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Orquídea Coelho
Orquídea Coelho
Professora
A profissão de intérprete de língua gestual: estudo sobre avaliação
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Publicado em 2019
Medi@ções. Revista Online da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal. Vol 7, n. 1, p. 75-89
Orquídea Coelho
Ana Rodrigues
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

O intérprete de língua gestual portuguesa (ILGP) é o profissional que contribui para a eliminação de barreiras linguísticas e aproxima os mundos surdo e ouvinte, em diferentes campos, nomeadamente linguístico e cultural. O tema da avaliação, ainda que polémico e de contornos variados, assume-se como um componente basilar. No caso particular dos ILGP, essa temática é emergente, mas são ainda escassos os estudos que lhe dedicam atenção. O nosso estudo foca a avaliação, considerada como estruturante e capaz de contribuir para regular a atividade profissional do ILGP. Com vista a trazer alguma luz sobre o processo avaliativo, partimos de um instrumento criado para a avaliação do desempenho do ILGP, intitulado “Avaliação de Desempenho e Qualidade de Intérpretes” (ADQI) desenvolvido por Simões (2011) e aplicámo-lo, junto de cinco intérpretes, tendo, para o efeito, adotado um conjunto de procedimentos metodológicos sequenciais. Os resultados obtidos remetem-nos para o reconhecimento e a importância da existência de um processo de avaliação, bem como para a adequação de um trajeto de redefinição do exercício da profissão em contexto escolar, o qual abrange a maioria dos intérpretes profissionais em Portugal.

Introdução

Historicamente, os intérpretes foram-se constituindo com caráter informal, extinguindo barreiras de comunicação entre surdos e ouvintes e servindo de mediadores das relações sociais dos que lhes eram próximos (Araújo, 2015). A profissão começou por ser assegurada por CODA (Children of Deaf Adults - filhos de pais surdos), outros familiares e amigos, em situações pontuais e sem carácter profissional (Barros, 2015; Nascimento, 2014; Silva, 2016) que se assumiram como elo entre as duas comunidades.
Atualmente, o Intérprete de Língua Gestual (ILG) assegura direitos linguísticos das pessoas surdas, enquanto especialista bilíngue e bicultural, considerando, na sua atuação, fatores contextuais, linguísticos e culturais de duas comunidades (Machado, 2017).

1. Enquadramento teórico

1.1. Intérprete de Língua Gestual Portuguesa

Aos ILGP colocam-se diversas exigências, como o domínio e fluência das línguas gestual (LG) e vocal e o desempenho de competências e habilidades tradutoras (Aguiar, 2018; Freire, 2013). Isso pressupõe não só o conhecimento de dois idiomas gramaticalmente distintos, que envolvem modalidades diferenciadas, mas também versatilidade para desconstruir e processar as diferenças que a língua vocal apresenta em relação à LG, e vice-versa.

Suportado por uma formação de excelência e academicamente habilitado, o ILGP deve relacionar-se harmoniosamente com a população com que interage, empregando orientações e atitudes éticas durante a interpretação (Silva & Ramos, 2015).

Em Portugal, o contexto educativo acolhe a maior percentagem destes profissionais no ativo (Gonçalves, 2018; Santos, 2015). A sua participação resulta da necessidade de atender às exigências legais que determinam o acesso e a permanência do aluno surdo na escola, preparando-se para uma participação cívica e ativa na sociedade (Moreira, Alves & Freire, 2013). O ILGP exerce funções nos níveis de ensino obrigatórios em Portugal, do ensino básico ao secundário, em Escolas de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos (EREBAS) e também no ensino superior.

A legislação portuguesa não confere, a estes profissionais, estabilidade profissional necessária, prevendo contratações a prazo e sem vínculo efetivo a uma escola (Nunes, 2017), nem lhes garante progressão na carreira ou atenção quanto à disposição física e mental no decurso da interpretação.

1.2. Avaliação profissional

A avaliação realiza-se em diversos níveis e espaços e é uma conduta requerida para obter informações e acompanhar a qualidade de serviços, de forma a preconizar uma evolução e aperfeiçoamento de práticas (Ferreira & Oliveira, 2015; Maia & Aguiar, 2018).

Para Silva e Mendes (2012), a avaliação é constituída por duas variantes: 1) autoavaliação - os atores são colocados na posição de sujeitos e parte do objeto a avaliar e 2) heteroavaliação - os especialistas têm por finalidade a valoração do objeto de análise.

Por definição e natureza, a avaliação é um processo que ajuda a compreender os problemas que afetam os profissionais e a delinear estratégias que possam contribuir para os superar. Nesta perspetiva, a avaliação deve ser um processo consensual, transparente e democrático, realizado por sujeitos capazes de executar tal função (Rosado & Silva, 2011). Ninguém melhor que o avaliado e os seus pares de profissão para realizar esta atividade tão subjetiva da melhor forma possível.

Consideramos que a avaliação pode assentar em três formas: autoavaliação, heteroavaliação e avaliação consensual, assumindo-se esta última como uma avaliação conjunta, em que várias pessoas analisam determinadas tarefas, numa perspetiva de diálogo e interação, permitindo que a subjetividade seja esbatida e que se obtenham avaliações válidas e consistentes.

1.3. Avaliação de ILGP

A avaliação dos ILGP deve potenciar e credibilizar as competências científicas e profissionais para que a sua profissão e a LG sejam valorizadas, credibilizadas e obtenham maior reconhecimento social. Na escola, pode promover uma melhoria na qualidade do sistema educativo e facilitar o acesso ao sucesso de forma eficaz, contribuindo para uma imagem positiva e credível das escolas.

Napier (2010) refere que não é possível demonstrar, em ambiente educativo, o impacto da interpretação no processo de aprendizagem dos alunos surdos, mas consideramos que uma avaliação positiva referente ao ILG pode, presumivelmente, melhorar o contexto escolar e trazer benefícios para os alunos, como o acesso a uma educação de qualidade.

São vários os instrumentos desenvolvidos internacionalmente com o objetivo de avaliar o ILG, permitindo de forma rigorosa verificar a proficiência, promover a qualidade e identificar as deficiências profissionais.

No contexto português, o tema da qualidade do ILGP tem sido alvo de debates informais quer por profissionais, quer pela comunidade surda. No entanto, a questão da avaliação de intérpretes e da sua operacionalização tem sido pouco explorada.

Em 2012, foi desenvolvida por Simões uma ferramenta geral de avaliação de ILG, o instrumento de Avaliação de Desempenho e Qualidade de Intérpretes (ADQI). O principal objetivo foi responder à necessidade e inexistência de instrumentos de avaliação específicos para o contexto nacional que conseguissem perspetivar e garantir a qualidade dos intérpretes (Simões, 2012).

2. Metodologia

2.1. Objeto de estudo e instrumento

O objeto de estudo deste trabalho foi a ação de auto, hétero e avaliação consensual de ILGP, especificamente em contexto educativo, com o objetivo de analisar e compreender a realidade avaliativa que enforma esta profissão.

Optamos pelo instrumento ADQI, que, embora não tenha sido posto em prática e aplicado, é apresentado pela autora como uma ferramenta com bons índices de fiabilidade, reprodutibilidade, consistência e concordância.

Esta ferramenta contempla três documentos: uma grelha de avaliação de desempenho, um manual de aplicação e um perfil de competências segundo níveis de desempenho.

A grelha de avaliação de desempenho permite a avaliação de quarenta e seis competências que se consideram necessárias a uma interpretação de excelência, num formato de check-list. Destas, dezanove competências avaliam o desempenho produtivo dos intérpretes aquando da interpretação para LG; quinze itens avaliam o desempenho produtivo recorrente da interpretação para língua portuguesa e doze competências avaliam o desempenho interpessoal. Há ainda lugar a uma avaliação global. Todas as competências são identificadas numa escala de Likert de cinco itens, desde muito inadequado
(1) a excelente (5).

O manual de aplicação clarifica os itens referidos na tabela e o perfil de competências (determinado tendo em conta a média das classificações) indica se o intérprete tem competências para desempenhar funções de forma autónoma (nível 4 ou 5) ou se não possui as competências mínimas necessárias (nível 1, 2 ou 3).

2.2. Sujeitos da Investigação

Selecionámos cinco participantes para conseguir recolher a opinião

de todos sem um clima intimidante. Os elementos do sexo feminino já se conheciam de forma mais ou menos próxima, mas comprometeram-se com uma atitude franca e imparcial. O quadro infra apresenta as suas características.

Participante Idade Grau académico Experiência em EREBAS CODA
A 23 Anos Licenciatura Não Não
B 38 Anos Mestrado Sim Não
C 30 Anos Mestrado Sim Não
D 22 Anos Licenciatura Não Sim
E 30 Anos Mestrado Sim Sim

Quadro 1. Caracterização dos participantes

2.3. Procedimento

Após escolha do instrumento e dos participantes, orientámos o trabalho em duas fases. Na primeira, foram criados os conteúdos a avaliar. Cada participante reuniu com a investigadora, viu um vídeo e ouviu um áudio e interpretou de forma simultânea para língua portuguesa e LGP. O resultado das interpretações foi usado na fase dois.

Na segunda fase, procedeu-se à avaliação propriamente dita nas três modalidades. Cada uma das participantes se autoavaliou e hétero avaliou as colegas, discutindo a avaliação consensual num Grupo Focal (GF). Este método de pesquisa pode ser utilizado para compreender diferentes perceções e atitudes dos participantes acerca de um facto ou prática, como uma tentativa de obter informação em profundidade, possibilitando a formação de ideias novas e originais (Krueger, 2009).

No total, foram usados cinco vídeos com interpretação em LG e cinco áudios com interpretação em língua oral. Cada participante tinha cinco exemplares da grelha para preenchimento à medida que iam sendo visualizados os ficheiros. As participantes dispunham também de um manual de aplicação e de um exemplar do perfil de competências

3. Resultados

O instrumento selecionado é suficientemente abrangente para avaliar diferentes contextos, por isso, algumas competências têm a expressão se aplicável. No nosso caso, dos quarenta e seis pontos, apenas dedicámos atenção a trinta e dois.

3.1. Autoavaliação

Todas as participantes se autoavaliaram e atribuíram um valor correspondente à apreciação global. Assim, a tabela seguinte apresenta as frequências com que cada nível foi classificado e o valor único da apreciação global.

AUTOAVALIAÇÃO
Avaliador


Desempenho Produtivo (para LG) Desempenho Produtivo (para LO) Desempenho Interpessoal Apreciação Global

Doze Itens Avaliados Catorze Itens Avaliados Seis Itens Avaliados
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
A 0 0 3 3 6 2 2 6 2 2 0 0 0 0 6       X  
B 0 0 1 10 1 2 5 5 2 0 0 0 2 1 3     X    
C 0 0 0 11 5 0 0 6 8 0 0 0 1 2 3       X  
D 0 0 0 6 6 0 0 1 7 6 0 0 0 0 6         X
E 0 0 0 6 6 0 0 0 9 5 0 0 0 1 5         X

Tabela 1. Frequência relativa à autoavaliação

De acordo com a tabela supra, as participantes avaliaram-se maioritariamente com o nível 4 ou nível 5 em todos os domínios (desempenho para LG, desempenho para LO e desempenho interpessoal). A exceção verifica-se no que diz respeito ao desempenho produtivo para LO, nomeadamente nas participantes A (autoavaliou-se maioritariamente com o nível 3) e B (a quantidade de itens avaliados como nível 2 é a mesma que com o nível 3, cinco vezes). Mesmo assim, tendo em conta as oscilações entre níveis mais baixos, apenas uma participante – B – se avalia globalmente com o resultado 3, enquanto duas se avaliam com 4 – A e C – e duas se avaliam com o nível 5.

O desempenho interpessoal é o mais uniforme em termos de aproximação do nível atribuído entre todas, sendo o desempenho produtivo para LO o mais díspar em termos de valores concedidos.

3.2. Heteroavaliação

Todas as participantes avaliaram quatro colegas, à exceção da participante D que se ausentou sem avaliar a colega C e E. Na tabela seguinte, encontramos os resultados que cada avaliadora atribuiu aos três domínios, bem como o valor da apreciação global.

Os resultados da heteroavaliação são mais constantes e homogéneos. A participante A é avaliada com uma média de 5, 4 e 5 nos domínios de produção para LG, LO e desempenho interpessoal, respetivamente, contando com a apreciação global de 5. Este é um valor igual para quatro das cinco participantes, uma vez que apenas D não foi contemplada com nota 5 de apreciação global.

Das restantes participantes, no que diz respeito ao desempenho para LG, B, C e E foram avaliadas maioritariamente com nível 5 e a participante D com nível 4. Na produção para LO, os resultados são ligeiramente diferentes, com as participantes A, B e D avaliadas com média 4 e as participantes C e E com nível 5.

HETEROAVALIAÇÃO
  Avaliador Desempenho Produtivo (para LG) Desempenho Produtivo (para LO) Desempenho Interpessoal          
Doze Itens Avaliados Catorze Itens Avaliados Seis Itens Avaliados Apreciação Global
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
A B 0 0 0 2 10 0 0 2 10 2 0 0 0 0 6         X
C 0 0 0 4 8 0 0 1 6 7 0 0 0 0 6         X
D 0 0 0 8 4 0 0 3 7 4 0 0 0 0 6         X
E 0 0 0 3 9 0 0 1 10 3 0 0 0 0 6         X
B A 0 0   4 8 0 0 2 4 8 0 0 0 1 5         X
C 0 0 0 0 11 0 0 2 7 5 0 0 0 1 5         X
D 0 0 0 2 10 0 0 1 7 6 0 0 0 0 6         X
E 0 0 0 2 10 0 0 1 9 4 0 0 0 0 6         X
C A 0 0 0 1 11 0 0 0 3 11 0 0 0 1 5         X
B 0 0 0 0 12 0 0 0 3 11 0 0 0 1 5         X
E 0 0 0 0 12 0 0 0 5 13 0 0 0 0 6         X
D A 0 0 0 6 7 0 0 1 1 12 0 0 1 0 5         X
B 0 0 1 9 2 0 0 0 10 4 0 0 0 2 4       X  
C 0 0 0 9 3 0 1 2 11 0 0 0 0 2 4       X  
E 0 0 0 8 4 0 0 0 9 5 0 0 0 1 5         X
E A 0 0 0 1 11 0 0 0 0 14 0 0 0 0 6         X
B 0 0 0 0 12 0 0 0 3 11 0 0 0 1 5         X
C 0 0 0 0 12 0 0 0 0 14 0 0 0 0 6         X

Tabela 2. Frequência relativa à heteroavaliação

Os dados da tabela 3 mostram-nos que, relativamente ao desempenho interpessoal, as participantes apreciam as colegas de forma mais frequente como sendo nível 5, apresentando-se este, de novo, como o domínio menos distintivo entre sujeitos avaliados.

As participantes A, B, C e E foram apreciadas na globalidade por todas as avaliadoras com o nível 5, enquanto a participante D foi cotada globalmente como 5 pelas colegas A e E e como nível 4 pelas colegas B e C.

3.3. Avaliação Consensual

Todas as participantes participaram na troca de ideias e opiniões de forma a chegar a um consenso sobre as suas prestações. A unanimidade é materializada numa grelha e a tabela seguinte resume as frequências que resultam da súmula de análises e juízos.

AVALIAÇÃO CONSENSUAL
Avaliador


Desempenho Produtivo (para LG) Desempenho Produtivo (para LO) Desempenho Interpessoal Apreciação Global
Doze Itens Avaliados Catorze Itens Avaliados Seis Itens Avaliados
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
A 0 0 0 2 10 0 0 2 8 4 0 0 0 0 6         X
B 0 0 0 1 11 0 0 1 7 6 0 0 0 0 6         X
C 0 0 0 0 12 0 0 0 3 11 0 0 0 1 5         X
D 0 0 0 7 5 0 0 1 7 6 0 0 0 1 5       X  
E 0 0 0 0 12 0 0 0 0 14 0 0 0 0 6         X

Tabela 3. Frequência relativa à avaliação consensual

Após discussão, as participantes concluíram que as prestações da participante A e B são de nível 5 no desempenho produtivo para LG e no desempenho interpessoal, tendo atribuído a maioria de itens como nível 4 aqueles que integravam o domínio do desempenho produtivo para língua portuguesa. Por sua vez, as participantes C e E foram cotadas com uma maior frequência com nível 5 em todos os domínios. Já a participante D foi classificada como integrando o nível 4 no desempenho produtivo tanto para LG, como LO, seguindo o nível 5 no desempenho interpessoal, do mesmo modo que as restantes.

Em termos gerais, A, B, C e E foram classificadas como intérpretes de nível 5 e a participante D como intérprete de nível 4.

Numa leitura rápida, podemos facilmente perceber as similitudes entre os resultados das frequências apresentadas no grupo da hetero-avaliação e da avaliação consensual. Este resultado explica-se porque o nível é calculado através da opinião de todas, sendo que das participantes que realizam a avaliação consensual, apenas uma delas não entra no grupo da heteroavaliação (integra a respetiva autoavaliação).

3.3. Categorias de análise

Através da Análise de Conteúdo, analisámos também comentários que foram surgindo na sessão e que nos forneceram informações sobre 1) Avaliação e 2) Trabalho dos ILGP. Optamos neste artigo apenas por apresentar as principais categorias extraídas, subcategorias e algumas considerações.

  CATEGORIAS
AVALIAÇÃO Geral Importância da avaliação, Circunstâncias em que ocorre e o Tipo de avaliadores
Autoavaliação Perceções Negativas das intérpretes, mas também a Consciência Positiva
Heteroavaliação Críticas de colegas e aos Elogios atribuídos
Grupo Focal Modelo Específico, Limitações (físicas e psicológicas) e Dificuldades (a nível da língua gestual e da língua vocal)
TRABALHO Trabalho Consequências, Exigência e Apresentação física
Estereótipos Condicionantes e Desconhecimento
Partilha Discussão de gestos e Partilha de Experiências

Quadro 2. Categorias de Análise

4. Discussão dos Resultados

O presente estudo, efetivou um processo de avaliação de ILG que não nos permite generalizar resultados, mas revelou-se um importante analisador de algumas dimensões e possibilitou-nos compreender como estas foram valorizadas pelas participantes.

Tendo em conta a autoavaliação aferida e considerando que este processo obriga o profissional a refletir sobre o seu trabalho e identificar os erros e aquilo que melhor faz, verificamos que as participantes CODA avaliam o seu trabalho como sendo nível 5, isto é, sem querer generalizar, neste caso, as CODA apresentam uma imagem profissional mais confiante no seu trabalho, autoavaliando-se superiormente.
Sabemos que os CODA, sendo filhos de pais surdos, têm um contacto precoce e diário com a LG, o que proporciona, em caso de efetivo convívio com a língua, um domínio e à vontade com a LG diferente dos profissionais que têm este contacto tardio e de forma descontinuada. Se considerarmos as heteroavaliações atribuídas a cada uma das profissionais CODA, seria expectável que o mesmo se verificasse e que estas tivessem sido avaliadas com o nível máximo. No entanto, existe uma discrepância de resultados entre autoavaliação e heteroavaliação no que diz respeito à participante D. Isto é, cientes de que a avaliação está dependente daquilo que o avaliador vê e da forma como perceciona as situações, verificamos que duas das participantes consideram a prestação da participante D de nível 4. E ainda, se atentarmos aos resultados da avaliação consensual, cotada em último lugar, verificamos que à participante D lhe foi atribuído o nível 4, o nível mais baixo do grupo em termos de avaliação consensual, ainda que definido como muito adequado.

A participante E é CODA, tem experiência em EREBAS e concluiu o grau de mestrado. A participante D é CODA, nunca exerceu funções em nenhuma EREBAS e tem o grau de licenciatura. Nas mesmas condições, sem ser CODA, sem experiência em EREBAS e com licenciatura, está a participante A, que se autoavaliou como nível 4, mas que, na modalidade de heteroavaliação e avaliação consensual, foi classificada como nível 5. Assim, podemos depreender que o fator CODA, tal como avançado por Gonçalves (2012), por si só não é indicador de alguma vantagem ou de um nível máximo de competência no desempenho da interpretação, devendo também ser considerados fatores intrínsecos ao indivíduo e às suas experiências profissionais.

A participante B, a participante com mais idade e com mais anos de profissão, tem uma perceção do seu trabalho como sendo de nível 3, ou seja, considerada adequada, tendo-se as restantes participantes

autoavaliado com níveis superiores. Embora tenha autoatribuído um 3, esta participante apresenta a maior discrepância no que diz respeito aos resultados da heteroavaliação e avaliação consensual, tendo- lhe sido atribuído o nível 5 nestas duas modalidades por todas as participantes. Parece-nos que esta participante tem uma perspetiva muito negativa sobre o seu trabalho. São recorrentes as críticas pessoais que faz, essencialmente focadas na comparação com outras colegas. No entanto, vale ressaltar que não é a única com esta opinião; as participantes A, B e E também fazem comentários sobre o seu desempenho, ainda que a sua autoavaliação seja muito adequada ou excelente, no caso da participante E. Todas as intérpretes que exercem funções em EREBAS materializaram uma avaliação consensual de nível 5.

Em Portugal, e independentemente do contexto, ainda não há uniformidade nem obrigatoriedade nos processos avaliativos. Estes têm uma complexidade subjacente, devendo existir algum cuidado na escolha do avaliador (Martins, Candeias e Costa, 2010). Dos resultados conseguidos através da análise de conteúdo, percebemos que as participantes parecem recusar, por exemplo em contexto escolar, a figura do professor de educação especial como avaliador. Se a avaliação dos ILGP é realizada com o objetivo de potenciar e credibilizar as suas competências, as pessoas mais indicadas para este papel serão aquelas com conhecimentos a todos os níveis da profissão, ou seja, os próprios intérpretes.
Os ILGP deveriam ter oportunidade de avaliar os colegas e de se autoavaliar, uma vez que são eles que sentem na pele as dificuldades e reconhecem a mestria nos colegas. No estudo, as participantes tiveram em consideração o grau de dificuldade inerente ao que lhes era solicitado e especial atenção quanto ao facto da gestuante surda ser uma pessoa exímia quanto ao domínio da língua gestual. Se o avaliador fosse uma pessoa externa, sem os mínimos conhecimentos exigidos, provavelmente não teria a mesma sensibilidade para analisar a questão, podendo resultar conflitos e consequências indesejáveis.
Revelou-se também importante considerar as condições psicológicas dos participantes. A tarefa de interpretar envolve processos cognitivos muito exigentes e complicados (Marinho, 2016) e o ato de avaliar envolve processos difíceis, repletos de complexidade e ambiguidade (Pinto, 2016). As condições psicológicas dos envolvidos devem ser as melhores para garantir um processo viável e fiável e para que avaliador e avaliado consigam gerir a pressão sem sentimentos de insegurança.

A exigência da interpretação também é referida pelas participantes na sessão em GF relativamente ao trabalho do intérprete. A profissão carece de regulamentação, não existindo muita proteção quanto à imposição de limites de atuação, para evitar que o profissional seja obrigado a trabalhar ininterruptamente durante muitas horas, sem possibilidade de troca com colegas. Da bibliografia (Barbosa, 2015; Nogueira, 2016) chegam-nos indicações de consequências negativas face a muitas horas de trabalho. No GF, as participantes referiram a exposição a algumas doenças profissionais e o confronto com a necessidade de continuar a trabalhar sem serem tidos em conta os devidos cuidados, uma vez que estamos perante uma profissão exigente e cansativa. Manifestaram também que poucas pessoas compreendem a sua função e não lhes atribuem estereótipos errados.

Durante a sessão de GF, foi também referida a desconfiança das pessoas surdas relativamente ao intérprete e ao seu desempenho, havendo relatos de não proficiência do intérprete. Isto vem reforçar a importância de uma avaliação de ILG, de modo que o cidadão surdo possa confiar na qualidade da interpretação.

Reflexões finais / Conclusões

O ILG atua na intermediação cultural e na fronteira entre as culturas ouvinte e surda, e, embora exista quem considera o intérprete como mal necessário (Perlin, 2006), ele é o profissional que traduz a língua, a história e a subjetividade da comunidade surda e a apresenta ao mundo ouvinte.

Através do estudo realizado, percebemos que são vários os fatores que influenciam o trabalho de qualidade dos intérpretes. Efetivamente, as grelhas mostram-nos que mais do que o facto de ser CODA, muitos outros aspetos podem influenciar e contribuir para a qualidade de nível excelente. Indicadores como experiência profissional e grau académico têm também um impacto no desempenho dos ILGP. O modelo de avaliação utilizado, assente nas modalidades de auto, hétero e avaliação consensual, por empoderar os próprios ILGP no momento da avaliação, parece-nos indicado e justo para o seu fim. Através deste mecanismo, o intérprete pode refletir acerca do seu trabalho e, num ambiente de segurança e confiança, ouvir as opiniões dos colegas acerca da sua prática profissional.

Consideramos também que as participantes têm consciência do quão importante é o processo de avaliação e de reflexão sobre as compe-

tências de cada um e do que precisa aprimorar para contribuir para a melhoria dos contextos, do desempenho profissional e do reconhecimento social da profissão.

Outra consideração prende-se com a quantidade de temas que foram abordados ao longo da sessão de GF. Ao longo da sessão, foram vários os momentos de debate e partilha de experiências vivenciados, discussão sobre gestos da LGP, expressões e técnicas de interpretação, o que revela a necessidade de partilhar histórias e acontecimentos, e a de organizar sessões em que os profissionais se possam encontrar e refletir juntos.

Segundo Perlin (2006), o movimento da cultura surda focou-se durante anos na formação do intérprete e na sua qualificação social e cultural, tendo dedicado muito poucos estudos à avaliação e a ferramentas para este efeito. Consideramos que urge refletir de forma mais aprofundada acerca da temática e suas particularidades.

Concluindo, julgamos pertinente e urgente implementar um método de avaliação de ILGP a nível nacional, para um crescente reconhecimento profissional, essencialmente a aplicar em contexto educativo. Espera-se que este trabalho possa constituir um contributo para o desenvolvimento desta valência, a concretizar num futuro próximo.

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