professor conduz suas aulas e como registra a língua de sinais? Como os alunos fazem anotações dessa língua visuo-gestual?

Esta pesquisa teve como objetivo reunir dados de aplicação de aula de Libras como segunda língua em curso de nível intermediário, seguindo a abordagem comunicativa, tal como delineada por Richards (2006). O foco do olhar está no fazer pedagógico, ou seja, nas estratégias do plano de aula APP 3. Buscamos problematizar as estratégias usadas pela professora para suprir a falta da escrita da língua de sinais a partir das interações entre professor-alunos e alunos-alunos em sala de aula.

1. Paradigma comunicativo no ensino de línguas orais como segunda língua

Por abordagem, queremos dizer um conjunto nem sempre harmônico de pressupostos teóricos, de princípios e até de crenças, ainda que só implícitas, sobre o que é uma língua natural, o que é aprender e o que é ensinar outras línguas (Almeida-Filho, 1998: 78).

Cada abordagem tem princípios que regem os métodos e as estratégias a serem empregadas em sala de aula. Ao desenvolvermos um estudo das tendências metodológicas de ensino de segunda língua, encontramos: a) abordagens estruturalistas: Método de Tradução e Gramática, O Método Direto, Método Audiolingual; b) abordagens cognitivas: o Método Silencioso e a Suggestopedi; e c) abordagem comunicativa (Almeida-Filho, 1998).

Com o advento da abordagem comunicativa nos anos de 1970, o ensino de língua estrangeira adotou uma nova visão e passou a ter um novo foco. Em vez de assentar-se sobre a ideia de que aprender uma nova língua consiste basicamente no processo de formação de um novo hábito mecânico, com a nova abordagem, a aprendizagem de uma língua passou a ser vista como produto da interação significativa entre estudantes e usuários da língua-alvo, como resultado da criação colaborativa de significado, entre outras coisas (Richards, 2006).

Além disso, em vez de ter como foco a aquisição da gramática da língua-alvo por parte do aluno, a abordagem comunicativa, como o próprio nome já diz, colocou como principal meta do processo de aprendizagem de uma nova língua as funções comunicativas, ou seja, as ações que os usuários de uma língua desempenham com e por meio dela. Do ponto de vista da abordagem em questão, apesar de a gramática continuar tendo seu papel no ensino de línguas estrangeiras, ela passa a ser vista como algo subordinado à função comunicativa, ou seja, simplesmente como o conjunto de recursos linguísticos necessários para o desempenho de uma determinada função comunicativa.

Mais especificamente, de acordo com Richards (2006), uma das importantes contribuições da abordagem comunicativa foi distinguir entre, pelo menos, duas competências que devem ser adquiridas pelos estudantes de uma língua estrangeira: a competência gramatical (conhecimento da estrutura de uma língua: fonologia, morfologia, sintaxe) e a competência comunicativa (conhecimento do uso da língua em situações reais de comunicação: graus de formalidade, diferentes gêneros textuais, etc.) e dar à competência comunicativa um papel central no processo de ensino-aprendizagem de línguas.

Apesar de essa nova perspectiva poder ser observada na base do ensino de várias línguas, sobretudo do inglês, o mesmo não se observa no caso do ensino da Libras. Atualmente, o material didático amplamente usado para o ensino dessa língua é o Libras em Contexto (Felipe, 2001). A análise desse material revela que ele se assenta em outra visão. Apesar de a proposta de trabalho focar o contexto de uso da língua, o método focaliza unicamente o ensino da gramática, preterindo, ou mesmo ignorando, o seu uso em situações reais de comunicação (Pereira, 2009).

Consideramos que, para a aplicação da abordagem comunicativa, é fundamental a construção de um programa de estudo funcional, ou seja, criando situações didáticas de acordo com as funções que o aluno deve ser capaz de realizar na língua alvo (L2). Concomitante a isso se faz uma seleção do vocabulário e de aspectos gramaticais implicados nestas mesmas funções de forma tal que o aluno acesse os conhecimentos específicos da língua ao mesmo tempo em que faz um uso pragmático desta nas situações criadas dentro do contexto de ensino aprendizagem.

Sobre o planejamento de aula com base na abordagem comunicativa, apresentamos a organização de aula no formato ciclo A-P-P, no qual se baseia a professora de Libras nesta pesquisa para organizar suas aulas. Apresentamos a seguir um detalhamento dessa organização de aula. O professor começa a aula com uma introdução, ao tópico, geralmente, utiliza fotos, mímicas ou experiências pessoais para introduzir o tópico do dia.

A apresentação (estágio 1) é o momento da aula em que é introduzida a nova estrutura gramatical, normalmente por meio de uma conversa ou de um pequeno texto. O professor explica a nova estrutura e verifica se os alunos a compreenderam. Na parte prática (estágio 2) da aula, os alunos praticam a nova estrutura em um contexto orientado, por meio de exercícios dirigidos pelo professor, e geralmente se usa de uma atividade fictícia. Comumente são usados exercícios de repetição ou de substituição. Dessa forma, o aluno tem um modelo do uso da língua em determinados contextos, por isso é denominado de controlado. Nesse momento, o professor tem certo controle do tema e das expressões que o aluno vai usar para a prática a língua, visto que vai seguir o modelo anteriormente proposto. Podem ser usadas atividades de compreensão e expressão da língua.

Dentre as atividades de prática, podemos citar: a) encontrar palavras ou frases relacionadas ao tópico que estão estudando (análise linguística); b) combinação de palavras (fora da ordem) para formar a estrutura correta na língua alvo; c) sentenças com espaços para completar ou para finalizar; d) repetições em coro; e) classificar ou ordenar (Richards, 2006).

Para o final da aula é proposta a atividade de produção (estágio 3). Assim, os alunos praticam a nova estrutura em contextos diferentes, frequentemente utilizando seu próprio conteúdo ou informação para desenvolver a fluência com esse novo tópico. Dentre as atividades de produção, podemos citar: a) comparação de anúncios de dois supermercados diferentes; b) compartilhamento de experiências pessoais; c) a partir de um roteiro de entrevista, em dupla, um aluno entrevista o outro, entre outras (Richards, 2006).

Nessa abordagem, o professor circula e dá orientações aos alunos a respeito da linguagem, sugere frases e ajuda a aperfeiçoar e corrigir o uso do idioma. Frequentemente os alunos aproveitam essa oportunidade para fazer perguntas sobre itens específicos da linguagem. Nessa proposta de aula há uma ênfase no trabalho em pares ou em grupos. Ao final da aula, como em uma plenária, o professor revisa e analisa, possivelmente escrevendo no quadro informações relevantes na forma de listagem: os alunos podem fazer anotações (Richards, 2006).

No ensino de segunda língua a escrita na língua alvo tem um papel importante: serve como modelo para conversação, como registro da estrutura gramatical da língua e como meio de compreensão e produção na língua alvo.

2. Metodologia

Temos como objetivo a análise das interações nas aulas de Libras como segunda língua em nível intermediário. As questões que nos impulsionam são: Quais as possibilidades de aplicação de metodologia de ensino de segunda língua com base na abordagem comunicativa? Quais as adaptações por conta da modalidade de língua visuo-gestual? Qual o uso da escrita do português nessa aula?

O materialismo histórico não desconsidera a existência dos fenômenos a serem investigados (resposta do aluno, plano do professor, etc.), pois estes integram a realidade pesquisada. Não obstante, tal apreensão inicial não corresponde à totalidade concreta da realidade, ou essência do fenômeno. Os fenômenos não podem ser compreendidos simplesmente em seu plano restrito, por meio de representações ideais moldadas na consciência individual. Isto porque ele se constitui em manifestação da realidade, evidenciando as contradições imbricadas na interação. Nessa perspectiva teórico-metodológica, procede-se cientificamente buscando as bases histórico-culturais, o que implica analisar, para estes casos, as bases materiais da sociedade que criam as necessidades, desejos, inquietações e indiferenças da conjuntura desse curso de Libras.

A consciência é a representação que fazemos das coisas, as ideias que construímos e estas são diretamente imbricadas com a atividade material, ou seja, com as relações sociais, com os processos de vida ativo. Nessa perspectiva, qualquer análise parte do processo real de vida e dos ecos ideológicos deste processo de vida. “Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência” (Marx; Engels, 2004: 52).

Como método de pesquisa, optamos pelo método dialético. Para Marx (1978a, 1978b), a realidade não é desordenada de forma que seja incompreensível em sua totalidade. A realidade social possui uma dimensão concreta, que deve ser apreendida, trazendo a representação caótica da realidade (abstração) inicialmente para o plano do concreto idealizado (pensado) e, a partir de categorias de análise dessa produção material, chega-se à totalidade concreta, ou seja, à síntese de determinações e unidade do diverso (síntese).

Dessa forma, a realidade concreta (aula de Libras) não é fruto idealista do pensamento humano, ou de sua consciência, mas sim a base para pensarmos, para refletirmos e construirmos novas sínteses sobre o problema de pesquisa e sobre seus contextos de materialização.

O delineamento do trabalho constituiu-se de estudo de caso, no contexto de ensino de Libras, e a vídeo-gravação e diário de campo como a técnica de coleta de dados. Como instrumento de pesquisa, optamos pela análise microgenética.

Uma aula de língua envolve interação entre professor-aluno e aluno-aluno. Dessa forma, o uso dessa abordagem metodológica nos permite “articular o nível microgenético das interações sociais com o exame do funcionamento dialógico-discursivo” (Góes, 2000: 9).

De um modo geral, trata-se de uma forma de construção de dados que requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos (Góes, 2000: 9).

Consideramos que esse instrumento metodológico oferece a possibilidade de se relacionar elementos de episódios específicos a condições macrossociais. Analisamos dois episódios onde ocorrem as interações discursivas entre professora-alunas e alunas-alunas.

A aula foi filmada e transcrita. Uma série de estudos vem sendo desenvolvidos para aprimorar os procedimentos de coleta de dados no campo da análise da conversa e em especial de conversas em línguas de sinais. Com o uso de gravações de conversas espontâneas se faz necessária a caracterização e a descrição das inter-relações dos vários tipos de organização sequencial operantes na conversa, como as pausas da conversa e aos risos, por exemplo. Para a transcrição da Libras, adaptamos o que foi proposto por Lacerda (1996): (entre parênteses) estão gestos ou comportamentos dos interlocutores, EM CAIXA ALTA estão os sinais da LIBRAS, "entre aspas e em itálico" estão as falas entre os interlocutores. P corresponde à professora, e A corresponde às alunas, a cada aluna foi dada uma numeração.

3. Perspectivas no ensino de Libras como segunda língua para ouvintes falantes de português: Línguas em intersecção

Em uma aula típica da abordagem comunicativa frequentemente se emprega uma sequência de três fases, conhecida como ciclo A-P-P. Surge, então, a necessidade de, com base nessa abordagem, atrelar os conteúdos linguístico-composicionais às funções comunicativas das quais eles estão a serviço e planejar as aulas produzindo os materiais (vídeos 4 e atividades) a serem aplicados em sala de aula.

Propomo-nos a analisar aulas de Libras de uma professora surda, fluente em Libras, aplicando esta abordagem sob orientação de dois consultores (um com formação em linguística e outro em educação).

4. Os interlocutores da aula de Libras

As alunas do curso são profissionais com formação pedagógica que atuam como professoras ou como intérpretes educacionais Libras/português em escolas públicas da baixada santista para alunos surdos incluídos no ensino regular.

Neste novo quadro, o ambiente social é considerado não só como fonte de entrada do aprendiz de línguas, mas também como a fonte de desenvolvimento do aluno. As alunas procuraram o curso de Libras em uma instituição de surdos pela necessidade de certificação e de melhorar seu nível linguístico. Todas já cursaram o nível básico de Libras, nesta mesma instituição.

Sabe-se que aprendizes de segunda língua que não estão em situação de imersão têm pouca oportunidade de usar a língua alvo. Nesse caso, as alunas que são intérpretes em formação, por vezes, têm contato diário de quatro horas com alunos surdos, mas, na conjuntura atual, muitos destes alunos surdos têm pouco conhecimento da própria língua.

A professora é surda atuante na comunidade surda local e possui experiência no ensino de Libras. Ela não tem formação superior, mas fez curso de capacitação da FENEIS para ser instrutora e teve assessoria 5 de linguista e pedagogos para desenvolver o programa do curso intermediário e orientação permanente para o planejamento das aulas conforme a abordagem comunicativa. Ela é engajada nos movimentos sociais em prol da educação bilíngue de surdos e participa de eventos acadêmicos na área da surdez.

O espaço de investigação é a sala de aula, um espaço de aprendizagem com sala ampla e cadeiras organizadas em formato de semicírculo. Eram onze alunas, cuja idade variava entre 25 e 38 anos. As aulas de Libras eram de 2 horas e 30 minutos cada, ministradas duas vezes por semana, seguindo os princípios da abordagem comunicativa e a organização da aula usando o ciclo A-P-P.

A questão de estratégias usadas pela professora para suprir a falta da escrita da língua de sinais pode ser uma questão com respostas mais ou menos esperadas, pois é sabido em nossa realidade que a língua de sinais não tem uma escrita difundida e que os professores de Libras se utilizam da escrita em português (Santos; Góes e Lacerda, 2008). Por outro lado, pouco se tem estudado sobre forma com que essa escrita aparece em sala de aula e quais as interações, processos de aprendizagem levantados por conta de sua presença como língua materna do aluno aprendiz de Libras.

Posto isso, apesar de haver conhecimento de aspectos gerais dessa realidade, pareceu-nos relevante examinar a situação concreta dos alunos ouvintes, considerando a singularidade desse curso por ser em nível intermediário e ser composto por profissionais que atuam como professores ou intérpretes de surdos.

Com o objetivo de compreender melhor o papel do registro da língua em sala de aula, frente aos seus diferentes interlocutores e buscando caracterizar sua participação na perspectiva de avaliar seus desdobramentos e consequências, serão analisados alguns episódios.

5. As restrições das circunstâncias pedagógicas para o registro da Língua de Sinais a partir da interlocução dialógica

Esta aula tinha como objetivo habilitar o aluno para falar em Libras sobre situações hipotéticas de ensino da função comunicativa, o “uso de sentença subordinativa condicional”. Pretendia-se que os alunos incorporassem a forma de usar a estrutura gramatical condicional em Libras, fazendo uso da expressão “SE” (em Libras é digitado “SI” por uma questão de influência linguística – fonologia do português) no início das frases de Libras e complementando a oração com a subordinação subsequente.

5.1 Episódio 1 – Opinião dos alunos

A professora começa a aula dizendo de uma série de situações hipotéticas e já busca interação com as alunas. Isso é o que é denominado de aquecimento para a metodologia de segunda língua, a professora introduz o tema da aula. Ela explica que em português se usa SE e em Libras se usa S-I (soletração).

Começa a aula fazendo perguntas 6 para o grupo. Apresentamos a seguir a transcrição de parte da aula:

P (Direciona a pergunta para um lado do grupo) __ S-I EMAGRECER, ROUPA-FROUXA FAZER O-QUÊ?
A1 ___ DAR AMIGO.
P ___ DAR AMIGO?
A1 ___ COMPRAR NOV@ BONIT@.
P ____ PODE AJUSTAR!?
A2 ___ COMPRAR NOV@.
P ____ CLAR@, VOCÊ RIC@ NÉ! /risos/
(pausa)
P ___ S-I BEBER PODER DIRIGIR? (olhando para aluna 2)
A2 ___ NÃO-PODER.
P ___ FAZER O-QUE?
A2 ___ HOTEL /esqueci/ (sorri) (a colega do lado faz o sinal de TAXI corretamente para que A2 copie) TAXI OU AMIGO JUNTO.
P ___ E-AI VOCÊ DEIXA CARRO RUA?
A2 ___ EU DIRIGIR MEDO. /risos/
P ___ PUTZ! PERGUNTAR ERRAD@, PERGUNTAR ERRAD@. /risos/
P ___ (Direciona a pergunta para o outro lado do grupo) ___ S-I SOL FORTE PRAIA DESCONTRAIR OU PROTETOR-SOLAR?
A3 __ (...) NÃO
Transcrição 7 da interação em aula de Libras, episódio compreende de 3m12s a 4m23s do vídeo.

Quadro 1: Interação entre professora e alunas de Libras do episódio 1

Interessante perceber que, apesar de a professora ter introduzido a aula apresentando um ponto gramatical (sentenças condicionais), os alunos se envolveram de tal maneira na interação que, por vezes, suas respostas não estavam engessadas para atender a essa demanda da estrutura da língua. A aluna 2, por exemplo, traz a sua realidade, a sua consciência de não dirigir por ter medo e, dessa forma, não respondeu seguindo o pressuposto da estrutura da língua, pergunta-resposta, mas segue o princípio da comunicação, do diálogo em que se fala espontaneamente da realidade vivida. A aluna 2 faz o sinal de HOTEL 8 que tem uma articulação muito similar do sinal para TÁXI, mudando apenas alguns parâmetros. Nesse momento, ela lança mão da sua língua materna, falando em português o que queria expressar e pedindo ajuda ao falar em português oral: /esqueci/. O sorriso desconcertado também é um indicativo de sua dificuldade com esse termo em Libras. Uma colega logo a ajuda entrando na conversa, faz o sinal em Libras, mostrando o sinal e reforçando que percebeu o que a colega A2 gostaria de expressar. Uma dificuldade de articulação não impede a aluna A2 de se comunicar, pois ela lança mão de outros recursos linguísticos (língua materna) e da outra colega (par mais experiente).

Segundo Vygotski (1998), a aprendizagem ocorre no que se denomina de zona de desenvolvimento proximal. Este espaço é caracterizado pelas interações entre aprendizes e parceiros mais competentes, explorando o nível real em que o aluno está e o seu nível em potencial para aprender sob a orientação de outro na interação. Nesse momento, as duas alunas negociam significados, a colega conhecendo o termo TÁXI, e sua produção articulatória na segunda língua se lança na interação.

Já que o que interessava para a aluna era o que ela queria expressar, ela se lança na interação com uma declaração signficativa para ela, da sua experiência vivencial. Nestas atividades didáticas, em que os alunos se colocam, dão opinião e se expressam em língua alvo, fazem uso de vozes que evocam na sua língua nativa, pois envolvem sua consciência, contextos culturais e institucionais já vividos por eles.

Não estamos nos referindo à língua materna do aluno como um objeto ou uma abstração que pode ser extraídada da mente do aluno, mas com a consciência do aluno. Para Vygotski (2001), as “palavras são microcosmos de consciência humana”. As palavras desempenham um papel central não apenas no desenvolvimento mental, mas na forma de conceber o mundo.

Para Johnson (2004), a interação dialética entre o interpessoal e intrapessoal no plano real leva à fusão de desempenho da linguagem e da competência de linguagem: representam as duas faces da mesma moeda.

[...] a origem da competência em segunda língua não está em algum dispositivo de aquisição da linguagem ou qualquer outro mecanismo, em um sistema de resolução de problemas gerais, mas na realidade social em uso da língua. Este uso da linguagem não acontece em um vácuo ou em um contexto social imaginário, mas em um contexto real e perceptível socialmente. [...] estes contextos não são universais. Eles são muito localizados, e, portanto, a capacidade de linguagem é também localmente vinculada: reflete todas as características de um contexto bem definido sociocultural e institucional. Segundo, a capacidade de linguagem não se situa na mente do aluno, mas em uma infinidade de contextos socioculturais e institucionais e em uma variedade de práticas discursivas que o aluno foi exposto ao longo da vida (Johnson, 2004: 172).

No episódio a seguir, torna-se bastante interessante analisar o modo pelo qual os alunos ouvintes aprendizes de Libras vão estruturando a compreensão e marcando a significação em Libras também pelo universo ouvinte, de sua língua materna. Neste estágio da aula, a escrita não está implicada, pois as interações ocorreram todas por meio da Libras ou da língua materna do aluno na modalidade oral.

5.2 Episódio 2 – O Filme – Vamos sair?

Essa parte da aula corresponde ao momento de apresentação do tópico da aula, como proposto no ciclo de aula APP da abordagem comunicativa. A professora apresenta um diálogo em que aparecem várias frases condicionais, onde se usa a conjunção S-I, em que se expressa uma hipótese ou condição para que se realize a oração principal. Há uma organização específica para a construção de orações subordinadas: assim como no português, na Libras, a conjunção é apresentada no início da frase e em seu complemento está a subordinação.

Este é um vídeo bem divertido, um diálogo (Texto 1 - ver figura 1) entre duas amigas surdas que combinam de sair, de ir ao cinema e contextualiza a situação de não ter legenda em filme nacional (problematiza a inacessibilidade dos filmes pela falta de legenda em português). O diálogo também traz situações do cotidiano, como de não poder beber e dirigir e da possibilidade de ir à praia como espaço de lazer, algo comum para quem mora no litoral brasileiro.

A forma de verificação da compreensão do diálogo, proposto como atividade pela professora, transcorre pela anotação (registro) de pontos da conversa. A materialização dessa compreensão é solicitada pela professora por meio da escrita em português, sendo os tópicos da atividade também apresentados em português. A professora distribuiu para as alunas um papel com a tabela abaixo (tabela 1), para que elas completassem com informações extraídas do diálogo (vídeo).

SE O-QUÊ?
Se amanhã chover...  
Se chover...  
Se chover sim...  
Se legenda ter-não...  
Se ter-não legenda...  
Se você beber...  
Se eu beber  
Se policial parar...  
Se ele parar nós dois...  
Se policial pedir ver carteira...  
Se ele pedir...  

Tabela 1: Ficha a ser preenchida pelas alunas de Libras a partir da compressão do diálogo (Texto 1) apresentado no vídeo

A professora explicou em Libras que as alunas poderiam assistir ao diálogo por uma segunda vez e que ficassem atentas às respostas que completavam a sequencia dos enunciados da atividade distribuída (Tabela 1). O vídeo foi passado duas vezes. Ao final, a professora projetou no telão a mesma tabela que foi entregue as alunas em papel. Apresentamos a seguir a transcrição desta parte da aula:

As alunas conversam em português, pedindo caneta uma para outra.
P ___ (bate palma pedindo a atenção) __ OLHAR-ME. ESS@ PAPEL IGUAL aponta para o telão SEU. S-I, S-I (aponta para a primeira coluna da tabela). O-QUE (aponta para a segunda coluna da tabela) FALTA COLOCAR DIÁLOGO. ENTENDER OU ESQUECER?
P ____ aponta para o primeiro item da primeira coluna. SI CHOVER?
A3 ___ IR CINEMA. A2 ___ NÃO-ENTENDER.
P ___ aponta para a coluna onde deve ser respondida e cruza os braços. ESPER@ EU MOSTRAR PEDAÇO PEDAÇO. Puxa a cadeira e senta-se para mexer no laptop.
A1___ DIÁLOGO.
P ____ levanta-se da cadeira. S-I PESSOA COMEÇAR FALAR:
--- VAMOS COMBINAR PASSEAR AMANHÃ (corpo pendido para a esquerda).
--- ACEITAR (corpo pendido para a direita)
---- VAMOS PRAIA AMANHÃ. (corpo pendido para a esquerda)
--- S-I AMANHÃ CHOVER VOCÊ VAI? (corpo pendido para a direita)
(professora olha para o quadro, indicando que aí está a resposta que as alunas deveriam preencher na tabela).
A4 ___ /Ah! Se você vai. Aí você escreve em português e escreve em Libras/
(uma aluna levanta a mão para responder).
P ____ PARAR CALLLLLMA.
A4 ____ ESCREVER PORTUGUES LIBRAS?
P ____ LIBRAS. VOCÊS ESCREVER.
P ____ DIÁLOGO MULHER PERGUNTAR.
--- VAMOS COMBINAR PASSEAR AMANHÃ.
--- ACEITAR.
--- SI AMANHÃ CHOVER NÃO-VOU. / si chover vou ao cinema/ (outra aluna)
/não, não é para dar a resposta/
P ____ MELHOR MOSTRAR VÍDEO. Professora se senta e seleciona o pedaço do vídeo que tem esse diálogo, enquanto isso as alunas conversam em português.
/é só por a sequência do vídeo/
/é só colocar a resposta/
/vai cair de novo na.. na/
/eu vou colocar a sequência do vídeo/
/vamos combinar entre nós, então vai ser sequência/
(enquanto isso a professora está olhando para o laptop escolhendo o pedaço do vídeo para apresentar)
P __ professora aponta para a segunda coluna
Alunas em coro /si chover você vai/
(uma aluna fala) / você ir/
/ só si você vai/
(outra aluna fala) /então você vai escrever só lado, você vai, você ir.
Você ir/ (outra aluna) /você ir/
(acaba o pedaço do vídeo, nesse momento a professora deixa de olhar para o telão e se volta para as alunas que estão discutindo como escrever).
A4 ___ /eu perguntei se era Libras ou português ela disse que era português/
P __ COMO ESCREVE É CLARO
A2___ VAI I-R
P ___ VAI aponta para a mão do sinal. COMO ESCREVER
MULHER FALAR SI AMANHÃ CHOVER – VOCÊ VAI?
EU MOSTRAR UM EXEMPLO, aponta para a segunda coluna da tabela. VAI digita V-A-I ponto de interrogação.
A4___ VAI digita I-R
P__ DEPENDE EXPRESSÃO VAI+expressão facial de questionamento. PERGUNTAR INTERROGAÇÃO.
(uma aluna fala) /Ah, não/
P___ professora se aproxima da aluna senta mais próximo e olha como ela preencheu o papel. As alunas olham para o lado, para ver o papel das colegas.
P___ SEGUNDO. (mostra o vídeo)
(em coro) / se chover eu não vou/
A 1 ___ NÃO IR. A2 ___ NÃO IR. A4 ___ NÃO IR.
P___ O QUÊ? (olha para o outro lado do grupo) S-I CHOVER EL@ VAI?
A2 ___ NÃO IR.
P___ ESCREVER.
A4 ____ V-A-I OU I-R?
P ___ LIBRAS DEPENDER. SI CHOVER EU NÃO-IR (exagera a articulação oro-facial expressando “não vou”). NÃO-QUERER IR (exagera a articulação oro-facial expressando “quero ir”). TANTO FAZ. LIBRAS FORMATO MÃO IR (dedo indicador apontando para frente).
A1__ TANTO FAZ. EL@ FALOU. (sinaliza para sua colega do lado, para A2)
/então se chover, sim vamos/
P __ NÃO I-R. ENTENDER?
(...)
Transcrição da interação em aula de Libras, episódio compreende de 10m54s a 14m27s do vídeo

Quadro 2: Interação entre professora e alunas de Libras do episódio 2

Essa situação envolve uma atividade complexa da qual participam ativamente professora e alunas. As alunas se divertem, a história apresentada no vídeo é envolvente e tem um enredo, personagens, mensagem, ápice e final. O ápice é o momento de suspense em que não se sabe o que uma personagem vai responder ao ser parada pelo policial, pois se espera com mais interesse o que vai acontecer a seguir, e as respostas são sempre divertidas.

A professora atua efetivamente questionando, procurando compreender o percurso interpretativo feito pelas diferentes alunas ouvintes. Além do texto do diálogo, ela troca opiniões com as alunas. Durante a atividade as alunas erram ou acertam. No processo de verificação, apagam suas fichas, reescrevem e questionam às colegas como registraram no papel a resposta. Gostaria, entretanto, de chamar a atenção para a atividade de interpretação simultânea, que, por muitas vezes, ocorreu quando eram solicitadas as respostas pela professora ao repassar o vídeo. Algumas alunas sentiam a necessidade de falar em português, apesar de, para aquele conteúdo (vídeo), terem condições de conversar em Libras, todavia preferiam fazer em português com o objetivo de confirmação se o sentido construído em primeira língua era de fato compartilhado pelas colegas ouvintes.

O episódio revela também um grande fluxo de interações em língua oral em que a professora surda fica sem acessar tais informações. Ela percebeu que as alunas conversavam, mas não apreendia o sentido da conversa e, por vezes, não conseguia sanar a dúvida de como escrever, de como responder à atividade no papel, que permanecia sendo proferida em português oral pelas alunas ouvintes.

Esta situação em muito se diferencia daquela enfrentada por alunos ouvintes que aprendem uma segunda lingua oral. Geralmente, os professores de segunda língua podem coordenar as interações em língua materna, acessando as dúvidas e logo pedindo para que os alunos tentem se expressar na língua alvo da aprendizagem. Neste episódio, a professora surda, por ter que olhar para o laptop e buscar o trecho do vídeo para repassar às alunas, não acompanhou a interação em português.

Gesser (2006), em sua pesquisa, atesta que entre o oral, a escrita e o sinal há uma rede de construções e manifestações linguísticas, identitárias e culturais expressadas no processo de aprendizagem da Libras. Destaca que momentos de conflito no uso dessas duas línguas ocorrem permanentemente, bem como na forma distinta que cada participante estabelece com os sinais já conhecidos, com os sentidos que constroem desses sinais dentro de uma rede discursiva já que há várias subjetividades e experiências nesse contexto.

Conforme vai diminuindo o estranhamento das alunas com a LIBRAS, vai diminuindo também a necessidade da atividade de tradução e aumentando tanto uma conscientização da importância do contato linguístico com a língua de sinais quanto uma aproximação ou ‘ajuste’ da realidade alheia/“estrangeira” que elas estão vivendo aos seus esquemas culturais ouvintes de ensino (Gesser, 2006: 118-119).

Como primeiro ponto a ser destacado, observa-se que as alunas ficavam angustiadas sobre como deveriam preencher na ficha (Tabela 1). Se deveriam escrever em português ou se deveriam escrever em português seguindo a estrutura sintática da Libras e sobre qual palavra deveriam usar para o sinal em questão 9: Ir, vai ou vamos?

No decorrer do episódio uma aluna perguntou:

A4 ____ ESCREVER PORTUGUÊS LIBRAS?
P ____ LIBRAS. VOCÊS ESCREVER.

O episódio segue, e a dúvida continua, tanto que a mesma aluna que fez a pergunta fala em português para as colegas:

A4___ /Eu perguntei se era libras ou português ela disse que era português/

Constatamos que o sentido do que foi dito pela professora ainda estava obscuro para as alunas. Qual sentido apreenderam? “A Libras, vocês vão escrever” ou “Vão escrever na estrutura da Libras”. Ao final, a aluna conclui que é para escrever em português, na estrutura do português mesmo.

O uso da escrita, ou melhor, da GLOSA 10 é comum em cursos de língua de sinais. Mas, nessa situação, percebe-se que as alunas não conheciam bem a técnica de transcrição, e a própria professora apresentou uma tabela escrita em português, o que gerou a dúvida da forma do registro.

A glosa é usada tanto para registro de compreensão como para a apresentação de estrutura gramatical com objetivo de sua internalização. Buisson (2007), em pesquisa sobre instrução por meio de glosa para facilitar a aprendizagem dos alunos da língua americana de sinais (ASL), indica resultados favoráveis ao uso da glosa de frases e recomenda que podem servir como "pontes" entre a ASL e o Inglês. Neste curso de ASL pesquisado, um site foi desenvolvido com glosas em ASL apresentavam as regras gramaticais, e os alunos tinham exercícios anotados em glosa. Constataram que, conforme os alunos eram expostos às aulas sobre a ASL usando glosa, aumentava seu conhecimento sobre a gramática da língua, com a prática de comparar as regras gramaticais da ASL com as do Inglês: os alunos compreendiam melhor o funcionamento da ASL, na realização das tarefas on-line. Ao terem que anotar em ASL, beneficiava-se a consciência da diferença de estrutura das duas línguas.

A consciência é a representação que fazemos das coisas, as ideias que construímos e estas são diretamente imbricadas com a atividade material, ou seja, com as relações sociais, com o processo de vida ativo. A partir das contribuições da abordagem histórico-cultural para a pesquisa em educação, entendemos que as relações sociais são internalizadas, ou seja, a vida psíquica tem um funcionamento que se origina nas relações concretamente vividas e se organiza internamente como elas (Vygotski, 1998).

Quando se oportuniza às alunas a atividade de escrever em português na estrutura da Libras, elas têm a chance de refletir sobre o funcionamento da língua. Todavia, as convenções dessa escrita/transcrição precisam ser bem estabelecidas entre professores e alunos. Parece que isso não estava claro para a professora, enquanto, para as alunas, isso era percebido como um problema sem solução.

Bakhtin (1992) nos ajuda a compreender o redimensionamento do papel da língua(gem) na constituição do homem ao afirmar que “a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência” (Bakhtin, 1992: 35).

Nesse sentido, os aprendizes de Libras como segunda língua compreendem que os signos da Libras são flexíveis, apesar de, na contradição, formarem um sistema com um campo de significação mais comum para determinado signo: viver e apreender as possibilidades de interpretação e os limites de significação dos signos. Quero dizer que, apesar de a Libras constituir um sistema linguístico, a padronização estabiliza, mas, nas relações do uso da linguagem em interações verbais, os usuários das língua estão reféns do caráter de novidade.11

No segundo episódio, a professora tenta explicar como transcrever:

P ___ LIBRAS DEPENDER. S-I CHOVER EU NÃO-VOU (exagera a articulação orofacial expressando “não vou”). NÃO-QUERER IR (exagera a articulação orofacial expressando “não quero ir”). TANTO FAZ. LIBRAS FORMATO MÃO IR (dedo indicador apontando para frente).

A professora queria mostrar que tanto faz a forma escrita em português, já que em Libras há uma forma de produção do sinal que indica o sentido de movimento, de deslocar-se de um ponto para outro. Neste caso, importa compreender o sentido que se pretendia passar no diálogo do vídeo em Libras.
É a partir do ponto da dinamicidade do significado que o conceito de “sentido” é registrado por Vygotski (2001). Sob sua perspectiva, há um predomínio dos sentidos sobre os significados da palavra na linguagem interior.

A ficha da atividade (ANEXO 1 - ver figura 2) é preenchida ao final de toda a discussão, após rever o vídeo, e depois da correção da professora em Libras. A professora retoma o diálogo, perguntando às alunas o que preencheram na ficha. A professora segue o princípio do método comunicativo para essa fase da apresentação do tema, pois apresenta a nova estrutura gramatical: por meio de uma conversa ou de um pequeno texto, explica a nova estrutura e verifica se as alunas a compreenderam (Richards, 2006).

As alunas compreenderam o texto, mas em momentos específicos de distinção da articulação por conta da conversa natural constroem sentidos nebulosos, principalmente para PARAR, TELEFONAR, ASSUSTAR, DAR-CHAVE. A personagem da história produz esses sinais de forma diferente do padrão, do registrado em dicionário, o que ocasiona às alunas um estranhamento e uma significação em “suspensão”.

Johnson (2004) indica que a apropriação de novas vozes tem de ter lugar em contextos da vida real, que podem ser semelhantes aos contextos dos aprendizes de segunda língua. Considera que estes contextos são preenchidos com pessoas diferentes, com diferentes vozes, e esses contextos precisam ser reapropriados.

Não se pode conceber a língua como a existência de uma realidade compartilhada entre os aprendizes de forma igual, de uma falsa sensação de que, se os alunos dominarem as regras gramaticais e estruturas da língua-alvo, automaticamente alcançarão a compreensão mútua ao conversar com os membros da língua e cultura em aprendizagem (Johnson, 2004).

Para se apropriarem do sentido dos novos sinais, talvez lancem mão da interpretação simultânea para se sentirem mais seguros. Os signos são determinados ideologicamente, as palavras refletem a arena de forças políticas presentes nas relações interpessoais (Bakhtin, 1992). No campo ideológico, estão dispostos os elementos que marcam as relações entre os sujeitos; no caso do aluno ouvinte, está presente a relação com o universo visual em contraposição com a língua de modalidade oral-auditiva. Nas atividades de interação, por exemplo, essa arena de forças revela-se pela forma como as alunas ouvintes buscam os sentidos em Libras, como têm dificuldade de interagir exclusivamente em Libras, pois estão impregnadas de uma cultura marcada pela oralidade.

Novas vozes da língua-alvo, configurações socioculturais precisam ser experimentadas, absorvidas e apropriadas para ajudar os alunos de Libras como segunda língua a tornarem-se participantes ativos na cultura da língua-alvo.

Comentários finais

Compreendemos que formas de organizar uma aula com início, desenvolvimento e fechamento são importantes para aplicação também em aulas de Libras como segunda língua. Esse conhecimento pedagógico dá ao professor de Libras uma maior segurança. Todavia, o problema está em replicar modelos de competência comunicativa que tenham como foco a investigação e explicação do uso da linguagem como processos mentais humanos desprovidos de contextos sociais (Johnson, 2004).

Modelos de competência comunicativa negam, de alguma forma, a propiedade de incompletude da língua, de sua existência humana no mundo real, com todas as suas imperfeições, ambiguidades e imprevisibilidade.

Para Bakhtin (2010: 59), “só um outro pode nos dar acabamento e somente nós poderemos dar acabamento a um outro”. Consideramos que a noção de acabamento deve fazer parte da formação dos professores de Libras, para além da simplificação do que significa um planejamento de aula e da prática pedagógica; para além da concepção da aula preparada como algo dado, mas para o sentido de que usar a língua é uma negociação permanente.

Constatamos conflitos no uso da língua materna por parte das alunas, ora pela fala, ora pela escrita em português. Ela faz parte da consciência do aprendiz e trabalha, de certa maneira, para a busca de sentidos da Libras (segunda língua). A questão está no quanto a língua materna deve ser dissociada do processo de ensino de segunda língua e o quanto ela auxilia na aprendizagem por meio de atividades em que se use a glosa e a análise contrastiva como estratégia pedagógica. Verificamos que, mesmo que o professor tenha como objetivo a incorporação da estrutura da segunda língua, não pode prescindir da negociação de sentidos que demanda uma interação dialógica, isso para qualquer língua. A escrita parece ser um instrumento que ajuda, mas que, em alguns momentos, atrapalha. Esse aspecto merece mais investigação, já que o propósito é favorecer a aprendizagem do aluno.

Notas

2 A Libras tem modalidade escrita produzida “artificialmente” com finalidade de transcrição e pesquisa e que só recentemente vem sendo usada para fins pedagógicos, mas de forma muito tímida. O SignWriting (escrita de sinais) não é usual na comunidade surda.
3 A-P-P (Apresentação/Prática e Produção), em inglês é P-P-P (Presentation / Practice and Production). O modelo de aula A-P-P corresponde à organização da aula em três estágios: no primeiro, a forma e a função de determinada estrutura gramatical são apresentadas; em seguida, passa-se à prática controlada e menos controlada do item gramatical apresentado; no último estágio, o professor promove uma atividade mais livre, na qual os alunos têm a oportunidade de fazer uso da nova estrutura. Quanto maior for sua participação oral nas atividades, melhor será a aula (Richards, 2006).
4 Os vídeos eram produzidos com a participação de outros professores de Libras da instituição, convidados a narrar histórias, a construir diálogos, a fim de que os alunos tivessem oportunidade de serem expostos a outro modelo linguístico discursivo, além de sua professora de Libras.
5 Trabalho nesse projeto como assessora do curso de Libras e propomo-nos a investigar os reflexos de tal intervenção didático-pedagógica.
6 Interessante verificar a adequação temática aos interesses do universo feminino, visto que as questões envolviam relacionamento, beleza, cuidados com a saúde, entre outros. É mais fácil compreender e dizer em segunda língua um conteúdo que se domina do que um assunto adverso a sua realidade.
7 P corresponde à professora e A corresponde às alunas, a cada qual foi dada uma numeração.
8 HOTEL e TAXI (ver figura 3) Imagens dos sinais retirados de CAPOVILLA; RAPHAEL, 2000.
9 Em português, ir é um verbo irregular e proporciona diferentes formas de produção lexical. Todavia, em Libras, o sinal (ver figura 4) tem uma forma que pode ser significada por diferentes palavras em língua portuguesa. Imagens dos sinais retirados de CAPOVILLA; RAPHAEL, 2000.
10 Estudos linguísticos de descrição da língua de sinais e pesquisas acadêmicos sobre aprendizes de segunda língua precisam escrever (registrar) a forma da língua. McCleary e Viotti (2010) consideram que, para glosar um discurso em libras, é necessário garantir um vínculo unívoco entre a palavra usada para a glosa (que tem a função de nomear o sinal) e a sua forma. Ressaltam ainda que, para a apresentação e análise de trechos de discurso espontâneo ou semiespontâneo, o sistema de glosas simples é bastante limitado. Fazem-se muitas vezes necessários outros recursos, já que uma mesma configuração de cabeça, tronco e face pode também ter diferentes funções no discurso. Para eles, a transcrição é o registro daquilo que é diretamente observado na gravação.
11 Caráter de novidade para Bakhtin significa que só se atinge uma interpretação no contexto imediato de uma enunciação. “É impossível reduzir-se o ato de decodificação ao reconhecimento de uma forma linguística utilizada pelo locutor como forma familiar, conhecida – modo como reconhecemos, por exemplo, um sinal ao qual não estamos suficientemente habituados ou uma forma de uma língua que conhecemos mal. Não, o essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular” (Bakhtin, 1992: 93).

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