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A interface entre o processo formativo docente e a prática de ensino de Língua Gestual Portuguesa
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Publicado em 2017
In: Luís Grosso Correia; Ruth Leão; Sara Poças. (Org.). O Tempo dos Professores. 1ed.Porto: CIIE/FPCEUP/U.Porto, p.1101-1109
Andréa Pereira Silveira
Orquídea Coelho
Ivany Pinto Nascimento
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

Trazemos para o debate as dimensões dos processos formativos de professores de Língua Gestual Portuguesa (LGP) e a influências desses processos na prática docente desenvolvida no ensino de LGP no âmbito de Portugal. Para tanto, propomos enquanto objetivo geral do estudo em questão: analisar o processo de formação docente e a influência deste na prática pedagógica do ensino de LGP. Trata-se de uma pesquisa de campo de abordagem qualitativa. Para a coleta de dados empregamos a entrevista semiestruturada com um professor de Língua Gestual Portuguesa, a fim de discutir aspectos relacionados à formação docente e a prática de ensino de LGP. Os resultados preliminares indicam que o processo formativo do professor de Língua Gestual Portuguesa reflete uma conjuntura de necessidades de valorização desta língua, do reconhecimento das especificidades que envolvem o uso e ensino de línguas gestuais, bem como de outras influências e demandas apontadas no decorrer do processo de formação docente, tais como: o desenvolvimento de metodologias apropriadas as características visuais inerentes aos usuários de LGP e a necessidade de sistematização de materiais específicos para a propagação da LGP.

Introdução

Nesta investigação 1 trazemos para o debate as dimensões dos processos formativos de professores de Língua Gestual Portuguesa (LGP) e a influências desses processos na prática docente desenvolvida no ensino de LGP, no âmbito de Portugal, a partir da vivência de um docente surdo. Para tanto, traçamos enquanto objetivo geral do estudo em questão: analisar o processo de formação docente e a influência desse na prática pedagógica do ensino de Língua Gestual Portuguesa.

Situamos que a LGP foi reconhecida em Portugal no ano de 1997 por meio do ponto 2, alínea h, do artigo 74º da Constituição da República Portuguesa. Assim, configura-se um instrumento jurídico que ampara os surdos portugueses em seu direito linguístico no que tange ao acesso à educação.

Neste debate Coelho (2010) assevera a relevância de proporcionar as pessoas surdas educação bilíngue e multicultural. Outrossim, apoiamo-nos em Quadros (2005) que discute a necessidade de proporcionar um ambiente bilíngue e bicultural. Ambas autoras assumem o bilinguismo como proposição fundante em que as línguas gestuais / de sinais são reconhecidas e devem ser utilizadas, valorizadas e respeitadas em contextos educacionais que envolvam pessoas surdas. A surdez é compreendida por Coelho (2011, 282) como uma experiência visual e propõe a reflexão de que a “propósito da experiência do olhar surdo, queremos revelar o importante papel que ele desempenha na construção do mundo e na atribuição de sentidos e significados pelo surdo”. Neste prisma, Perlin (2000) também aponta a experiência visual como constituinte da pessoa surda. Skliar (2009, 11), por sua vez, afirma que a “experiência visual envolve todo tipo de significações, representações e/ou produções, seja no campo intelectual, lingüístico, ético, estético, artístico, cognitivo, cultural”.

Buscamos a partir da ótica da experiência visual compreender os possíveis entrelaçamentos que o professor surdo tece em seu processo formativo e como isso reverbera em sua prática docente no ensino de Língua Gestual Portuguesa 2.

Em vista disso, intencionamos refletir sobre os processos de formação do professor surdo para apreender a influência desses na sua prática pedagógica. Isso permite perceber o quanto as línguas gestuais / de sinais são marcantes em seu empoderamento e escolha profissional.

Metodologia

Quanto aos aspectos metodológicos é pertinente esclarecer que se trata de uma pesquisa de campo de abordagem qualitativa. Para a coleta de dados empregamos a entrevista semiestruturada (Minayo, 2010), realizada com um professor de LGP que atua no ensino superior, a fim de discutir aspectos relacionados à formação docente e à prática de ensino dessa língua. Devido a especificidade de o entrevistado ter concedido a entrevista em LGP realizamos o registro por meio de filmadora. Além disto, destaca-se a colaboração profissional de uma intérprete de LGP que executou a tradução simultânea para a Língua Portuguesa.

Enquanto cuidados éticos utilizamos o Termo de Consentimento Informado e empregamos o nome fictíco de Roberto para referir-se ao sujeito desse estudo.

A constituição do processo de formação docente

Na intenção de perscrustar o processo de formação docente vivenciado por Roberto dialogamos acerca do momento em ocorreu o seu contato com a LGP. Ele afirmou que para tratar disso necessitava recorrer a sua trajetória desde a infância até o seu envolvimento no curso de formadores de LGP. Assim, narrou as seguintes passagens de sua vida:

A resposta não é directa, eu preciso voltar aos meus 6 anos de idade e foi quando eu aprendi a falar e a escrever ao mesmo tempo. Onde estava eu e mais dois colegas surdos e o objectivo era desenvolver a oralidade. Antigamente a língua gestual era proibida, como sabem, o único objectivo era desenvolver a oralidade. Então eu vim para o Porto integrado numa turma com outros dois surdos, portanto éramos 3 surdos, tinha explicações de Português, Matemática e depois ia para a Póvoa, onde eu moro, integrado com ouvintes, fui para o primeiro ciclo integrado numa turma de ouvintes. Vinha ao Porto fazer terapia da fala duas vezes ou três vezes por semana, vinha de Póvoa a Porto. Eu sofri bastante e eu sinto que perdi a minha infância porque tinha pouco tempo para brincar, para conviver. Objectivo era só desenvolver a oralidade. Fiz o primeiro ciclo todo, segundo, terceiro e quarto ano. Fiz no mesmo ano o terceiro e quarto ano do ensino básico. O objectivo era poder passar para o quinto ano para uma turma de surdos, isto em 1980, e vi pela primeira vez os surdos e a língua gestual e pessoas mais velhas com 16, 17 anos de idade e eu só tinha 10 anos. Portanto, para mim era uma grande diferença e comecei a perceber que os surdos falam assim com língua gestual. Então comecei a aprender alguns gestos, mas poucos. Comecei a aprender o alfabeto. Foi esse o meu primeiro contacto com a língua gestual e com outros surdos, mas não conseguia ter uma língua fluente. Dois anos depois, fiz o quinto e o sexto e depois no sétimo mudei novamente para a Póvoa onde fiquei. Não tinha perdido a fala e fiquei numa turma de ouvintes, mais tarde no ensino secundário voltei para o Porto, tive contacto com surdos de facto nos intervalos. Nas aulas tinha disciplinas de Português, Francês, portanto teóricas, e estava integrado numa turma de ouvintes. Educação visual, ginástica, educação física, os surdos, três ou quatro, é que vinham para a minha turma e, então, podíamos conviver e gestualizar. No 12º, quando terminei, entrei na faculdade e mais uma vez sozinho numa turma de ouvintes senti a necessidade de contactar e comunicar com surdos. Eu senti que precisava da língua gestual. Senti isso como uma falta em mim, por isso decidi mais tarde por um curso, no ano 2000, da Asssociação de Surdos do Porto que era um curso de formação de formadores de LGP, o meu objectivo não era ensinar, trabalhar, o meu objectivo era poder comunicar, ganhar fluência na comunicação da língua gestual, era esse de facto o meu objectivo principal.

Desse relato destacaremos dois pontos importantes: o foco inicial na oralidade e o despertar para o uso da LGP. Roberto afirma que sofreu em sua escolarização, posto que inicialmente o único objetivo era a oralidade. Acerca do foco no oralismo e da privação das línguas gestuais / de sinais, Strobel (2013, 30) explica que:

Por causa das proibições de compartilhar uma língua cultural do povo surdo em resultado emitido pelo Congresso Internacional de Educadores Surdos ocorrido em Milão, na Itália, no ano de 1880, o uso de língua de sinais foi definitivamente banido a favor da metodologia oralista nas escolas de surdos.

Assim, podemos inferir que o relato de Roberto apresenta resquícios da metodologia oralista, na qual se preconizava a oralização como caminho mais adequado para a educação de surdos, de maneira que proibia o uso das línguas gestuais / sinais por considerarem que estas seriam prejudiciais ao processo de aquisição da oralidade por parte dessas pessoas.

Ressaltamos que ao se referir às práticas oralistas o professor expressa-se com pesar e tensões, tais como a afirmação de que perdeu a infância ao investir muito tempo na aquisição da oralidade, que era o únicio objetivo nos primeiros momentos de seu percurso escolar.

A narrativa de Roberto assume um cariz mais sereno ao expressar sua experiência de perceber que os surdos usavam língua gestual e de como essa diferença foi significativa para ele. Nessa via, Coelho (2010, 207) aborda que os “seres humanos têm uma predisposição para se exprimirem e comunicarem utilizando os gestos, fenômeno que é evidenciado pelos surdos”.

É pertinente pontuar que a aproximação de Roberto com a LGP é marcada pelo encontro com outras pessoas surdas na escola, momento em que adquire alguns gestos que, segundo ele, não configuravam ainda fluência nessa língua. Ao longo de sua interação com os ouvintes aponta que usava a oralidade, mas que em dado momento sentiu uma falta em si, isto gerou a necessidade de aprofundar-se no estudo da LGP.

Inicialmente seu objetivo era comunicar-se em língua gestual. Para isto, procurou a Asssociação de Surdos do Porto que ofertava um curso para a formação de formadores de LGP e este movimento marca a sua trajetória de formação docente. Há um reencontro com a Língua Gestual na busca de suprir algo que faltava em si, pois sentia que precisava dessa língua.

A potência do encontro surdo-surdo promovido por meio das línguas gestuais/ de sinais é abordada por Strobel (2013, 42) ao afirmar que os sujeitos surdos “estão ligados por um código de formação visual independende do nível linguístico.” Assim, observamos na narrativa de Roberto que sua busca por maior fluência em LGP advinha da necessidade primeira de comunicar com outros surdos, contactar por meio dos gestos que promovem encontros e sentidos.

Sobre a relevância dos encontros e da comunicação entre surdos por meio da língua gestual / de sinais, Strobel (2013, 40) assevera que:

Então, muitas vezes, a formação das identidades surdas é construída a partir de comportamentos transmitidos coletivamente pelo “povo surdo”, que ocorre espontaneamente quando os sujeitos surdos se encontram com outros membros surdos nas comunidades surdas.

Os encontros entre surdos são mediadores da construção de identidades surdas 3, da aquisição das línguas gestuais / de sinais, bem como influênciam no percurso formativo, profissional e nas marcas culturais desses sujeitos.

A partir da conclusão do curso desenvolvido no âmbito da Associação de Surdos, o presidente dessa convidou Roberto para trabalhar no ensino de LGP. Ele descreve que inicialmente relutou e alegou que seu objetivo não era ensinar, mas o presidente da associação o fez repensar esta postura ao argumentar que ele tinha boas notas no curso de formadores e comunicava-se bem. Assim, Roberto conta sobre o início de sua carreira docente no âmbito do ensino de LGP:

A primeira escola onde trabalhei foi na Escola Superior de Enfermagem, a Escola de São João, portanto comecei a ensinar língua gestual que era uma disciplina de opção para os estudantes universitários. Depois comecei a dar várias formações vários cursos e cada vez aumentar mais a minha experiência e o meu currículo. No ano seguinte é que entrei para a Direção Regional de Educação do Norte (DREN), para os concursos da Direção Geral de Educação e comecei a trabalhar com crianças surdas em uma escola, que ainda não eram escolas de referência, antes do decreto-lei 3/2008. Foi assim que comecei a minha profissão como formador de língua gestual.

O professor destaca que em 2006 um colega de trabalho alertou-o sobre a importância de cursar a Licenciatura em Ensino de Língua Gestual Portuguesa, por considerar que em um futuro próximo esta certificação seria necessária. Neste contexto, Roberto expressa que:

Em 2007 entrei na ESEC, Escola Superior de Educação de Coimbra, na Licenciatura em Língua Gestual Portuguesa. Quando terminei essa licenciatura em 2009, nessa fase não havia essa mudança de formador para Professor, mas de facto o objetivo dessa licenciatura era eu ser professor de língua gestual. Nós não somos formadores, nós somos professores de língua gestual. Na associação de surdos, sim o curso era para formadores, mas na ESEC em Coimbra temos o estatuto de Professores temos uma licenciatura em docência da Língua Gestual Portuguesa.

É pertinente apontar que Roberto constituiu a sua passagem de formador para docente dentro de uma conjuntura em que ainda não havia sido discutida a mudança da nomenclatura de formador para professor. Assim, antes desse debate se estabelecer formalmente, o professor em questão passou por processos formativos que já o constituíam em reconhecimento de um status de professor, por meio da licenciatura em Língua Gestual Portuguesa da Escola Superior de Educação de Coimbra, criada em 2007. Nessa licenciatura os alunos podem optar pelo ramo de interpretação ou pelo ramo da lecionação. Este último foi a escolha do professor Roberto.

Outro aspecto apontado por Roberto é a questão do uso da LGP nos processos formativos vivenciados. Ele tece considerações sobre a dinâmica da sua primeira licenciatura em Engenharia, na qual a surdez não era visualizada. Em seguida aborda sobre as experiências no curso de formador de LGP e da sua segunda licenciatura, essa em Língua Gestual Portuguesa. Deste modo, compartilha que:

Eu andei em Engenharia vários anos, não havia ninguém que conhecesse a surdez, o tema da surdez sequer, ninguém! Nada, nada! Não havia intérpretes, nem sequer se ouvia falar em intérpretes. Havia intérpretes, mas uma, duas, três escondidas, niguém ouvia falar delas. Só mais tarde, em 1999 é que começou a abrir o curso de formação de intérpretes de Língua Gestual Portuguesa e 3 anos mais tarde é que começou a surgir a profissão de intérprete. Nos tempos em que eu estava inscrito ainda não havia nada. [...] Sentia-me um pouco deprimido por causa dessa dificuldade de lidar com os ouvintes. Eu queria comunicar, ter essa interacção com as pessoas, mas não podia fazê-lo através da língua gestual e por isso é que decidi enveredar pelo curso de LGP. Quando entrei para a associação de surdos, o ambiente era completamente diferente o contacto era directo através da lingua gestual, os professores sabiam língua gestual, colegas também sabiam língua gestual a comunicação fluía directamente e eu adaptei-me automaticamente, senti alguns problemas porque eu estava nessa minha fase pessoal de conversão da oralidade para o gestualismo, de uma pessoa que só fazia oralidade e passar para o gestualismo, parece que me sentia um ouvinte, tive que aprender e me adaptar ao mundo dos surdos e a agir com eles e aprendi mais, pois tive um acesso à informação muito mais facilitado porque eu obtinha tudo através da língua gestual e para mim era o que fazia sentido, fazer evoluir e progredir. Depois na ESEC na minha turma metade eram ouvintes e a outra metade eram surdos e os ouvintes aprendiam LGP. Era muito mais fácil esta comunicação. Tudo fluía de forma natural. Eu aprendo melhor dessa forma, sem dúvida. Portanto, para mim é importante haver intérpretes de língua gestual e professores que saibam a própria língua gestual. A língua gestual é importante para mim.

Novamente Roberto faz uma distinção entre suas experiências educacionais. Relata as que envolviam unicamente a oralidade como meio de comunicação, nas quais sentia-se “um pouco deprimido” por conta da barreira comunicativa. Diferentemente, as experiências mediadas pelo uso da LGP fluíam com naturalidade.

A professora e pesquisadora surda Perlin (2013, 443), explica que “nós os surdos temos de construir nossa identidade entre encruzilhadas culturais. Estamos sujeitos a transgredir as fronteiras não somente ouvintes, mas também surdas”. A assertiva dessa autora corrobora o relato de Roberto acerca de sua fase de “conversão da oralidade para o gestualismo”. Ele também experimentou encruzilhadas culturais que forjaram a sua constituição identitária. Tais experimentações possibilitaram o contato com a LGP e a assunção da experiência visual.

Klein e Silva (2013, 151), afirmam que “os surdos vêm sendo narrados como sujeitos visuais. Essa visualidade é entendida como um marcador cultural.” Em vista disso, na condição de sujeito visual, Roberto revela que ao interagir em LGP com professores e demais colegas que dominavam a língua gestual “adaptou-se automaticamente”, ou seja, sentiu-se bem e confortável no ambiente educacional em que a LGP circulava livremente. Este percurso de uso e aprofundamento de estudo dessa língua o possibilitou compreender tudo por meio dela. Em sua perpepção sentia-se a evoluir e progredir por meio da comuniação em LGP.

Soma-se a isso, Roberto aborda a importância dos profissionais intérpretes de LGP, bem como dos professores fluentes em LGP enquanto elementos que podem proporcionar acessibilidade educacional. Compreendemos que ambos profissionais são imprescindíveis para a constituição de ambientes sociolinguísticos que considerem as especificidades das pessoas surdas, haja vista que almejamos a garantia de educação bilíngue e multicultural em que o processo de ensino e aprendizagem seja mediado em primeira instância pela língua gestual.

Em confluência com esse debate, Machado e Sá (2017, 205) afirmam que a educação bilíngue e multicultural “não envolve só considerar a necessidade e uso de duas línguas. Também significa, além de dar espaço privilegiado e prioritário à língua natural aos surdos, ter como eixo fundamental as identidades surdas e as culturas surdas.”

Perlin (2014, 192), conceitua que a “cultura surda é todo conjunto de práticas e expectativas sobre a totalidade da vida surda. E particularmente envolve o sentido da visão”. A autora assevera que há um diferenciação cultural entre surdos e ouvintes que necessita ser considerada. Desse modo, problematiza que se fazem necessários ambientes que proporcionem as mediações entre surdos, a fim de que a indentificação com seus pares possa se desenvolver por meio da partilha da experiência visual.

Acerca da importância que as lideranças surdas assumem no sentido da identificação dos surdos com seus pares, a autora surda, Perlin (2014, 195) discute que “precisamos de contato com as lideranças surdas, os heróis surdos, a organização política dos surdos e a literatura, artefatos estes que nos fornecem signos e significados sobre a nossa diferença.”

Consideramos que a aproximação do sujeito surdo com a comunidade e as lideranças surdas são vivências relevantes para a constituição da sua identidade. Desse modo, o contato com essas lideranças pode exercer influência na escolha profissional mediante a reconhecença. Em nosso caso, destacamos os processos formativos no campo da docência das línguas gestuais/ de sinais, posto que os professores militantes também podem ser considerados líderes surdos.

Percebemos que o envolvimento de Roberto com a comunidade surda e o incentivo do então presidente da associação de surdos foram agentes propulsores para a sua inserção na docência. Assim, ao ser interpelado sobre os elementos que o influenciaram em ser um professor de LGP, ele sintetiza os fatores, a saber:

O contacto linguístico com a comunidade surda, pois eu precisava comunicar com surdos porque para mim era importante desenvolver as competências linguísticas, não eram as profissionais no fundo. E depois também o curso de LGP da associação de surdos, como havia muitos surdos eu conversava no intervalo, convivia. Também teve a influência do ex presidente da associação de surdos. Influenciou-me, pressionou-me e mostrou-me que eu tinha capacidade para ensinar crianças surdas. Penso que são esses os 4 principais fatores que decidiram essa minha escolha profissional ligada ao ensino da língua gestual.

Na assertiva de Roberto compreendemos a importância da aproximação com a comunidade surda na construção identitária, mediada pela interação com seus pares surdos. Estes aspectos influenciam na sua escolha profissional como um indicativo de reconhecimento da LGP enquanto um elemento fundante em sua vida, posto que inicialmente buscou o curso de formador de Língua Gestual Portuguesa mais pela sua necessidade de interagir e aprofundar seus estudos sobre essa língua do que pelo objetivo de exercer a docência.

No entanto, Roberto anuncia que a medida em que concluia os seus processos formativos alcançava o reconhecimento de sua competência e isso abriu portas para o início da docência, bem como o impulsionou a buscar a continuidade de sua formação acadêmica. Nessa perspectiva, em seu percurso, outro aspecto marcante constitui-se em seu doutoramento em Educação:

Anteriormente eu não pensava fazer o Doutoramento. O meu objetivo foi sempre o Mestrado, para mim era suficiente, mas depois, por causa do percurso profissional exigiam-me de certo modo que eu fizesse o Doutoramento e fiquei sempre a pensar como é que vou conseguir! Fiquei aflito, para mim é muito complicado, eu sou surdo, não há nenhum que o tenha feito. Eu vou ter que fazer o dobro do esforço. [...] Ia sempre chegar até ao fim do meu percurso acadêmico! Eu prometi! Eu achava que era Mestrado, depois avancei, aconteceu e avancei. Consegui uma intérprete nas aulas, também foi bom, o apoio tutorial da orientadora, o apoio de colegas, da família que também me dava força porque sozinho era impossível. Esse ambiente que me rodeava de apoio também me deu força e incentivo e a motivação também para o tema, pois o tema também me motivou: o “signwriting”. É o sistema de escrita dos gestos. Este é o tema que de facto me apaixona, mostra a escrita da língua e também mostra como é a estrutura da língua e as particularidades da história dos surdos em cada símbolo, é importante para mim e isso também me deu motivação para prosseguir o doutoramento.

Vale destacar que seu objetivo inicial era cursar o mestrado e, devido ao seu rendimento acadêmico, acabou por avançar para o doutorado. Nesta jornada Roberto evidencia que a rede de apoio recebido dos colegas e familiares, bem como o apoio institucional da Universidade do Porto (UPORTO), por meio de intérpretes de LGP e de sua orientadora foram fundamentais neste processo.

Segundo Coelho (2010), desde meados do ano letivo de 2008/ 2009 a Universidade do Porto está a assumir um conjunto de responsabilidades institucionais pautadas em atender as especificidades dos estudantes surdos, fato este que a configura essa instituição como uma referência no panorama nacional.

Nesse prisma, Coelho (2010, p. 215) contextualiza que:

Em diversas universidades, nomeadamente de Estocolmo, Orebro, UFRGS, Unisinos, Feevale, UFSC, Savoie, e recentemente, também a Universidade do Porto, está garantido ao estudante surdo, há maior ou menor tempo, o direito à tradução/interpretação em LG da informação veiculadas nas aulas, na integra e em simultâneo com os seus pares ouvintes. O Estudante poderá, ainda exprimir a sua opinião durante as aulas, esclarecer dúvidas, participar dos debates, dialogar com o professor, visto que este serviço assegura também, a tradução de LG para a voz.

Portanto, atender as especificidades dos alunos surdos constitui-se em uma rede de garantia de direitos fundamentais para um bom ususfruto do percurso acadêmico. Roberto, por sua vez, anuncia a importância de viver este movimento de acessibilidade comunicacional em seus estudos durante o doutoramento na UPORTO.

Também merece destaque a paixão de Roberto pelo tema discutido como um fator positivo apontado por ele. Assim, todos os aspectos anteriormente delineados, associados a sua convicção de que iria até o fim de seu percurso acadêmico, compuseram o tecido de seu empenho, de maneira que logrou êxito em mais um desafio de sua trajetória de formação, conquista esta que representa uma satisfação e orgulho para a comunidade surda:

Eu sinto-me com orgulho de ter conseguido o Doutoramento [...] o meu caminho foi difícil. E essa conquista para mim também mostra às pessoas em geral que achavam que os surdos não tinham capacidades para o fazer, isso não é verdade. Os surdos se lhes derem condições de acesso à informação e se destruírem e removerem essas barreiras linguísticas e dar-lhes acesso é possível os surdos conseguirem atingir esse patamar, porque é esse o único problema. Agora claro não podemos pensar que os surdos não conseguem. Eu sou a prova viva e consegui e vão mais outros surdos conseguir o Doutoramento, tenho a certeza. É um exemplo que eu acho que é bom para a comunidade surda, que é positivo, eu sinto orgulho, sinto-me feliz!

Certamente que a conquista de Roberto torna-se representativa e impulsionadora para os surdos de Portugal e, podemos ousar, do mundo, pois não corresponde a trajetória de um grande contingente de pessoas surdas, devido as barreiras linguísticas as quais a maioria delas foram impostas em seus processos de escolarização. Barreiras estas que negam e negligenciam as especificidades da comunidade surda não apenas em âmbito português, de modo que a luta pela efetivação de educação bilíngue, multicultural e eticamente comprometida é uma demanda em vários países. Constatamos e acreditamos que em condições de usufruto de acessibilidade comunicacional a pessoa surda pode lograr todas as instâncias da vida acadêmica.

Klein e Silva (2013, 144) explicam que “o processo de formação de professores juntamente com as questões surdas envolve a educação com todas as características, marcas e lutas desses sujeitos.” Nessa via, observamos na trajetória de Roberto esse enlaçamento de marcas e lutas imbricadas em sua constituição como sujeito surdo, bem como docente.

A partir da tessitura de seu processo formativo trataremos a seguir sobre a influência desse percurso em sua prática de ensino de LGP.

A influência do processo de formação docente na prática de ensino de LGP

A prática docente encontra-se no âmbito de possíveis reverberações dos processos formativos em que os professores foram forjados. Retomamos que Roberto revela a sua trajetória marcada pela aproximação com a LGP como uma necessidade pessoal. Afirma ainda a sensação de que precisava da língua gestual e buscava-a a fim de comunicar-se. Percebemos que esse movimento vai ao encontro da ampliação da sua leitura de mundo.

Nesta perspectiva, a língua gestual era ansiada por Roberto enquanto algo que fazia falta. Assim, essa língua assume um papel relevante em sua vida e em sua constituição de identidade e subjetividade surda. É evidente que esta maior aproximação com a comunidade surda tem grande influência significativa em seu percurso de formação docente.

Nessa via, Reis (2007, 90) discute sobre o jeito que os professores surdos ensinam e como o processo pedagógico desenvolvido por estes são articulados aos seus processos identitários:

Há no processo pedagógico uma situação de fronteira, que nos leva a construir uma identidade [...]. O processo identificatório dos professores se inicia no momento em que estabelecem seus vínculos com os alunos e passam à construção de uma postura profissional. Estes professores se movimentam para assumir e construir a identidade e cultura como identificação de si mesmos.

Ambos processos, pedagógico e identitário, são provocadores na prática docente, posto que os movimentos de constuição de ser surdo e de ser professor confirguram-se como contínuos, multifacetados e interligados.

O professor Roberto afirma que relaciona a teoria aprendida durante seu processo formativo em LGP com a prática de ensino que desenvolve atualmente, posto que não realizada a sua prática docente ao acaso, busca planejar as atividades de acordo com o público alvo e traça estratégias de ensino que estejam articuladas a realidades dos seus alunos. Explica ainda que trabalha os temas de modo transversal:

[...] por exemplo vou ensinar os meses do ano, depois estações do ano e depois outro tema, as árvores, a paisagem as ervas e depois cores, depois as horas, depois no final faço o resumo, faço os temos transversais, junto todos esses temas, esse vocabulário aprendido todo anteriormente misturado e faço uma transversalidade por exemplo: estações do ano, primavera as flores começam no dia 23 de? Já usei meses do ano, as árvores, as cores das árvores, muda as cores das árvores, as cores das folhas das árvores mudam e utiliza-se vocabulário aprendido anteriormente por frases e consigo fazer essa ligação transversal do que aprenderam.

Há em suas enunciações a intenção de elaborar suas atividades docente articuladas aos interesses dos discentes, na busca de proporcionar a transversalidade dos conteúdos, bem como de promover uma aprendizagem significativa da LGP.

Vale situar que o professor expressa a importância de divulgar a LGP como um aspecto preponderante na sua prática docente e na sua vida. Nessa via, Roberto expressa que:

Eu sinto que há uma necessidade de divulgar a língua gestual. Mostrar que existem surdos! Existe a língua gestual! Existe uma comunidade linguística, uma cultura, que tem cultura! Que a língua é o próprio veículo da cultura surda! Mostrar! Divulgar, divulgar, divulgar… Isso para mim é o essencial, é o principal!

Diante disso, podemos depreender que a influência mais marcante de seu processo formativo em sua prática docente foi e é a necessidade de valorização da LGP. Esta é a centralidade de sua prática pautada na posição de que divulgar essa língua, a comunidade linguística dos surdos e sua cultura são proposições primordias. A isto agregamos o reconhecimento das especificidades que envolvem o uso e ensino de línguas gestuais, bem como o desenvolvimento de metodologias apropriadas as características visuais inerentes aos usuários de LGP.

O professor Roberto destaca a língua gestual como “próprio veículo da cultura surda”. Fato esse que configura o ensino da LGP como um viés de luta em prol da visibilidade das pessoas surdas. Perlin (2014, 189) corrobora ao afirmar que há uma “luta secular por dizer que a cultura surda existe e que ela é parte da educação dos surdos.” A autora discute ainda que a cultura surda está em movimento constante.

Outro aspecto levantado por Roberto é a produção de matérias didáticos para o ensino de LGP. Ele relatou ter desenvolvido jogos e alguns materiais com o propósito de ensino da língua gestual, mas ponderou que utiliza apenas com seus alunos sem divulgá-los para outros fins. Constata ainda que há uma escassez de materias pedagógicos voltados ao ensino dessa língua e que algumas vezes pesquisa em publicações brasileiras, disponíveis em sítios na internet, como uma forma de enriquecer suas atividades didáticas.
Sobre materiais de apoio ao ensino na educação bilíngue para surdos, Perlin (2014, 199) expõe que no contexto brasileiro professores surdos usam como mecanisco “a invenção de material didático bilíngue”. Compreendemos haver uma lacuna que implica na necessidade de maior sistematização de materiais específicos para o ensino de língua gestual/ de sinais, assim como consideramos a ampliação de usuários dessas línguas.

A fim de contribuir para essa propagação, destacamos o projeto “Spread the sign” 4 com propósito de divulgar as línguas gestuais / de sinais de vários países, projeto no qual o professor Roberto é participante e intenciona contribuir para disseminar maior visibilidade dessas línguas.

Desejamos que as línguas gestuais/ de sinais rompam cada vez mais as barreiras ouvintistas 5 que tentam invisibilizá-las, de maneira que sua propagação atinja um maior número de pessoas e, assim, os gestos/sinais sejam espalhados e alcancem o mundo.

Considerações finais

Por meio do percurso de um professor de Língua Gestual Portuguesa propomos debater as dimensões dos processos formativos e as influências desses processos na prática docente de ensino de LGP no âmbito português.

O que emerge com mais ênfase na trajetória do professor Roberto é o papel que a LGP desempenha na sua vida, pois para si a língua gestual está permeada de sentido de pertencimento à comunidade surda, reconhecimento e valorização dessa língua como propulsora de encontros e ressignificações. Os sentidos que o professor atribui à LGP transbordam a beleza da comunicação, aprendizagem e propagação das línguas gestuais / de sinais.

Tanto em seus processos formativos quanto em sua prática docente Roberto apresenta a LGP enlaçada à sua constituição identitária na busca de algo que faltava em si. Assim, esse processo identitário agrega o seu encantamento e paixão por essa língua e influencia diretamente em sua escolha profissional.

Ser professor para ele é um processo vinculado à dimensão de contribuir para que a Língua Gestual Portuguesa seja propagada, bem como para que os surdos usufruam da educação como uma prática bilíngue e multicultural, aquela que respeita suas especificidades linguísticas e se enlaça as suas experiências visuais e, assim, dá passagem aos modos gestualizantes/ sinalizantes de ser e estar no mundo.

Notas

1 Este estudo decorre de uma pesquisa concernente ao Estágio Doutoral Sanduíche realizado na Universidade do Porto, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) por meio do processo nº 88881.134545/2016-01.
2 Coelho, Klein e Santos (2016) expõem que em Portugal o Decreto-Lei nº 3 de 7 de janeiro de 2008 e a Lei nº 21 de 12 de maio de 2008 são os instrumentos que designam os docentes aptos a atuar na educação de surdos, e dentre estes profissionais os docentes de LGP.
3 Perlin (2003, p.23) considera que a identidade cultural “envolve rituais, linguagens, olhares, sinais, representações, símbolos, modelos convencionais, processos profundamente plurais e culturais”. As pessoas surdas constroem as suas identidades a partir dos contatos estabelecidos em suas vivências e essa elaboração perpassa pelo reconhecimento da experiência visual.
4 Este projeto é promovido pela Comisão Europeia e pelo European Sign Language Centre (Centro Europeu de Línguas de Sinais) e contribui para a propagação das línguas gestuais/ de sinais de diversos países.
5 O ouvintismo é compreendido por Skliar (2005,15) como um corpo de representações “a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte. Além disso, é nesse olhar-se, e nesse narrar-se que acontecem as percepções do ser deficiente, do não ser ouvinte; percepções que legitimam práticas terapêuticas habituais”.

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