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Ana Claudia Balieiro Lodi
Ana Claudia Balieiro Lodi
Professora e Investigadora
Apropriação da Libras e o constituir-se surdo: a relação professor surdo-alunos surdos em um contexto educacional bilíngue
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Publicado em 2012
ReVEL, v. 10, n. 19
Ana Claudia Balieiro Lodi
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Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir o papel do professor surdo no trabalho com crianças surdas, a partir de uma experiência em desenvolvimento em um contexto educacional bilíngue em uma cidade de pequeno porte no Estado de São Paulo. A análise, realizada à luz da teoria discursiva e enunciativa de Bakhtin, possibilitou a percepção dos processos constitutivos dos alunos como pessoas surdas, por meio da realização de práticas que viabilizaram seu desenvolvimento de linguagem/apropriação da Libras. Neste processo, os estudantes surdos, ao assumirem a Libras como a língua que os constitui (assim como ao professor surdo), instauraram novas relações de poder na interação com os professores ouvintes bilíngues e, ao assumirem-se autores de seus próprios dizeres nesta língua, puderam construir suas próprias histórias, que foram marcada, algumas vezes, por transformações culturais e pela inclusão de apreciações valorativas das situações narradas. Considera-se assim, que a participação de professores surdos nos processos educacionais de seus pares é de importância impar para o desenvolvimento dos alunos e para sua inserção em práticas socioculturais específicas deste grupo, processo que está intrinsecamente relacionado com a língua que lhes constitui como sujeitos da linguagem. A presença e valorização da Libras neste espaço social, possibilita ainda que, nos discursos em circulação, histórias de luta, concepções de mundo e um olhar para o ser surdo perpassem a constituição das crianças, processo determinante para uma transformação sociocultural e ideológica das pessoas surdas de uma nova geração.

Introdução

Na década de 1980 teve início um movimento mundial liderado pelas comunidades surdas de diferentes países e por pesquisadores da área da educação de surdos, reivindicando a implantação de políticas educacionais que garantam o direito das pessoas surdas à educação bilíngue. Esta educação pressupõe o reconhecimento da língua de sinais do país como primeira língua (logo a língua usada nos processos educacionais), o desenvolvimento de práticas e implantação de um currículo escolar que considerem os aspectos culturais determinados e determinantes desta língua e o ensino da linguagem escrita da língua majoritária como segunda língua. Reconhece-se nas práticas de educação bilíngue para surdos, “o direito que as crianças que usam uma língua diferente da língua majoritária, de serem educadas em sua língua” (Skliar, 1999: 10) e, portanto, sua materialização não pode ser compreendida como “uma decisão de natureza técnica, mas (...) politicamente construída tanto quanto sociolinguisticamente justificada” (Idem, ibid.).

Estas discussões chegam ao Brasil nos anos 1990, período em que tiveram início os estudos linguísticos da língua brasileira de sinais (Libras) e a realização de diversos eventos científicos voltados à melhor compreensão das especificidades linguísticas e educacionais das comunidades surdas brasileiras. Destes movimentos decorreu a promulgação da Lei 10.436/02, que reconhece a Libras como meio legal de expressão e de comunicação das pessoas surdas e, quase três anos e meio depois, do Decreto 5.626/05, que regulamenta esta Lei e dispõe sobre os processos educacionais bilíngues para alunos surdos.

Assegurar a educação bilíngue para surdos requer o respeito a alguns princípios, sem os quais se incorre no risco de um processo que se mantém apenas no plano discursivo. O primeiro deles é a garantia de oportunidades para os alunos surdos desenvolverem linguagem/apropriarem-se da Libras como primeira língua, por meio da interação com interlocutores usuários desta língua, membros da(s) comunidade(s) surda(s) brasileira(s), que devem assumir lugares sociais de pertinência nos espaços educacionais – professores surdos. Compreende-se que os adultos surdos sejam os interlocutores privilegiados para a imersão dos alunos na língua por possuírem domínio das diferentes linguagens constitutivas da Libras, podendo, desse modo, interferir, por meio dela, nos padrões culturais e de interpretação fundadas nas relações com a linguagem. Além desses interlocutores, deve-se ser assegurada a convivência entre colegas surdos no interior da sala de aula e da escola para que os alunos surdos dialoguem livremente em Libras, pois conforme discutiram Góes e Tartuci (2002), uma criança usuária de outra língua, isolada no contexto educacional, torna-se marginal aos processos de socialização e de aprendizagem. A centralidade atribuída à língua de sinais como material semiótico responsável por permitir a constituição de seus usuários como surdos e sua participação em todas as esferas de atividade humana, enfatiza a necessidade de que a Libras assuma status de primeira língua para esses sujeitos e, desse modo, que a educação para surdos seja realizada por seu intermédio. Nesse sentido, práticas de ensino pensadas a partir da Libras e currículos que contemplem a diversidade sociocultural específica dos surdos, marcam outra transformação a ser realizada nas propostas de educação bilíngue. A língua portuguesa em sua modalidade escrita é ensinada a partir de metodologias de segunda língua, tendo como base o desenvolvimento discursivo dos surdos em Libras.

No mesmo período em que estas questões começaram a ser debatidas em nosso país, o tema inclusão social/escolar tornou-se pauta das discussões mundiais e, gradativamente, começou também a ser objeto de atenção no Brasil, demandando a proposição de programas voltados à formação de gestores e educadores e de ações visando a promoção de condições de acessibilidade física, pedagógica, à comunicação e à informação com vistas à transformação dos sistemas educacionais nacionais em inclusivos, pelo Ministério da Educação. No entanto, apesar dos investimentos realizados, o Governo Federal reconheceu, em 2007, que poucas transformações tinham ocorrido de fato com o intuito de se garantir a educação inclusiva, “limitando o cumprimento do princípio institucional que prevê a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola e a continuidade nos níveis mais elevados de ensino” (Brasil, 2007a: 9).

Neste contexto, em 2007, foi instituído um Grupo de Trabalho com o objetivo de “rever e sistematizar a Política Nacional de Educação Especial” (Brasil, 2007b: 1). O documento aprovado – Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva - tem como objetivo valorizar os processos inclusivos “a partir da visão dos direitos humanos e do conceito de cidadania fundamentado no reconhecimento das diferenças e na participação [social] dos sujeitos” (Brasil, 2008: 1). Para este processo, enfatiza a necessidade de uma reorganização estrutural e cultural dos sistemas de ensino, de forma a assegurar o atendimento as especificidades educacionais de todos os alunos.

Convivemos assim, atualmente, com duas propostas educacionais para surdos construídas a partir de princípios que nem sempre podem ser postos em diálogo: a educação inclusiva e a educação bilíngue. A primeira, presente nos documentos do Ministério da Educação, defende a matrícula de todos os alunos, incluindo os surdos, no sistema educacional e prevê, como apoio aos processos de escolarização destes estudantes, a presença de tradutores e intérpretes de Libras – língua portuguesa em todos os níveis educacionais e o oferecimento do atendimento educacional especializado, em turno inverso ao período regular de ensino, com a função de complementar ou suplementar a formação escolar recebida (Brasil, 2008). A segunda, seguindo o disposto no Decreto 5.626/05 e apoiada pelas lideranças das comunidades surdas brasileiras e por pesquisadores da área da educação de surdos, a implantação de espaços escolares específicos para esses alunos, tendo a Libras como língua de instrução, um currículo escolar que contemple também as especificidades socioculturais e linguísticas das pessoas surdas e um trabalho voltado ao ensino-aprendizagem da linguagem escrita da língua portuguesa como segunda língua. Nesse sentido,

A língua [de sinais – Libras] passa a ser, então, o instrumento que traduz todas as relações e intenções do processo que se concretiza através das interações sociais. Os discursos de uma determinada língua serão organizados e, também, determinados pela língua utilizada como a língua de instrução. Ao expressar um pensamento em língua de sinais, o discurso utiliza uma dimensão visual que não é captada por uma língua oral-auditiva (Quadros, 2011: 35).

Observa-se que o ponto de maior tensão (porém não o único) entre as duas propostas encontra-se, justamente, na maneira como a Libras é compreendida e, portanto, na importância que ela adquire em cada uma delas. Na educação inclusiva, a presença da Libras é garantida por profissionais tradutores e intérpretes de Libras – língua portuguesa, cuja função é mediar a relação professores ouvintes/alunos surdos e a aprendizagem dos estudantes surdos, por meio da versão dos conteúdos expressos em português pelos docentes para a Libras. Não há uma preocupação, pelo menos explicita, com o desenvolvimento da linguagem/apropriação da Libras pelos alunos surdos, para que eles possam, por intermédio do tradutor e intérprete de Libras – língua portuguesa, acompanhar as aulas nesta língua.

De forma distinta, na proposta de educação bilíngue, a Libras assume papel central e, nesse sentido, defende-se a presença de professores surdos como participantes ativos nas práticas escolares junto a crianças, jovens e adultos surdos. Estes profissionais, por serem membros da(s) comunidade(s) surda(s), logo usuários da Libras, tornam-se os interlocutores responsáveis pela imersão dos estudantes na língua de sinais, interferindo ideologicamente, por meio dela, nos padrões culturais e de interpretação de mundo fundadas nas relações com a linguagem (Lodi, 2005). Nesta relação, estaria garantido, pelo menos potencialmente, o desenvolvimento de linguagem/apropriação da Libras pelos alunos surdos, viabilizando que os processos de escolarização sejam construídos em Libras, língua de ensino e, portanto, de interlocução professor-alunos. Os processos de ensino-aprendizagem estariam assim sob-responsabilidade de professores bilíngues (surdos ou ouvintes).

No entanto, os princípios que sustentam a educação bilíngue para surdos não são realidade em nosso país e a maioria das crianças surdas encontra-se hoje incluída nos sistemas públicos e privados de ensino, conforme as determinações da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008). Desconsidera-se, desse modo, as pesquisas que vem sendo realizadas nos últimos anos nos programas de pós-graduação do país com o objetivo de compreender como está ocorrendo os processos inclusivos de alunos surdos, nas quais, conforme delatou Stumpf (2008) no levantamento por ela realizado, comprova-se que os estudantes surdos não estão tendo boas oportunidades no ambiente escolar, devido a baixa acessibilidade aos conhecimentos específicos deste espaço social. A autora destaca como principais aspectos, “a falta de professores surdos, o pouco domínio pelos professores ouvintes da Libras (...) o desconhecimento de toda a comunidade escolar das reais implicações da surdez e a dominância dos estereótipos da deficiência” (Stumpf, 2008: 23).

Frente a essa realidade e na tentativa de minimizar as dificuldades educacionais que os alunos surdos, em sua maioria, tem vivenciado, no ano de 2009 foi dado início à implantação de uma proposta educacional em um município de pequeno porte no interior do Estado de São Paulo, que buscou garantir alguns princípios da educação bilíngue para surdos 4. No entanto, considerando que as redes municipais e estaduais de educação, em consonância com o disposto na Política Nacional de Educação Especial, tem inviabilizado, a priori, a criação de espaços específicos para esses alunos, o projeto só pode ter início se respeitadas as determinações do município, que defendia a matrícula dos alunos surdos nas salas regulares de ensino. Em contrapartida, o Departamento de Educação aceitou a contratação de um professor surdo, responsável pelo desenvolvimento de linguagem/apropriação da Libras dos alunos que não tiveram esta oportunidade anteriormente, pelo ensino da Libras para os familiares destas crianças e pela formação de duas professoras, que possuíam conhecimento da Libras, mas não o suficiente para atuarem na escolarização das crianças surdas nesta língua.

A presença do professor surdo e o trabalho por ele desenvolvido determinaram uma transformação significativa das crianças em diferentes aspectos, fato que culminou, dois anos depois de iniciado o trabalho, no repensar da proposta educacional e, hoje, os alunos surdos podem ter sua escolarização em um espaço distinto ao da sala de aula regular, em Libras, por intermédio de uma professora ouvinte bilíngue, além de participar de atividades junto ao professor surdo.

Dada a relevância do trabalho do professor surdo para o desenvolvimento dos alunos e para o repensar a educação destes estudantes pelo município, este artigo focalizará esta prática, por considerar que ela foi determinante para os processo constitutivos das crianças como sujeitos surdos, a partir da possibilidade de apropriação da Libras. Para a construção do texto, inicialmente serão realizadas algumas considerações sobre como se compreende o papel deste profissional na escola para, em seguida, serem abordadas as implicações da relação estabelecida entre professor surdo - alunos surdos no que diz respeito ao desenvolvimento da linguagem/apropriação da Libras e, consequentemente, dos aspectos culturais determinantes e por ela determinados.

1. A relação professor surdo-alunos surdos na construção das subjetividades: discutindo uma prática em desenvolvimento

Segundo Reis (2007), a presença do professor surdo nos processos educacionais é de importância impar para a constituição da(s) subjetividade(s) dos alunos surdos, na medida em que é esse profissional que revela, por meio de sua prática, a Libras, língua que determina e é determinante dos aspectos culturais das comunidades surdas brasileiras. É esse profissional quem possibilita que alunos surdos, filhos de ouvintes, olhem a si próprios como surdos, apropriando-se de formas de se relacionar com o(s) outro(s) e com o mundo que difere daquela realizada por seus pais, professores e colegas ouvintes.

No entanto, essa interação constitui-se, como toda relação humana, em um processo dinâmico, dialógico, que perpassa a história (Bakhtin, 1920-1930/2000a, 1970-1971/2000c) 5, e determina uma transformação de todos dos envolvidos, pois mesmo no caso de pessoas pertencentes a um mesmo grupo social, as significações construídas nas interações verbais são sempre relativas, pois dependem da relação estabelecida entre as pessoas e da posição que ocupam no grupo. Segundo Moraes (1996), estas significações relativas que constituem a existência dialógica dos indivíduos, necessitam ser assim percebidas e experienciadas, à medida que, nessa existência, o indivíduo é participante ativo ao mesmo tempo em que é espectador, um espectador que percebe e que é percebido em um mesmo tempo e espaço, em uma arena de simultaneidades.

Holquist (2002), ao discutir as categorias de tempo e de espaço para o eu/outro, apresentou um exemplo, usado pelo próprio Bakhtin, tirado de um dado simples da experiência para exemplificar esta questão: um observador olhando para outro observador.

Você pode ver coisas atrás de mim que eu não posso ver, e eu posso ver coisas atrás de você que são negadas à sua visão. Ambos estamos fazendo essencialmente a mesma coisa, mas de lugares diferentes: embora estejamos no mesmo evento, este é diferente para cada um de nós. Nossos lugares são diferentes não apenas porque nossos corpos ocupam posições diferentes no exterior, no espaço físico, mas também porque olhamos o mundo e os outros de diferentes centros no tempo/espaço cognitivo 6 (Holquist, 2002: 21-22).

Nesta perspectiva, o(s) sujeito(s) define(m)-se sempre por suas relações com outros, razão pela qual a construção das subjetividades implica em um processo plural, inesgotável, inconcluso e aberto: cada sujeito se percebe de maneira diferente, mesmo que em um mesmo local e em um mesmo tempo, por haver uma percepção limitada de si mesmo (Bakhtin, 1970-1971/2000c). É nesse sentido que o autor defende que toda existência é compartilhada, constitui-se em uma coexistência na qual o eu não existe sem o outro: “é pela percepção do outro que nos vemos como parte do mundo. É pela percepção do outro que não podemos rejeitar nossa própria existência. O eu não tem sentido por si próprio, somente o tem na relação com o todo social e com outros” (Moraes, 1996: 97).

Desse modo, pode-se afirmar que a construção das subjetividades depende, fundamentalmente, das relações estabelecidas em diferentes contextos sociais, incluindo o escolar. E assim, ao focalizarmos este espaço, a presença de professores surdos na educação ganha relevância para a construção de uma percepção do ser surdo pelos alunos que, em contrapartida, influenciam a maneira de o professor posicionar-se frente a eles. Como toda relação é perpassada pela linguagem, nas interações constitutivas de cada um e de todos como grupo, a Libras torna-se central. Além disso, sua apropriação pelas crianças abre a possibilidade de os alunos constituírem-se sujeitos de uma cultura que se configura, conforme Quadros (2011: 34), multifacetada e com características que lhe são específicas:

As formas de organizar o pensamento e a linguagem transcendem as formas ouvintes. Elas são de outra ordem, uma ordem com base visual e por isso tem características que podem ser ininteligíveis aos ouvintes. Essa cultura se manifesta mediante a coletividade que se constitui a partir dos próprios surdos.

São então nos espaços em que as relações intersubjetivas são construídas em Libras, que os sentidos construídos nas interações verbais manifestam-se como veículo de transmissão cultural, estrutura e experiência do pensamento e do saber social (Bakhtin/Volochinov, 1929/1999). Esta é a especificidade do humano: “o homem tem a especificidade de expressar-se sempre (falar), ou seja, de criar um texto (ainda que potencial)” (Bakhtin, 1959-1961/2000b: 334). Texto que, conforme o autor, só pode ser entendido no contexto dialógico de sua produção, circulação e recepção.

Além disso, para Bakhtin, todo e qualquer fenômeno de linguagem pressupõe diversidade e multiplicidade de discursos que se interceptam de diferentes maneiras nas relações intersubjetivas constitutivas do eu e do outro, colocando em diálogo pontos de vista e horizontes socioculturais diversos:

As palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornam-se bivocais. [...] O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçamos as nossas próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós; por último, revestimos terceiras das nossas próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas (Bakhtin, 1929/1997: 195).

Depreende-se assim, que as práticas discursivas em Libras são também perpassadas por discursos de outros, entre eles as dos ouvintes, que também participam da constituição do ser surdo. E nesta relação, dialógica em essência, discursos refletem e refratam valores socioculturais/ideológicos, possibilitando o olhar-se como diferente. Nesse processo constitutivo de subjetividades, em que o eu e o outro se constituem mutuamente, as relações estabelecidas entre pares surdos por intermédio da Libras possibilitam às crianças a apropriação de práticas discursivas específicas deste grupo social e, portanto, dos aspectos culturais determinantes e determinados pela Libras.

Este desenvolvimento, no entanto, é mais facilmente compreendido ao se pensar em bebês/crianças surdas filhas de pais surdos. Porém, a apropriação discursiva da Libras na relação estabelecida com um mediador que participa das práticas sociais das comunidades surdas brasileiras, é também possível no caso das crianças surdas filhas de ouvintes (mesmo que tardiamente), que, ao se constituírem sujeitos da linguagem pela Libras, tornam-se autores de seus dizeres e podem narrar a si, narrar o outro e narrar o mundo por intermédio dela.

2. Contextualizando a prática investigada

A experiência trazida para este artigo com o objetivo de elucidar as discussões anteriores é desenvolvida no espaço educacional de uma escola da rede pública municipal de uma cidade de pequeno porte do interior do Estado de São Paulo. No ano de 2010, o Departamento de Educação do Município, preocupado com as condições educacionais das crianças surdas, aceitou contratar um professor surdo para atuar com esses alunos em um espaço voltado ao desenvolvimento de linguagem/apropriação da Libras. Possibilitou ainda por intermédio deste profissional, que os familiares das crianças surdas tivessem um momento para a aprendizagem da Libras, além de trabalhar na formação de professores ouvintes com vistas a constituírem-se bilíngues (Português – Libras), a fim de assegurar uma escolarização pensada e construída a partir da Libras aos estudantes surdos. Paralelamente a essa formação específica em relação à língua sob-responsabilidade do professor surdo, todos os envolvidos começaram um processo de formação continuada voltado às práticas educacionais construídas a partir de uma língua cuja materialidade é viso-espacial-gestual (Libras), sob-responsabilidade da autora principal deste artigo.

Para o desenvolvimento da linguagem/apropriação da Libras pelas crianças, foi aberto um espaço na escola, no contraturno escolar, que foi denominado “oficina de Libras. O termo oficina foi utilizado como uma forma de diferenciar o trabalho realizado neste espaço daquele da sala de aula (de caráter pedagógico) e da maneira como os documentos oficiais tem compreendido o atendimento educacional especializado (Brasil, 2008). Tendo como base o estudo de Santos e Gurgel (2009: 55-56), entende-se por oficina,

o local em que membros de uma mesma comunidade (pessoas surdas), partilhando de seus conhecimento e habilidades numa mesma língua – Libras -, buscarão no desenvolvimento da linguagem meios para enfrentar o processos de escolarização e de desenvolvimento (...). Assim, o termo oficina parece ser mais amplo que aula e se mostra bem aplicado aos propósitos desejados; o que se observa neste espaço, frente ao trabalho do instrutor [/professor] surdo, são questões relacionadas à identidade e aos aspectos culturais – conhecimentos próprios dessa comunidade.

Do rico desenvolvimento que a proposta educacional focalizada neste artigo tem propiciado às crianças, ganha destaque aqueles envolvendo a linguagem, o olhar-se como surdo e, portanto, aqueles construídos na relação com o professor na oficina de Libras. Serão descritos neste artigo alguns aspectos do processo de duas crianças surdas, escolhidas por estarem participando do projeto educacional desde seu início. Elas, neste estudo, ganharam o nome de Gisele (12 anos) e Karin (09 anos).

Gisele e Karin são filhas de pais ouvintes. Gisele teve seu primeiro contato com sinais no ano de 2008, com então 08 anos de idade, por meio do trabalho realizado na sala de recurso multifuncional sob-responsabilidade de uma professora ouvinte que possuía conhecimentos de Libras. Neste período, não demonstrava interesse pela língua, recusando-se a usar e/ou a olhar para os sinais realizados pela professora. Somente no ano de 2010, com a contratação do professor surdo, pode construir suas primeiras interações com um adulto em Libras. Karin passou por um processo similar ao de Gisele: teve seu primeiro contato com sinais no ano de 2009, aos 6 anos de idade, ano em que foi matriculada na mesma escola que Gisele. No ano de 2010, na oficina de Libras, estabeleceu sua primeira relação com e em Libras com o professor surdo.

O professor surdo contratado pelo município atua no ensino de Libras há 14 anos. Possui certificação de instrutor de Libras pela Feneis e é considerado um dos líderes da comunidade surda da região em que vive. No ano de 2011, graduou-se no Curso de Letras – Libras, oferecido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), polo Universidade de São Paulo (USP). No entanto, apesar de toda a experiência acumulada pelo professor, sua prática, até o ano de 2010, centrou-se no ensino de Libras na educação superior; era a primeira vez que ele atuava em uma escola de educação básica e, portanto, com crianças surdas, fato que demandou que uma formação específica fosse com ele iniciada, que esteve sob-responsabilidade das autoras desse artigo.

2.1. O processo observado no contexto escolar

Um dos princípios do trabalho nas oficinas de Libras era (e continua sendo) a realização de práticas que considerassem a Libras em sua dinâmica discursiva, “a língua em sua integridade concreta e viva” (Bakhtin, 1929/1997: 181). Desse modo, o trabalho inicial buscou enfatizar o estabelecimento de interações discursivas, envolvendo relatos de experiências do cotidiano das crianças e do professor e atividades lúdicas. Nesse sentido, o professor surdo pode conhecer a linguagem e os conhecimentos de mundo das crianças, ao mesmo em que propiciava o desenvolvimento de ambos os aspectos.

Observou-se, nos primeiros contatos, que Karin e Gisele tinham muito a dizer, no entanto, faltava-lhes possibilidade de fazê-lo. Buscavam relacionar-se com o professor surdo por meio de enunciados constituídos por alguns sinais, gestos, mímicas, desenhos e vocalizações ininteligíveis, formas de comunicação desenvolvidas na relação familiar e escolar com a professora ouvinte, que antes era responsável pelos processos educacionais das estudantes surdas, e com os colegas ouvintes. Esse fato fez com que o professor surdo usasse uma linguagem que fosse acessível às crianças para, gradativamente, transformar, na própria relação com as alunas, os gestos/mímicas por elas realizados em enunciados em Libras. Buscava ainda marcar que as interações realizadas por meio de vocalizações não podiam ser por ele compreendidas, à medida que era surdo e não ouvia o que elas estavam dizendo, marcando, desse modo, um posicionamento social da diferença que os constitui.

Neste processo, a primeira transformação percebida foi em relação ao comportamento de Gisele, que ao ser olhada por esse outro que assumia uma posição de destaque no grupo (o professor) como igual em sua diferença e, portanto, como possível interlocutor em uma língua que lhe era acessível, passou a interagir, em sinais (e posteriormente em Libras), com o professor e com os colegas, em uma transformação de seu eu que foi determinante para os processos de apropriação da língua e dos aspectos culturais das comunidades surdas.

Para Bakhtin (1970-1971/2000c), as relações eu/outro(s), na qual a autoconsciência é constituída, não é um processo simples. Dialógica em essência, esta relação funda-se em uma tríplice distinção: o eu-para-mim (representação que o eu faz sobre si próprio), o eu-para-o-outro (representação do eu devolvida pelo outro) e o outro-para-mim (representação que o eu constrói sobre o outro). Neste processo o eu nunca é assimilado pelo outro, o que promove o surgimento de um novo elemento: o não-eu-para-mim. Para Zoppi-Fontana (1997), este seria uma modalidade do eu que tende a anular o eu-para-mim, para se definir como o outro-dos-outros. Este processo é possível na medida em que, conforme expôs Bakhtin (1920-1930/2000a: 36-37), “depois de vermos a nós mesmos pelos olhos de outro, sempre regressamos a nós mesmos; e o acontecimento último, aquele que parece nos resumir o todo, realiza-se sempre nas categorias de nossa vida”. Compreende-se assim, que o retorno do eu para si mesmo não é coincidente com o eu-para-mim e nem com o eu-para-o-outro, à medida que o eu nunca é assimilado pelo outro, por ocupar um lugar de sujeito que se diferencia daquele ocupado pelo(s) outro(s).

Desse modo, um novo eu passava a ser construído por Gisele: um eu transformado pelo olhar do outro (surdo) e que lhe possibilitava ver-se como diferente de como se olhava antes das relações estabelecidas nas oficinas. Esta transformação foi determinante para que a Libras se tornasse sua língua de interlocução e em poucos meses após a contratação do professor surdo, observou-se um declínio no uso de gestos, que foram substituídos por enunciados construídos por dois a três sinais.

Karin, desde que ingressou na escola, aceitava a comunicação gestual, mas mostrava-se desatenta, desviando com facilidade o olhar em direção aos professores ouvintes que buscavam interagir com ela por meio de sinais. Sua identificação com o professor surdo deu-se de maneira quase imediata e, assim como descrito para Gisele, em pouco tempo, Karin também transformou sua forma de comunicação com o outro, substituindo o uso de gestos, desenhos e vocalizações por enunciados em Libras.

Conforme discutido por Quadros (2008), os primeiros enunciados construídos em Libras por crianças surdas caracterizam-se pela combinação de poucos sinais, porém seu ordenamento é realizado com vistas ao estabelecimento de relações gramaticais, como sujeito-verbo (SV) ou verbo-objeto (VO) para, posteriormente, tornarem-se SVO. Neste momento do desenvolvimento, os aspectos flexionais verbais ainda não são por elas realizados (Bellugi et al., 1994) assim como os objetos são nomeados ou referenciados apenas no contexto imediato (Hoffmeister, 1978 apud Quadros, 2008). Como exemplo desses enunciados, pode-se observar a maneira como Gisele constrói a história de Peter Pan:

Recorte 1 7: história construída por Gisele

(aponta e olha para a figura) MENINO (aponta o nome) JOÃO (aponta o nome) MIGUEL BRINCAR ESPADA BRINCAR (aponta e olha para a figura) Menino (aponta o nome) João (aponta o nome) e Miguel brincam de espada.
(aponta e olha para a figura) JANELA PETER-PAN (aponta o nome) PETER-PAN JANELA OLHAR. JANELA-ABERTA OLHAR (aponta e olha para a figura) Janela, Peter Pan [vê] a janela Peter Pan olha a janela, olha a janela aberta.
(aponta e olha para a figura) PETER-PAN IR JANELA (aponta e olha para a figura) Peter Pan vai à janela
(aponta e olha para a figura) PETER-PAN CONVERSAR WENDY, (olhando para a figura) JOÃO, MENINO MIGUEL. (aponta e olha para a figura) Peter Pan conversa com Wendy (olhando para a figura), com João e com o menino Miguel.

Frente ao desenvolvimento demonstrado pelas crianças no decorrer do ano de 2010, no início do primeiro semestre de 2011, buscou-se a sistematização do trabalho nas oficinas de Libras por meio do contar histórias. Esta escolha decorreu de dois fatores: por se acreditar, conforme discutido por Lodi e Luciano (2009: 43), “que estas práticas propiciam a imersão das crianças em atividades discursivo-enunciativas por meio das quais as situações vivenciadas nos livros podem ser postas em diálogo com a vivência de cada uma” e por ser um gênero discursivo em Libras em processo de estabilização e cujos aspectos discursivo-enunciativos começaram a ser estudados em 2004 (Lodi, 2004).

A primeira história selecionada foi “O coelhinho que não era de Páscoa” 8. A escolha dessa história deveu-se ao tema constitutivo da mesma – identidade/diferença. Entendeu-se que as questões relativas ao “ser diferente” poderiam ser trabalhadas pelo professor surdo, se postas em relação com o “ser surdo” em um mundo majoritariamente ouvinte. Esta mesma história começou a ser trabalhada no momento destinado ao ensino da linguagem escrita da língua portuguesa, sob-responsabilidade de uma professora ouvinte bilíngue, que buscava a construção de um trabalho de leitura considerando os conhecimentos anteriores das crianças construídos na oficina de Libras 9.

Orientada pelo professor surdo, a professora ouvinte bilíngue, ao iniciar a leitura com as crianças, nomeia o coelho, personagem principal, por meio da datilologia de seu nome em português: V-I-V-I-N-H-O. A este enunciado, Gisele responde realizando um sinal para nomear o coelho em Libras. Naquele momento, a professora ouvinte compreendeu tratar-se de um sinal criado pelo professor surdo na oficina de Libras quando no trabalho com essa história; porém em conversa posterior com o profissional, ele relatou não ter dado, até aquele momento, um sinal para a nomeação do personagem.

Entende-se assim que na relação com o professor ouvinte, Gisele se sentiu “autorizada”, como surda, a atribuir um nome em Libras para o coelho, demonstrando, pela primeira vez, estar assumindo esta língua como aquela que constitui a si própria e a seus pares como surdos. Este assumir-se surda estabeleceu, na interação com a professora ouvinte bilíngue, nova relação de poder, que se diferenciava daquela relativa à posição social de professor e de aluno: a do (aluno) surdo frente ao (professor) ouvinte, quando se tem como ponto de vista a Libras. Instaurou-se, assim, um embate sócio-ideológico, um conflito histórico, em que o passado (relações intersubjetivas construídas nos espaços escolares) foi posto em confronto com um presente que apontava para a necessidade de transformação, a um futuro. Um confronto que pôs em cheque a ideologia sociocultural na qual todos foram constituídos, em face a uma nova perspectiva social que começavam a conhecer por meio da Libras.

Este novo lugar sociocultural dado pela língua foi determinante para uma transformação dos enunciados realizados pelas crianças surdas que, em uma significativa evolução linguística, passaram a construir histórias, relacionando os fatos em sua temporalidade, mesmo ainda tendo como base figuras por elas produzidas para a construção da história, uma das atividades com elas desenvolvidas no espaço escolar:

Recorte 2: narrativa realizada por Gisele

(aponta para o primeiro trabalho do painel). COELHO CESTA REDONDINHO, REDONDINHO, REDONDINHO (aponta para o desenho) CESTA. BRANCO, (aponta para o desenho), FOFINHO, SONOLENTO, FOFINHO. (aponta para o próximo desenho no painel) CRESCER, CRESCER. (aponta para o próximo desenho) CRESCER (aponta desenho) IR ESCOLA IR. (aponta o próximo desenho) MAÇÃ PEGAR ANDAR. (aponta desenho) ESCOLA IR FAMÍLIA TODO-DIA (aponta o desenho da escola). (aponta para o primeiro trabalho do painel). Coelho na cesta redondinho (aponta para o desenho). Branco (aponta para o desenho), fofinho, sonolento, fofinho. (aponta para o próximo desenho no painel). [O coelho] cresceu. (aponta para o próximo desenho) cresceu (aponta desenho). Vai à escola (aponta o próximo desenho). Pega uma maçã e anda (aponta desenho) A família vai todo dia à escola (aponta o próximo desenho).

Observa-se assim, nos enunciados de Gisele, um processo de apropriação da Libras que a transforma em autora de sua história. No entanto, dado o pouco tempo de contato com a língua, notam-se ainda dificuldades no que se refere ao uso pronominal para referentes não presentes, em um processo análogo ao descrito nos estudos voltados ao desenvolvimento de linguagem por crianças surdas filhas de surdos (Quadros, 2008). E assim, Gisele recorreu ao desenho como “porto seguro”, como forma de garantir a compreensão dos personagens e realizar suas diferenciações, dada a impossibilidade de fazê-lo, ainda neste momento, pela marcação discursiva em Libras - no espaço de enunciação.

Este processo começou a se transformar poucos meses depois, quando Gisele pode realizar uma leitura particular da história “O Lobo e os Sete Cabritos” 10 no espaço da oficina de Libras. Nesta história, o lobo, ao perceber a ausência da mãe cabra, resolve entrar na casa para comer os filhotes. Para alcançar seu objetivo, bate à porta e pede para os cabritos abrirem-na; estes, por sua vez, respondem que sabiam não ser a mãe devido a voz grossa do lobo. Irritado, o lobo tem uma ideia: beber um pote de mel na tentativa de adoçar sua voz para assim enganar os cabritos.

A história foi narrada às crianças pelo professor surdo em Libras da mesma maneira como contada no livro, utilizando o sinal de suavidade/delicadeza na construção do sentido de “adoçar a voz”: beber o mel para que a voz ficasse suave/delicada e, com isso, enganar os cabritos para entrar na casa e comê-los.

Recorte 3: narrativa realizada por Gisele

{sorrindo} LOBO IR PEGAR-POTE, ABRIR-POTE (aponta o mel na figura). BEBER. {passa a mão na garganta e faz expressão de estar contente} CABRITOS! {esfrega as mãos} O lobo sorri e vai pegar um pote, abre-o e bebe. {passa a mão na garganta e faz expressão de estar contente} Cabritos! {esfrega as mãos}
{esfrega as mãos na garganta e repete a expressão de estar contente} BATER-NA-PORTA {delicadamente e sorrindo}. O lobo esfrega as mãos na garganta contente e bate na porta delicadamente e sorrindo.
|assume posicionamento a esquerda do espaço de enunciação| CABRITOS! BATER-NA-PORTA. - Cabritos! Bate à porta novamente.

O primeiro aspecto que merece ser destacado no texto construído por Gisele, diz respeito à presença da voz do professor surdo em seus enunciados, do outro que, dialeticamente, participava de sua constituição como enunciadora. Este dado pode ser observado no “gesto” de esfregar as mãos, realizado pelo lobo, quando ele pensa em entrar na casa e comer os cabritinhos. Interessante observar que este mesmo enunciado (e com a mesma significação) foi realizado por Pimenta na edição do primeiro vídeo comercial produzido em Libras 11, ao contar as histórias Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos. O diálogo instaurado entre histórias demonstra uma valorização de saberes específicos em Libras e a apropriação das formas de significar nesta língua, que puderam ser observadas tanto nos enunciados do professor surdo quanto nos de Gisele. Palavras do outro, constituída no diálogo entre textos e histórias profissionais e de vida, que surgem como discursos do outro interiormente persuasivos, “determinante[s] para o processo de transformação da ideologia da consciência individual” (Bakhtin, 1934-1935/1998:145).

Outro aspecto observado foi a ressignificação da história realizada por Gisele a partir de sua própria compreensão/interpretação, imprimindo nela novos contornos na relação por ela estabelecida entre os sentidos em circulação no texto. Este processo possibilitou que Gisele realizasse uma “adaptação” cultural da história, de forma que os aspectos culturais determinantes e determinados pela Libras fossem postos em diálogo e em confronto com aqueles em língua portuguesa. Esta transformação cultural pode ser observada no enunciado de Gisele, quando a menina descreve a mudança de comportamento do lobo após beber o pote de mel, ao chegar à casa dos cabritos: BATER-NA-PORTA {delicadamente e sorrindo}. Observa-se assim, que a voz delicada buscada pelo lobo, um atributo percebido unicamente por ouvintes, é transformado em um comportamento visual, na maneira delicada do lobo bater à porta.

Nota-se ainda, nos enunciados realizados por Gisele, que se fazem presentes, pela primeira vez, aspectos discursivos específicos da Libras, percebidos quando a enunciadora assume um posicionamento no espaço de enunciação diferenciado para dar voz aos personagens: |assume posicionamento a esquerda do espaço de enunciação| CABRITOS! BATER-NA-PORTA.

No que diz respeito ao processo de Karin, pode-se observar, no reconto desta mesma história na oficina de Libras, outros processos interessantes relacionados à construção de sua própria história, que foi perpassada por apreciações valorativas particulares.

Recorte 4: narrativa realizada por Karin

(aponta os cabritinhos no ppt) 7 CRIANÇAS (aponta para a mãe no ppt) CABRA (aponta o lobo no ppt) LOBO. (aponta o coelho no ppt) COELHO. (...) (aponta os cabritinhos no ppt) 7 crianças. (aponta para a mãe no ppt) Cabra. (aponta o lobo no ppt) Lobo. (aponta o coelho no ppt) Coelho. (...)
ELA (apontando a mãe no ppt) VERDE COMIDA VERDE COMER. ELA (apontando a mãe no ppt) SAIR VERDE COMIDA. ABRIR-A-PORTA, ABRIR-A-PORTA, ABRIR-A-PORTA NÃO! ELES (apontando os cabritinhos) ABRIR-A-PORTA, FECHAR-A-PORTA. CERTO, VER COELHO (...) Ela (apontando a mãe no ppt) come comidas verdes, come comidas verdes. Ela (apontando a mãe no ppt) saiu para [comprar] comida verde. Não abram a porta! Eles (aponta os cabritinhos) abrem e fecham a porta. Certo, veem o coelho. (...)
COELHO CORRER MEDO. ELE (apontando o lobo no ppt) BATER-NA-PORTA. ELE (apontando o lobo o ppt) BATER-NA-PORTA, BATER-NA-PORTA, BATER-NA-PORTA. COMO-PODE? (com expressão de indignação) (...) Coelho correu de medo. Ele (apontando o lobo no ppt) bate à porta. Ele (apontando o lobo no ppt) bate à porta três vezes. Como pode? (com expressão de indignação) (...)

Karin, ao construir sua própria história, incorpora a ela um novo personagem: o coelho (que aparece ilustrado no livro, mas que não tem qualquer participação no texto). Este processo tem início na apresentação dos personagens, realizada por ela antes de iniciar a história propriamente dita. A partir desta introdução, o coelho passa a compor os eventos narrados, participando deles ativamente. Interessante observar que esta participação do animal ocorre de forma independente de sua presença ou não na ilustração do livro, fato que pode ser percebido pela preocupação dos cabritos com a presença do coelho em frente à sua casa quando a mãe lhes conta que precisa sair e que eles estão proibidos de abrir a porta: ELES (apontando os cabritinhos) ABRIR-A-PORTA, FECHAR-A-PORTA. CERTO, VER COELHO (...). Em seguida, com a chegada do lobo, o coelho corre de medo e, no decorrer de sua história, este personagem sempre volta à cena para observar as ações do lobo.

Outro aspecto que merece destaque é a inclusão de apreciações valorativas próprias em relação à situação narrada. Este fato pode ser observado na expressão “COMO-PODE!” enunciada com indignação, frente aos propósitos do lobo de comer os cabritos. Observa-se assim que com o maior domínio da linguagem, Karin trouxe para a história suas referências socioculturais, o que lhe permitiu a realização de enunciados carregados de entoação específica (indignação), determinados, inteiramente, pela situação extraverbal, pelos julgamentos de valor presumidos e pelo contexto social em que se constitui.

Esta maior apropriação da Libras (embora ainda em processo), este se ver como pessoas surdas, determinou, ainda, que processos comunicativos específicos desse grupo social (conforme descrito por Wilcox e Wilcox, 2005), fossem sendo incorporados pelas crianças, gradualmente, nas relações estabelecidas na oficina de Libras e generalizados para os outros espaços que participam na escola. Destaca-se o tocar o outro de forma delicada, o acenar com as mãos, o bater à mesa em situações de grupo e o acender e apagar as luzes para chamar a atenção do outro, em substituição ao grito e ao bater as mãos utilizados, inicialmente, pelas crianças, quando apenas no contato com ouvintes.

Algumas considerações

Em consonância com o discutido por Reis (2007), o ver-se como igual ao professor, identificar-se com a língua por ele usada e, portanto, apropriar-se dela, possibilitou às crianças um olhar para si que se tornou constitutivo dos modos de ser de cada uma, de suas subjetividades, de modo distinto e singular. Relações eu/outro, que segundo Bakhtin (1920-1930/2000a), determina o regresso a nós mesmos, retorno não coincidente com a forma como me represento e como recebo o olhar do outro, um acontecimento último que parece resumir o todo e que se realiza sempre nas categorias de nossa própria vida. E nesse sentido, um novo eu pode ser constituído por meio do desenvolvimento da linguagem.

Pode-se afirmar, ao se considerar os processos que antecederam a contratação do professor surdo e os observados no decorrer dos dois anos de trabalho investigados, que a presença deste profissional na escola foi fundamental para mudanças socioculturais e, portanto, linguísticas, no desenvolvimento das crianças. No que se refere à linguagem, observa-se o declínio no uso de gestos, mímicas, vocalizações e sinais isolados, que, gradativamente, foram substituídos por enunciados em Libras. Este processo foi determinado e determinante de uma transformação na maneira de cada uma olhar-se como surdas, assumindo a Libras como a língua que possibilita a construção de conhecimentos, leitura de mundo, do outro e de si mesmas.

Compreende-se, assim, os movimentos das comunidades surdas que clamam pela implantação de uma educação bilíngue para seus pares, educação esta na qual podem exercer papel fundamental para a construção das subjetividades surdas, para a inserção das crianças e jovens surdos nos processos socioculturais específicos deste grupo, processo que está intrinsecamente relacionado à língua que lhes constitui como sujeitos da linguagem.

Dessa forma, possibilitar a participação de adultos surdos nos processos educacionais é propiciar aos alunos, além do pleno desenvolvimento da linguagem, o conhecimento de uma história de luta, de concepções de mundo e de um olhar para o ser surdo que é determinante para a constituição sociocultural, logo ideológica, das pessoas surdas de uma nova geração, conhecimentos que só podem ser construídos por meio da linguagem/Libras.

Notas

4 Este projeto, denominado “Educação Bilíngüe para Surdos e Educação Inclusiva: implantação de uma proposta pedagógica”, está sendo financiado pela Fapesp - linha “Melhoria do Ensino Público” (Proc. nº. 2010/11012-1).
5 A primeira data refere-se ao ano em que a obra foi escrita; a segunda, ao da edição consultada.
6 Por tempo/espaço cognitivo compreende-se a arena na qual toda percepção é revelada (Holquist, 2002).
7 Notas da transcrição: a) as enunciações em Libras foram grafadas em letras maiúsculas; b) os verbos foram transcritos no infinitivo; c) flexão de número e gênero constou das transcrições tendo como base o contexto da enunciação; d) quando utilizadas duas ou mais palavras em português para a expressão de um conceito enunciado por um único sinal em Libras, as palavras foram ligadas por hífen; e) gestos foram grafados entre parênteses; f) explicações sobre diferenciações no uso do espaço discursivo entre colchetes; e g) as expressões faciais e corporais do enunciador, por serem marcas discursivas de significação em Libras, foram grafadas entre linhas verticais. Na tradução para o português, sentidos subentendidos, logo não enunciados, foram grafados entre chaves.
8 ROCHA, R. O Coelhinho que não era de Páscoa. São Paulo: Salamandra, 2003.
9 Infelizmente, por falta de equipamento para filmagem na escola no horário em que as oficinas de Libras eram desenvolvidas, as atividades das crianças com o professor surdo não puderam ser registradas. Este inconveniente só pode ser resolvido a partir de maio de 2011.
10 Viroux-Lenaerts, N.; Busquets, C. O Lobo e os Sete Cabritos. Lisboa: Edições ASA,1999.
11 Literatura em LSB. Califórnia/Rio de Janeiro: Dawn Pictures/LSB Vídeo, 1998.

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