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A Inclusão Escolar de Alunos Surdos no Ensino Infantil e Fundamental: Buscando respeitar sua Condição Lingüística e suas Necessidades Educacionais
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Publicado em 2007
Universidade Metodista de Piracicaba
Cristina Broglia Feitosa de Lacerda
Ana Claudia Balieiro Lodi
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

A complexidade da educação dos sujeitos surdos tem chamado a atenção dos educadores, já que os surdos, por sua perda auditiva, têm dificuldades de acesso à linguagem oral e escrita (Góes,1994), fato que interfere enormemente em sua socialização e em seu desenvolvimento geral (Vygotsky,1986). Por este motivo, embora as propostas educacionais tenham como objetivo proporcionar o desenvolvimento pleno de suas capacidades, as diferentes práticas pedagógicas têm lhes determinado uma série de limitações, levando-os, ao final da escolarização fundamental (que não é alcançada por muitos), a não serem capazes de ler e escrever satisfatoriamente ou de terem um domínio adequado dos conteúdos acadêmicos.

Introdução

Na década de 1980, iniciou-se um movimento que buscou soluções para esta realidade, por meio da incorporação das línguas de sinais das comunidades surdas às práticas educacionais – educação bilíngüe. Esta proposta educacional preconiza que o surdo deva ser exposto o mais precocemente possível à língua de sinais, identificada como a língua passível de ser desenvolvida por ele sem que sejam necessárias condições especiais de ”aprendizagem” e, posteriormente, que lhe seja ensinada a língua da comunidade ouvinte na qual está inserido, tomando como base, para esta aprendizagem, os conhecimentos adquiridos em língua de sinais. A implantação desta prática exige formação de profissionais fluentes em língua de sinais, conhecedores das práticas de ensino de segunda língua.

Atualmente, a inserção do aluno surdo no ensino regular é uma das diretrizes fundamentais da política de inclusão. Entretanto, o desempenho acadêmico e social de crianças surdas só podem ser alcançados se no espaço escolar forem contempladas suas condições lingüística e cultural especiais e, portanto, se a língua de sinais fizer-se presente; para tal torna-se necessário a inserção de intérpretes de língua brasileira de sinais (LIBRAS) e de educadores surdos, para a divulgação dos conteúdos escolares em LIBRAS (intérpretes) e para o desenvolvimento/aprendizagem da LIBRAS (educadores surdos) pelas crianças e profissionais da escola.

Considerando esta realidade as pesquisadoras se propuseram a implantar uma experiência de educação bilíngüe em duas escolas do Município de Piracicaba, visando atender aos anseios da atual política nacional de inclusão escolar, respeitando, ao mesmo tempo, as particularidades lingüísticas dos sujeitos surdos. Compreendendo que a realização de uma experiência prática favorece a formação de equipes escolares capazes de atuar adequadamente com estes alunos, foram desenvolvidas uma série de ações voltadas à capacitação dos profissionais que trabalham nas escolas, bem como se formou uma equipe de apoio para atuar no cotidiano da escola.

Esta pesquisa visou compreender o processo de implantação desta experiência e buscou responder as seguintes questões de pesquisa:

  1. Foram alcançadas transformações no ambiente escolar no que diz respeito à aceitação da criança surda e da LIBRAS ?
  2. A LIBRAS passou a circular de forma efetiva no ambiente escolar? Se sim, seu uso foi restrito às crianças, intérpretes e educadores surdos ou estendeu-se às demais crianças e profissionais ?
  3. A formação propiciada aos profissionais que atuam na escola e presença de intérpretes e de educadores surdos na escola interferiu positivamente no processo de ensino-aprendizagem das crianças surdas ?
  4. A formação oferecida aos profissionais ouvintes e surdos foi suficiente para a implantação de uma proposta inclusive bilíngüe para crianças surdas, nos termos propostos neste projeto, possibilitando, assim, a replicação desta experiência a outras escolas, caso haja esta necessidade no Município ?

Objetivos

A partir do reconhecimento da necessidade de uma proposta educacional bilíngüe, que considere as particularidades das crianças surdas, e a atual política nacional de educação inclusiva, vem sendo realizada uma parceria entre nosso grupo de pesquisa (em nome da UNIMEP) e a Prefeitura Municipal de Piracicaba (Termo Aditivo ao Convênio de Cooperação Técnica celebrado entre as duas Instituições, nos termos da Lei Municipal nº 3090/89, assinado em agosto de 2003 e renovado anualmente), visando criar um espaço experimental de inclusão da criança surda na abordagem bilíngüe. Esta pesquisa se propõe a estudar os resultados obtidos com o desenvolvimento desta experiência e centra-se no processo de formação da equipe envolvida no projeto e nas práticas educacionais desenvolvidas nas escolas.

Desenvolvimento

Vem sendo desenvolvida, pelas pesquisadoras, a capacitação dos profissionais das escolas (diretores, orientadores pedagógicos, professores envolvidos com as classes com alunos surdos, auxiliares e profissionais de apoio) visando informá-los e levá-los a refletir sobre a surdez, sobre aspectos da comunidade surda, suas características lingüísticas, culturais e sociais, bem como discutir sobre a relevância de uma adequação curricular, metodológica e didática para o trabalho com alunos surdos. Paralelamente, é desenvolvida a capacitação dos intérpretes e educadores surdos das duas escolas (contratados pela Prefeitura, como contrapartida à proposta deste grupo de pesquisa), buscando refletir sobre seu papel no ambiente escolar, os modos de estruturar adequadamente sua participação nas atividades, as troca de conhecimentos sobre LIBRAS/Português e as dificuldades escolares mais freqüentes das crianças surdas. Esses profissionais participam também das reuniões da escola de modo que os conhecimentos e as dificuldades sejam compartilhados, gerando um fórum de reflexão permanente sobre a experiência vivenciada. Além disso, os profissionais da escola freqüentam um curso de LIBRAS oferecido pelo educador surdo, a fim de poderem se comunicar com os alunos surdos.

Reconhecendo o desenvolvimento como um processo dinâmico, em constante fluxo, busca-se com estas práticas, dar conta da continuidade dos fatos, uma vez que a realidade é vista como um processo em constante movimento. O foco das análises recai, assim, sobre a emergência dos processos de mudança e permanência das dinâmicas próprias de sala de aula e das interações entre os sujeitos que constituem o espaço escolar.

Nesta oportunidade serão apresentados os resultados alcançados no terceiro ano de implantação da proposta e serão considerados, como instrumentos de avaliação:

  1. materiais produzidos pelos alunos surdos, nas diferentes turmas
  2. relatórios das diversas atividades desenvolvidas e registradas em diários de campo e em filmagens, realizadas no decorrer do período, pelas auxiliares de pesquisa;
  3. registros das reuniões de avaliação semestral; e d) depoimentos de professores, direção e orientação pedagógica, tomados nas reuniões de capacitação.

Resultados

Em relação à formação e atuação dos professores identificou-se que aqueles que permaneceram no projeto por um ano ou mais apresentaram um relativo domínio da LIBRAS, procurando usá-la no espaço escolar para se relacionarem diretamente com os alunos surdos. Segundo os professores, o domínio da LIBRAS evoluiu bastante, porém não consideram que este conhecimento é suficiente para o uso em sala de aula nos processos específicos de ensino-aprendizagem.

As oficinas semanais de LIBRAS, com uma hora e meia de duração, cujo foco é o ensino dessa língua para que todos os protagonistas da escola possam se comunicar com os alunos, têm possibilitado, apenas, um repertório funcional dentro do cotidiano escolar, não garantindo aos professores o domínio da língua para intervenções pedagógicas. Além disso, para muitos profissionais que não estão envolvidos diretamente com o aluno surdo em sala de aula, a Oficina de LIBRAS é uma obrigação, não havendo, assim, um investimento real de atenção ou dedicação para a aprendizagem desta língua.

Em relação à atuação professor e intérprete em sala de aula, observou-se que a postura dos intérpretes ora favorece que o professor se arrisque no uso da LIBRAS, apoiando-os em sua comunicação com os alunos surdos, ora desfavorece, adiantando-se na resposta de eventuais dúvidas dos alunos (especialmente na educação infantil, já que são bem mais solicitados pelas crianças).

Foram observadas atividades de atuação harmônica entre professores e intérpretes, possibilitando a compreensão dos alunos surdos, porém também foram observadas atividades em que os alunos surdos ficavam sob a inteira responsabilidade dos intérpretes, pois o professor trabalhava certos conteúdos com os alunos ouvintes deixando a cargo do intérprete a proposição de atividades aos surdos. Criava-se, assim, duas atividades paralelas em sala, sem consonância com a proposta de inclusão discutida no cotidiano da escola.

Outro aspecto a ser destacado é que os professores, muitas vezes, demonstraram não perceber as conseqüências do aluno surdo ser usuário de outra língua. Suas intervenções eram marcadas pela perspectiva ouvinte, agindo sem refletir sobre as diferenças das línguas e sobre o conhecimento de mundo que constituem os alunos, apesar das discussões e debates realizados sobre a surdez, a identidade surda e os modos de construção de sentido próprios e inerentes a cada língua. Assim, sua atuação em sala de aula não revelou uma reflexão aprofundada sobre a surdez, e o modo de se relacionar com os alunos surdos e as atividades preparadas, em geral, revelaram o ‘apagamento’ ou a negação da surdez, ainda que nas discussões esta percepção se revelasse presente em seu discurso.

Nas atividades de capacitação houve a oferta de materiais variados e livros, mas, freqüentemente, estes não eram utilizados pelo professor que preferia continuar usando os materiais com os quais estava acostumado (mais comuns à sua prática anterior ao projeto). Não se pode negar que houve movimentos de mudanças e ajuste da prática pedagógica, mas estas eram permeadas por modos mais conhecidos de atuar. Pode-se dizer, assim, que as atividades de capacitação oferecidas contribuíram para que o professor usasse/aceitasse a LIBRAS em sala de aula, porém seus conhecimentos sobre a surdez e sobre modos de atuar frente ao aluno surdo ainda se mostraram insuficientes, na medida em que a reflexão mais aprofundada sobre as implicações da surdez no fazer pedagógico não foi incorporada no cotidiano da sala de aula.

Este estudo indica, assim, que as ações de capacitação precisam ser melhor pensadas e desenvolvidas de maneira a desencadear processos de reflexão mais amplos que gerem transformações efetivas nas práticas escolares. Hoje, com todo o apoio recomendado para uma melhor condição possível de inclusão escolar, o processo esbarra nas marcas centenárias de um atendimento educacional especial orientado por perspectivas médicas organicistas. A questão lingüística fica reduzida a um mero código de comunicação e perde toda sua dimensão constitutiva.

Isto nos leva a duas perguntas:

  1. é possível uma ação pedagógica bilíngüe entre professor e aluno surdo, na qual o professor não se constitua bilíngüe?
  2. uma escola inclusiva precisa de qual organização pedagógica para garantir a plena aprendizagem escolar de alunos surdos e para que a sociedade desenvolva um novo conceito identitário para o surdo, de forma a não reafirmar as marcas discriminatórias, preconceituosas e excludentes que os tem acompanhado?

Em relação ao desenvolvimento das crianças surdas e da prática pedagógica em geral, destaca-se o resultado do SARESP alcançado pela escola de ensino fundamental em 2005. A EMEF teve boas médias quando comparadas com o restante do município e com o resultado do estado de São Paulo, sendo este um indicador positivo de que o trabalho de inclusão tem colaborado positivamente para o desenvolvimento escolar dos alunos em geral. No que diz respeito à aprendizagem das crianças surdas, elas têm mostrado bom desempenho geral nas disciplinas, contudo ainda não apresentam domínio do português, mesmo aquelas que estão cursando a 4ª série. Sua chegada tardia a escola e o pouco domínio da LIBRAS tem feito com que a tarefa de aprender a ler e escrever se torne árdua e este tem sido um grande obstáculo a ser transposto. As Oficinas de Português, voltadas para o ensino do Português como segunda língua para os alunos surdos do ensino fundamental, têm se mostrado um importante espaço de reflexão e de busca de estratégias pedagógicas adequadas a essa clientela.

Em relação ao educador surdo, estes ampliaram sua área de atuação, participando mais das salas de aulas e das Oficinas de Português e as trocas entre profissionais surdos e ouvintes têm se intensificado e propiciado maior adensamento das discussões e propostas.

Considerações Finais

Os resultados mais significativos dizem respeito às crianças surdas. Na educação infantil mostram-se mais comunicativas, mais proficientes em LIBRAS e interessadas nas atividades desenvolvidas. Este mesmo desenvolvimento foi observado no ensino fundamental, além do fato das crianças estarem mais interessadas no português escrito, porém com melhor desempenho nas atividades de matemática, ciências e estudos sociais, indicando bom aproveitamento escolar e adequação da proposta em vários aspectos.

Todavia, a capacitação dos profissionais envolvidos precisa ainda ser mantida, já que as adequações pedagógicas e curriculares ainda se mostram incipientes em várias áreas, e a formação dos educadores surdos e intérpretes de LIBRAS mostra-se complexa exigindo muita reflexão e aprofundamento, já que o espaço escolar é rico e cheio de situações imprevisíveis. Os dados também indicam que o modelo de inclusão com intérprete em sala de aula pode não ser o mais adequado para crianças nesta faixa etária, indicando necessidade de avaliação mais cuidadosa sobre este aspecto.

Bibliografia

GÓES, Maria Cecília Rafael de. A linguagem escrita de alunos surdos e a comunicação bimodal. 1994. 185 f. Tese (Livre-Docência em Educação)- Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994.

VYGOTSKY, Leo Semenovich. Fondamenti di Difettologia . Roma: Bulzoni, 1986.

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