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Neiva de Aquino Albres
Neiva de Aquino Albres
Fonoaudióloga
Tradução de literatura infantil: entre a construção de sentidos e o uso dos recursos linguísticos
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Publicado em 2012
III Congresso Brasileiro de Pesquisas em Tradução e Interpretação de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. Florianópolis-SC: UFSC
Neiva de Aquino Albres
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Resumo

O objetivo deste trabalho foi apresentar um estudo sobre a tradução de literatura infantil do Livro “O homem que amava caixas” de português para Libras. A proposta deste estudo, então, foi verificar: quais elementos linguísticos e não linguísticos apresentados no livro motivaram o tradutor ao construir suas enunciações em Libras. Foi realizado a partir da teoria enunciativo/discursiva de Bakhtin/Volochínov (1992) e da teoria de espaços mentais de Liddell (2003). Pesquisa de natureza analítico-descritiva, utilizamos uma metodologia em que o pesquisador pela exotopia é o próprio sujeito analisado. Duas categorias de análise emergiram dos dados: a) sinal-nome e b) incorporação. Foi possível verificar que o intérprete não traduz apenas o texto, mas incorpora os personagens, os faz ter voz (pela direção do olhar, pela pantomima) e integra seus enunciados com as imagens (ilustrações) do livro.

Introdução

A História “O homem que amava caixas”, de Stephen Michael King, é mais que uma história de amor. Esta é uma obra universal e atemporal, justificando o grande volume de traduções, adaptações, uso pedagógico e montagens teatrais que dela foram produzidas.

O autor do livro era surdo e ilustrador do próprio material que escrevera. O livro trata do relacionamento entre pai e filho, mais precisamente sobre a dificuldade de comunicação. No processo de tradução é importante compreender o autor da obra e seu contexto.

Quando consideramos que na tradução literária, além de processo criativo e intelectual, ocorre em um contexto histórico e social específico, após ser transplantada de um outro contexto histórico e social específico, fica claro que duas línguas, duas culturas e duas sociedades estão aí envolvidas, ensejando para o pesquisador a oportunidade de cotejar os dois ‘produtos’, [...] e que ‘ajustes’ culturais foram eventualmente feitos; enfim, uma investigação da fortuna literária dos autores e obras, das fontes e influências (ALEGRO, s.d, p.7).

Questões são colocadas: Qual o impacto dos sistemas culturais e linguísticos sobre a tradução? Qual o impacto do sistema semiótico sobre aquilo que é traduzido? Como a tradução de texto com imagens é usada dentro do sistema linguístico da Libras?

Ao pesquisador de estudos da tradução, esses são questionamentos que interessam, especialmente agora que a população surda até então marginalizada começa ter acesso à histórias, à literatura, ao produto cultural registrado em livros traduzidos para Libras por meio de livros acessíveis, ou seja, em Livros digitais (vídeo em Libras).

O referencial teórico que embasou este trabalho está pautado sob uma ótica contemporânea, no qual entende-se “traduzir” como “interpretar”, “recriar”. Combinar pontos da teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin/Volochínov (1992) com a teoria de espaços mentais que diz respeito à referência de pessoa (LIDDELL, 2003 e MOREIRA, 2006) se fez importante neste trabalho.

A língua não tem “contornos absolutamente claros” e é por isso que a concepção de uma tradução, na qual o tradutor deve apenas transferir o significado, sem nele interferir, é utópica. Segundo Arrojo (2000, p.40), “é impossível resgatar integralmente as intenções e o universo de um autor, exatamente porque essas intenções e esse universo serão sempre, inevitavelmente, nossa visão daquilo que possam ter sido”.

Há questões fundamentais de construção de sentido que perpassam a tradução. É fundamental esclarecer que o papel do intérprete não se reduz a verter de uma língua para outra.

[...] o tradutor-intérprete atua na fronteira entre os sentidos da língua de origem e da língua alvo, com os processos de interpretação relacionando-se com o contexto no qual o signo é formado. O sentido do enunciado é construído na interação verbal, e é atualizado no contato com outros sentidos, na relação estabelecida entre interlocutores. A interpretação é um processo ativo, que procede de sentidos que se encontram, existindo, apenas, na relação entre sentidos, como um elo numa cadeia de sentidos. Pode-se dizer assim que a interpretação se revela na multiplicidade de sentidos existentes (LACERDA, 2000, p. 6).

O processo de comunicação procede de alguém e se dirige para alguém, tem duas faces. É necessário um locutor dono de parte da palavra e um interlocutor, um ouvinte potencial – dono da outra parte da palavra, estando então, a palavra, em uma zona fronteiriça. Essa palavra é determinada pelas relações sociais e não dispensa uma expressão ideológica (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1992).

A tradução deve ser satisfatória aos seus diversos participantes. Para Bakhtin/Volochínov (1992) deve-se estar atento “a interação dinâmica dessas duas dimensões, o discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti-lo” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1992, p. 148). Assim, o tradutor está neste espaço fronteiriço, ele constrói sentidos próprios sobre o discurso e o produz em outra língua, sendo neste momento um novo enunciador carregado por sua subjetividade e historicidade.

Para a teoria de espaços mentais as entidades conceituais são criadas no discurso com a integração de espaços mentais 1, o discurso é criado e compreendido por meio de redes de espaços mentais. O enunciador introduz elementos e coloca em relações estes elementos (MOREIRA, 2006).

Segundo Liddell (2003 apud Moreira 2007) os espaços mentais podem ser de dois tipos: os ancorados na realidade e representados como parte do contexto de enunciação (grounded) - remete-se a entidades do ambiente físico imediato, e os que não são representados como sendo parte do contexto de enunciação (non-grounded).

Moreira (2007) considera que didaticamente os espaços mentais podem ser explicados a partir da seguinte distinção: Espaço mental real, Espaço mental token e Espaço mental subrogado.

O espaço mental real é a sinalização com base nos espaços físicos visíveis e sempre na perspectiva do sinalizador. Não está relacionado apenas às pessoas presentes ao redor do sinalizador, pode ser construído também com coisas ou pessoas ausentes. Então, o espaço mental real de um tempo atrás pode permanecer na mente dos interlocutores em outro momento de conversação. As entidades podem estar “presentes” no espaço físico sob a forma de uma representação mental, associada a um local nesse espaço.

Assim, o espaço real é um mapeamento cognitivo do espaço físico que rodeia o sinalizador. Moreira (2007) esclarece que:

Em alguns casos, eles apontam para pontos específicos do espaço real (em frente ou ao redor do seu corpo) que não correspondem a pessoas ou coisas efetivamente presentes no ambiente físico de sinalização. O espaço mental real usado nas sinalizações abarca também entidades de outros espaços mentais. Uma característica importante dessa representação espacial de entidades de diferentes espaços mentais é o fato de as entidades as quais se quer referir estarem sempre, de alguma maneira, presentificadas e poderem ser apontadas por sinais como os pronomes (MOREIRA, 2007. p. 46).

O espaço mental token é um espaço integrado, em que as coisas das quais se quer falar são representadas sob a forma de um ponto fixo no espaço físico. As entidades tokens são invisíveis (apenas pontos associados a alguma representação mental) e são integradas ao espaço mental real (MOREIRA, 2007, p.47).

Já no espaço mental sub-rogado, segundo Liddell (2003, p. 159), os sinalizadores podem assumir o papel de qualquer participante da situação narrada e sinalizar como se fossem eles. Essas entidades criadas pelo sinalizador são entidades sub-rogadas, ou seja, são representações mentais em tamanho natural, que assumem posições realistas, por serem incorporadas pelo próprio sinalizador.

Metodologia

A pesquisa foi desenvolvida no intuito de analisar a tradução de obra literária de português para a Libras. Sendo, portanto, uma pesquisa de natureza analítico-descritiva. Selecionamos a obra “O homem que amava caixas” de autoria de Stephen Michael King editada no Brasil pela Brinquebook e traduzida por Neiva de Aquino Albres (ver figura 1).

A análise foi realizada a partir de uma metodologia exotópica em que o pesquisador se coloca como observador de sua própria produção discursiva (BAKHTIN, 2010).

Foi realizada também a decupagem (descrição detalhada da sequência de espaços mentais, da movimentação do corpo do sinalizador, da direção do olhar confrontando à ilustração do livro) da tradução para língua gestual-visual. A partir dos dados, pudemos proceder à análise da tradução da obra. Identificamos as estratégias utilizadas, as semelhanças e modificações entre as obras e os recursos linguísticos empregados.

A análise foi realizada a partir da teoria enunciativo/discursiva construída por Bakhtin/Volochínov (1992) e a teoria de espaços mentais de Liddell (2003).

Resultados e discussão

Resguardando o limite de espaço que nos coube para uma reflexão a respeito da tradução de literatura infantil, pretendemos aqui registrar de forma breve algumas considerações envolvendo as relações entre língua e imagem para construção da enunciação em livro traduzido para a Libras. Desenvolvemos duas categorias de análise: a) nomes próprios, e b) incorporação.

Os textos analisados consistem de textos reais e a cada novo leitor, a cada nova leitura se transformam em um novo texto. Mas, a forma como o tradutor em seu trabalho construiu sentidos sobre o texto fonte e o materializou em texto alvo (filmagens das traduções) nos servem de dados para serem analisados a luz da teoria enunciativo/discursiva e dos espaços mentais.

a) Nomes próprios
O livro comporta dois personagens que não têm nome, mas que no decorrer do livro são chamados por “homem” e “filho”. Na comunidade surda, as pessoas e personagens têm nome-sinal, numa perspectiva literária a tradutora fez opção por dar um nome-sinal aos personagens (ver figura 2).

Aguilera (2008) afirma que “um nome significativo tem um papel na história, e não traduzi-lo é suprir parte da função para qual o mesmo foi criado”, personagens apresentam conceitos abstratos, apresentam uma identidade que deve ser transmitida na língua a ser traduzida.

Esta opção pode ser compreendida como uma estratégia para manter as questões culturais da comunidade de destino e ao mesmo tempo torná-lo mais compreensível à criança surda.

Considerando tal especificidade da comunidade alvo (público leitor - criança surda) a tradutora criou sinais a partir de características físicas. Pesquisadores indicam ser mais comum o uso de sinais de nome descritivo, pela escolha de uma caracteristica proeminente da pessoa, fazendo uso então da metonímia, do que os descritivos misturados ou os tipos arbitrários (WILCOX, WILCOX & JARQUE, 2003).

Em ambos os casos, a tradutora optou por acrescentar a explicação diluída no meio da sinalização, inserindo que este era o sinal do personagem, para situar o leitor, como uma forma de apresentação de que o homem tem este sinal e o filho este sinal.

b) Incorporação
Em nenhuma parte do texto fonte ocorre a enunciação de algum dos personagens, não há registro na escrita de uso de discurso direto. Todavia, em muitos trechos a tradutora produz a enunciação do personagem, motivada pela imagem (ilustração) que compõe o livro (ver figura 3).

No espaço do mundo real (imagem do livro), há um homem segurando uma caixa e olhando para seu filho distante, como se olhasse por meio dela. A tradução é feita por princípios de identificação, o que permite ligar dois objetos de espaços mentais diferentes, o espaço real e espaço subrogado. Este processo cognitivo de integração é chamado de blendings.

O sinal 1 (ver figura 3) é um “construtor de espaço mental”, pois o homem já é apresentado na sinalização segurando algo em sua mão esquerda, ou seja, se projeta um novo espaço, dado também pela imagem revelada na mesma página do livro, um espaço assentado na realidade visual do material traduzido. Cada um (texto e imagem) tem seus próprios elementos e suas próprias relações proposicionais. Sendo o tradutor de literatura infantil um enunciador destas duas fontes.

Constatamos que o intérprete não traduz apenas o texto, mas incorpora os personagens, os faz ter voz e incorpora os espaços mentais construídos pelas imagens do livro (ver figura 4).

No trecho 2, do sinal 1 ao 3 o olhar do tradutor está direcionado para o leitor (interlocutor), assumindo a voz do narrador. Do sinal 4 ao 6 o olhar está direcionado ao castelo que o personagem (incorporado) está construindo. No sinal 4 e 5 apesar de incorporar o “Homem” os sinais manuais correspondem ao texto escrito na língua fonte “fazer castelos”.

Todavia, no sinal 6 (ver figura 4) o tradutor toma como fonte de inspiração para a movimentação do corpo o espaço físico construído na imagem (ilustração) que compõe o livro. Além disso, o tradutor constrói por si só (subjetivamente) o sentido de que o pai (homem) fica feliz ao construir um brinquedo para seu filho, produzindo expressão facial de esforço no sinal 3, de surpresa no sinal 4 e de satisfação/felicidade no sinal 6.

Para Bakhtin/Volochínov (1992) “as enunciações constituem a substancia real da língua e que a elas está reservada a função criativa na língua” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1992, p. 122). O tradutor como mediador e enunciador da palavra outrora dita em uma língua faz uso de seu estoque linguístico e criativo para o dizer em outra língua. Passa, então a ser um enunciador. A tradutora neste trecho usa o espaço mental token, uso de sinal de apontamento seguido de orientação do olhar e expressão facial (4 a 6) que indica o espaço mental subrogado (incorporação).

Tanto no sinal 1 (ver figura 4) (token) quanto no sinal 6 (ver figura 4) (subrogado) o tradutor usa o corpo na mesma posição do que foi apresentado na ilustração do livro.

Assim o pronome (ele) é indicado para o lado esquerdo e atrás do sinalizador, logo depois a entidade incorporada sai deste espaço mental construído e se integra à continuidade da história tendo uma relação direta com a imagem (ilustração) que aparece no livro.

Este cuidado é fundamental para que ocorra uma integração entre a imagem (ilustração) do livro e a tradução que é apresentada na mesma página. Moreira (2007) indica que a incorporação pode ser expressa por um sinal de apontação, seguido de expressão facial e direção do olhar que indiquem a entidade incorporada. Assim o fez a tradutora.

A tradutora, por vezes, se distanciou do original, pois foi recriando em conformidade com as imagens (ilustrações) da obra literária infantil. Além do tratamento dado à história, o aspecto visual também condiz com a característica linguística das línguas de sinais sendo recorrente o uso do discurso direto, mesmo que o original não o tenha feito.

Conclusão

Este trabalho pretendeu chamar atenção para as ressonâncias ideológicas nas escolhas que definiram a tradução. Constatamos que o grau de autonomia dos textos traduzidos foi alta e determinado, em grande parte, pela integração dos espaços mentais com base nas ilustrações do livro.

A literatura infantil registrada em material impresso composto também por imagens (ilustrações) é fonte rica a ser incorporado na enunciação em Libras construída pelo tradutor.

Há vários outros aspectos que podem ser explorados em uma análise futura desse mesmo livro traduzido. Este trabalho confirmou o pressuposto de que toda tradução é uma recriação e que os diversos resultados são de ordem ideológica e subjetiva fazendo uso das condições linguísticas que a própria língua proporciona ao tradutor.

Notas

1 Espaços mentais são mecanismos de instauração da pessoa no discurso, estão relacionados a particularidades discursivas onde referentes dos sinais de apontamento são projetados ao redor do corpo do sinalizador. Liddell (2003) define a integração de espaços mentais como uma operação cognitiva geral que combina ou mistura espaços mentais diferentes, para criar algum significado.

Bibliografia

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