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A (in)existência do Outro na Educação
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Publicado em 2004
27a Anped, Caxambu. Sociedade, Democracia e Educação: Qual Universidade?, p. 1-16
Ana Dorziat Barbosa de Mélo
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Resumo

Há vinte anos, estudo as questões relativas às pessoas surdas. A busca de entendimento sobre qual o tipo de educação ideal para essas pessoas me fez trilhar por diferentes tendências, desde perspectivas comportamentais, cognitivistas, sempre relacionadas a um modelo de homem presente em nossa sociedade, até chegar à necessidade extrema de desvendamento do objeto de estudo sob forma social e histórica. Entendi que a identidade surda precisava ser considerada, mas sem delimitar fronteiras, considerando a alteridade e as condições circundantes. Além disso, era preciso retirar os estudos sobre a surdez de um debate inócuo que girava em torno de conceitos como deficiência, reabilitação etc.

Introdução

A participação mais constante nas discussões em torno dos fenômenos educacionais, e, consequentemente, sobre as concepções de ensino presentes no âmbito da educação, me possibilitou um olhar mais atento sobre as diferenças e a necessidade extrema de ampliar a discussão sobre o tema, partindo de uma reflexão sobre alguns princípios da visão sócio-histórica de forma menos maniqueísta e absolutista, buscando uni-los às problemáticas decorrentes dos estudos sobre a alteridade. Ou seja, embora entenda que existam desencontros substantivos nas raízes dessas perspectivas, considero importante não tomá-las como camisas-de-força que impedem qualquer articulação entre os saberes e as questões colocadas na contemporaneidade.

Cada vez mais se torna clara a impossibilidade de enquadramento das discussões sobre os processos humanos em teorias, axiomas, perspectivas. A sociedade híbrida e multifacetada de hoje exige novos tipos de olhares, que busquem captar diferentes perspectivas de mundo, capazes de produzirem novos conhecimentos.

Segundo Bhaba (1998:19):

Nossa existência hoje está marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do presente, para as quais parece não haver nome próprio (...) Encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.

As respostas únicas, exatas e inexoráveis das ciências nessa(s) nova(s) realidade(s) parecem tratar de um mundo distante. Diante disso, são produzidas diferentes perspectivas, consolidando-se o que se costuma chamar de “hegemonia dos paradigmas”. Em meio a diferentes explicações e compreensões, parece não existir espaço adequado para a falta de respostas, para a indefinição, que parece teimar em marcar o nosso tempo.

Tendo em vista essas considerações, desenvolvi um estudo que buscou analisar as visões sobre a função da escola de professores(as) que atuavam no ensino público, tendo como foco a emergência (ou não) do outro - aluno(a) -, como elemento indispensável para definição de práticas pedagógicas.

Fundamentação teórica: a importância do outro na ressignificação das práticas pedagógicas

A escola, como as demais instituições que fazem parte da rede de relações sociais, tem feito o seu papel de reprodutora das significações importantes, para tornar a sociedade cada vez mais uniforme, padronizada. Ela, que sempre abandonou, anulou e rejeitou as tentativas de trazer o outro para dentro de si, reviu essa postura nas últimas reformas pedagógicas, por já não mais suportar o descontrole frente às diferenças. Embora as justificativas presentes nos discursos oficiais dos setores educacionais estejam sendo, há anos, construídas sobre as bases do respeito às diferenças, observa-se uma total dicotomia entre o que é dito e a execução dessas políticas.

A iniciativa de colocação de todas as crianças na escola é, sem dúvida, parte importante na consecução dessas políticas, porque atende ao princípio fundamental de direito de todos à educação. No entanto, esse direito nem sempre vem respaldado no conceito de educação plena, significativa, justa, participativa, mas, na maioria das vezes, em tentativas de generalização que só discute educação a partir e para uma determinada parcela da população. Fala-se muito em aceitar os outros nas suas diferenças, entretanto não se tem promovido movimentos pedagógicos em que as formas de trabalho escolar se debrucem sobre o aluno real, nem enquanto busca de identidade, nem enquanto espaço de diálogo. Pelo contrário, os currículos escolares estão permeados pela idéia de um aluno único, abstrato, mesmo quando tratam de pluralidade cultural, porque se considera que culturas de diferentes grupos sociais são regidas pela mesma lógica, pelos mesmos critérios de verdade e legitimidade e que, portanto, em última instância, partem de uma raiz comum e a ela se dirigem (Lopes, 1997).

Nesse contexto, embora os discursos contemplem demasiadamente a questão das diferenças e do respeito ao outro, as ações, tanto em termos de políticas públicas como de objetivações curriculares, não têm considerado as implicações sociais que envolvem o ato educativo e que constituem saberes distintos, não se subordinando, de forma absoluta, uns aos outros.

Em decorrência disso, se o conhecimento escolar é, por um lado, considerado isento de julgamento de valor, universal; por outro, apropria-se de conceitos construídos por forças sociais progressistas, através de decretos e normas, esvaziando-os de seu conteúdo social e “repolitizando-os” para um contexto conservador (Lopes, 1997:32). As condições de produção e reprodução desses conhecimentos e os diferentes olhares sobre eles são desconsiderados ou, quando muito, tolerados, sem uma reflexão mais profunda, sobre os interesses subjacentes ao que é transmitido nas escolas. Sob a influência da globalização, são obscurecidas as idéias de público e privado, e são simplificadas e dicotomizadas as noções de identidade e alteridade, de prática e conteúdo, de princípio e artifício.

As ações governamentais têm-se empenhado em chamar a atenção para a necessidade de considerar a cultura, os falares, as formas de organização das diferentes comunidades escolares, mas se perdem em operacionalizações homogeneizadoras, totalmente distanciadas das práticas sociais vigentes. Mesmo quando, teoricamente, concepções de ensino consideradas progressistas são tomadas como parâmetro, sua materialização, através de procedimentos, avaliações etc, parece continuar imparcial e isenta de qualquer tipo de influência.

Visto dessa forma, um conhecimento que possui uma base teórica que defende a liberdade, o respeito a si mesmo e ao outro, pode tornar-se elemento de exclusão. Na sua suposta imparcialidade, pode privilegiar determinados valores e desconsiderar a possibilidade humana de dar sentido a esse conhecimento, por meio de procedimentos que contemplem não apenas o significado, historicamente elaborado, mas a vivência em contextos próprios, a particularização de experiências.

Nessa perspectiva, é importante levar em conta que as condições objetivas de vida das pessoas engendram, de forma substancial, as suas construções subjetivas, inclusive as relacionadas ao processo ensino-aprendizagem, mas também são engendradas significativamente por elas. Assim, é possível entender a configuração histórica da educação no mundo ocidental, que se desenvolveu em um entorno de desigualdades sociais profundas. Diante dessas influências ideológicas, surge um quadro sumamente complexo, entre as condições subjetivas e objetivas, entre o significado e o sentido.

Os saberes são, portanto, situados social e culturalmente e possuem diversos contextos de atuação, sendo sua hierarquização a priori produto de influências ideológicas e de dominação. Os critérios de definição de maior ou menor validade de um saber, da maior ou menor legitimidade de uma cultura, dependem de embates sociais e de processos argumentativos, sendo, em consequência, circunstanciais e historicamente situados. Diversas lógicas e saberes são produzidos por contextos sociais também diversos, não havendo, muitas vezes, possibilidade de conciliá-los ou justapôlos sem que haja conflito, sob o risco de submeter um ao outro.

Portanto, considerar as diferenças no âmbito escolar vai além de, pura e simplesmente, utilizar procedimentos que visam reduzir preconceitos sociais frente a minorias. Agir dessa forma significa continuar a centrar os questionamentos em visões etnocêntricas ou relativistas do conhecimento.

Por outro lado, considerar as diferentes formas de representação dos envolvidos no processo é algo bem mais complexo, porque as representações não traduzem o que as pessoas são ou estão sendo, de forma real, verdadeira, considerando os conflitos vividos pela necessidade de acomodação ao que é estabelecido pelos padrões sociais e pelas disparidades entre o que se é com o que se gostaria de ser. Além disso, as representações não são estáticas, ou seja, não expressam identidades de forma definitiva, fixa, imutável (Hall, 1997).

As representações, por vezes, se chocam e competem. Por vezes, elas se interpenetram de maneira dialógica e produzem novas representações. Outras vezes ainda, certas representações dominam e oprimem outras, expressando as lutas sociais que são típicas de tecidos sociais fraturados. É na relação triádica entre sujeito-objeto-sujeito que se constroem as representações. A construção de cada sujeito sobre um objeto depende do lugar que este sujeito ocupa no tempo e no espaço e da articulação com as construções de outros sujeitos que também ocupam posições particulares no tempo e no espaço. A significação, portanto, é um ato que tem lugar numa rede intersubjetiva, entendida como uma estrutura de relações sociais e institucionais, dentro de um processo histórico (Jovchelovitch, 1998).

Para Skliar (2003:29) “sem o outro não seríamos nada (...) porque a mesmidade não seria mais do que um egoísmo apenas travestido (...), só ficaria a vacuidade e a opacidade de nós mesmos (...)”.

A assimilação dos significados provindos de práticas sociais alheias, que são transmitidos como únicos e imutáveis, geralmente refletindo um modo de vida determinado, sem que sejam reelaborados e ressignificados, tem levado a um processo que se nega a contemplar as possibilidades de alteridade, no qual está contida a construção e a preservação de identidade(s). É preciso estabelecer-se a perspectiva de intercâmbio entre múltiplas representações, entre o eu e o outro.

Desse modo, é possível inferir que os processos de construção de sentido, embora se estabeleçam na realidade do sujeito, não se esgotam nela. Eles dependem da sua relação com a objetividade do mundo e da relação com os outros, considerando a alteridade. A partir da existência de perspectivas múltiplas, de diferentes pontos de vista colocados por outros, é possível abstrair o significado dado a um objeto por um sujeito, ou por vários sujeitos, e pelo próprio objeto ou a sua ressignificação. Isso é o que caracteriza o ato de representar como construção sempre ligada a identidades, interesses e lugares sociais.

É importante considerar essa nova forma de elaboração do saber, que pressupõe a capacidade de ver, de reconhecer, acessar, avaliar e mesmo de rejeitar o outro. É desse modo que o sujeito reconhece quem é. Portanto, identidade e alteridade fazem parte de um todo, do qual emerge a vida social, e os sujeitos sociais constroem o que sabem sobre si mesmos, sobre outros, e sobre seu modo de vida.

Falar sobre alteridade e identidade pressupõe discorrer sobre as ambiguidades entre o ser, evocado muitas vezes pela identidade, e o não ser, geralmente lembrado para enunciar o outro. Segundo Skliar (2003), a única alternativa possível para que a alteridade não fique aprisionada entre a condição e o estado do ser ou não ser parece ser a de uma temporalidade denominada como estar sendo.

Um estar sendo como processo e não como um estado identitário essencializado significa que as identidades não podem ser temporalmente alcançadas, capturadas e domesticadas, enquanto produzem um movimento de perturbação em cada unidade, em cada momento, em cada fragmento do presente (Skliar, 2003:47).

Sendo assim, nenhum ensino que se diz isento de influências, que veicula um saber já dado sobre o outro, pode entender o estar sendo. Giroux (1986) destaca em seus trabalhos o debate sobre a necessidade de resistência frente aos valores dominantes no âmbito escolar e sobre a possibilidade aí existente de formulação e vivência de novos valores.

Ao continuar negando a existência de diferentes formas de elaboração, transmissão, assimilação de saberes, e de diferentes saberes, a escola está contribuindo para consolidar sociedades cada vez mais reguladoras. O papel da escola poderia ser realizar uma síntese entre saberes gerais, teorias científicas e saberes locais, interrelacionados, em que cultura culta não seja confundida com cultura dominante e que a lógica crescente da pedagogização, dos esquemas classificatórios, seja questionada (Varela, 1994), porque elas vêm eivadas da idéia de desenvolvimento único e universal.

Esse questionamento deve se estender também a posturas extremas que colocam de um lado as pedagogias tradicionais, o seu desprezo pela cultura não acadêmica, a sua rejeição à diversidade, e, de outro, as pedagogias renovadoras, com uma cultura escolar excessivamente vinculada ao criativo, ao concreto e ao prático. A síntese pretendida subentende a necessidade de contextualização, do estabelecimento de conexões entre o particular e o geral, entre o individual e o coletivo.

O particular diz respeito aos diferentes modos de apreensão e de expressão de mundo, surgidos de necessidades específicas em diferentes práticas sociais, que se caracterizam não só pela sua forma organizativa, mas também pelos modos de racionalização. O seu conhecimento pode indicar procedimentos adequados que contribuam para uma estruturação curricular culturalmente referenciada.

O geral procura entender a diferença em relação com outros determinantes, em vez de diferença como algo livre-flutuante e deslocado. O refazer social e a reinvenção do eu são processos que se formam e se informam mutuamente, não estando apenas marginalmente conectados.

A prática escolar tem sido, em geral, desenvolvida a partir da idéia de um aluno hipotético. Generalizações tendem a ser corriqueiras, prejudicando uma visão mais realista, em que cada grupo apresenta determinadas características internas de raça, de classe, de gênero, de religião etc., produto de seu trajeto histórico-econômico-social, que pode vir a provocar conflitos, inseguranças, divergências e a influir no seu processo identificatório como um todo.

A isenção, presente nas formas de trabalhar o conhecimento pela escola, tem contribuído para a produção de estereótipos e tem levado a uma variedade de insatisfeitos em busca de se adaptarem, em contradição, muitas vezes, com suas peculiaridades.

Posturas desse tipo podem levar a uma distorção nos procedimentos educacionais, além de servir, muitas vezes, como argumento para algumas posições que defendem a idéia de currículo único para qualquer aluno, de qualquer localidade.

Na medida em que a diferença é lembrada, o processo ensino-aprendizagem pode ser tomado de forma menos distorcida, porque pode ter como ponto de partida as peculiaridades linguísticas, culturais e sociais de cada população. Dessa forma, o conhecimento adquirirá sentido e poderá contribuir para o desenvolvimento do aluno em níveis sócio-afetivo-cognitivo.

Santos (2003) chama a atenção para a necessidade de rejeição a atitudes de tolerância das diferenças nas escolas, como se ela fosse resolver toda a problemática do ensino. O entendimento de que podem existir lógicas e interesses diferentes sendo processados pode levar a práticas escolares que tomem os conhecimentos de maneira menos descartável. Para isso, é necessário preencher os vazios ideológicos, epistemológicos e curriculares nas escolas, refletindo-se nos próprios alunos, em alunos possuidores de múltiplas identidades.

O discurso da tolerância corre o risco de se transformar num pensamento da desmemória, da conciliação com o passado, num pensamento frágil, light, leviano, que não convoca à interrogação e que pretende livrar-se de todo o mal-estar. Um pensamento que não deixa marcas, desapaixonado, descomprometido. Um pensamento desprovido de toda negatividade, que subestima a confrontação por ser ineficaz (Skliar e Duschatzky, 2001:136).

Metodologia: o caminho percorrido pela pesquisa

O estudo foi realizado nas dependências de uma universidade pública, que mantinha convênio com Secretarias de Educação de Estado e Municípios, com a finalidade de formar em nível superior seus professores que se encontravam lecionando nas séries iniciais do ensino fundamental. Tendo como universo de pesquisa o Curso de Pedagogia, foi realizado um levantamento dos(as) alunos(as) que se encontravam nos últimos períodos, e que atuavam como professores(as) da rede pública de ensino nas séries iniciais do Ensino Fundamental, oriundos desses convênios, mantidos pela universidade.

Para obtenção dos dados, foram elaboradas questões que permitissem saber quem eram as pessoas entrevistadas, por entender que suas falas são constituídas socialmente, na inteireza das relações travadas, e de forma ampla (Qual a função da escola? e Quais as dificuldades enfrentadas pela escola?), que permitissem analisar se a preocupação dos(as) professores(as) sobre os processos pedagógicos considerava as diferenças existentes na escola, ou seja, se consideravam em suas respostas as diferentes forma de ver o mundo, estruturar o pensamento, enfim, ressignificar o conhecimento dos envolvidos no processo ensino aprendizagem: os alunos e as alunas.

As entrevistas, registradas em áudio, foram aplicadas com nove professoras. Embora haja críticas a esse instrumento, como as realizadas por Queiroz (1992), que afirma que a entrevista mostra apenas um aspecto parcial da realidade, pode sofrer influências do subjetivismo ou objetivismo do informante e representa uma posição dominante do pesquisador, considerei essa a forma mais apropriada para esse tipo de pesquisa.

De posse de todos os dados, trilhei os seguintes passos:

  1. A ordenação dos dados recolhidos das entrevistas. Foi feita a transcrição das entrevistas na íntegra, de cada entrevistado. Em seguida, foi feito o agrupamento das questões, por acreditar que este aparente “retalhamento” dos relatos, como coloca Demartini (1992), ao invés de mutilar e descaracterizar os depoimentos permite, ao contrário, manter presentes todos os elementos obtidos de cada informante;
  2. A classificação dos dados foi feita a partir do entrelaçamento das questões. Isso foi possível a partir da leitura dos depoimentos, isto é, de uma “leitura flutuante”, no dizer de Minayo (1993:235), que permitiu apreender as idéias centrais dos relatos;
  3. A análise de dados serviu de condução do processo de conhecimento. A análise sobre as representações dos entrevistados, especificamente, foi realizada, levando em conta, basicamente, os estudos desenvolvidos sobre Currículo e Alteridade.

Resultados e discussão

1. O outro da pesquisa: a marca de gênero

Quando se fala em transformação do sistema de ensino, surge de maneira muito contundente o debate em torno do professor, de sua atuação, como critério indispensável para a melhoria do ensino. Segundo Sacristán (1991), existe uma hiperresponsabilização sobre os professores em relação à prática pedagógica e à qualidade do ensino, refletindo um sistema escolar centralizador, em que a figura do professor exerce a função de condutor visível de todos os processos institucionalizados de educação.

Essa é uma visão apenas aparente, se forem consideradas todas as situações nas quais se dá a prática pedagógica e os condicionantes alheios à ação imediata do professor. Como uma prática social, o ensino além de se concretizar na interação entre professores e alunos, refletindo a cultura e os contextos sociais a que pertencem, ele está situado num momento sócio-histórico, em que as condições macro e micro sociais sofrem influências mútuas. Por isso, urge buscar entender melhor cada ator como participante de uma determinada cultura, tendo uma determinada origem social, fazendo parte de determinado gênero, situado, enfim, em um momento histórico. Nesse sentido, para Weber (1996), o exercício docente não é o produto de um conjunto de conhecimentos e técnicas aprendidas na formação profissional, mas o produto reestruturado de influências presentes e passadas de múltiplos agentes, mediadas pelas características mais gerais do contexto social em que ocorrem.

Ao tratar sobre o professorado enquanto categoria, Enguita (1991) o considera uma categoria heterogênea, que apresenta notáveis diferenças internas, em termos de salários, condições de trabalho, prestígio, oportunidades de promoção e de outros bens e vantagens sociais desejáveis, presentes em todo processo educacional. Usando esse mesmo raciocínio para entender o status social do professorado, Sacristán (1991) faz menção a alguns fatores que determinam o prestígio relativo da profissão docente: a origem social e o tamanho do grupo, a proporção de mulheres no grupo, a qualificação acadêmica, o status quo do cliente e a relação com ele.

Nos dados coletados neste estudo surgiram fortemente as questões relacionadas ao gênero, uma vez que todos os entrevistados eram professoras, fazendo parte de um grupo socialmente discriminado. O aumento proporcional da presença de mulheres no professorado tem sido constante ao longo do tempo, fato que conduz a uma análise diferenciada da categoria docente. Enguita (1991) aponta como os principais motivos dessa procura feminina pelo magistério o fato de o ensino ser uma das atividades extradomésticas que a ideologia patriarcal imperante aceitou sempre entre as adequadas para as mulheres, como uma ocupação passageira para as jovens e como uma preparação para o exercício da maternidade. Como tal, foi caracterizado como trabalho transitório ou anômalo, instituindo-se o baixo salário no ensino, já que ele era considerado uma segunda fonte de renda doméstica. Esse processo de feminização pode apresentar consequências importantes para o ensino, na medida em que contribui para desenvolver uma crítica feminista e atitudes não sexistas nas instituições.

Outro fator observado foi que as professoras entrevistadas conviviam, de certa forma, com o mesmo status de sua origem, ou seja, a ocupação dos pais se aproximava muito da dos cônjuges (tabelas 1 e 2). O mesmo se dava com o nível de escolaridade (tabela 3).

Escala de prestígio Pai Mãe Cônjuge

1. Altos cargos políticos e administrativos.
Proprietários de grandes empresas e similares.

- - -
2. Profissionais liberais, cargos de gerência ou direção.
Proprietários de empresas de tamanho médio
- - -
3. Posições mais baixas de supervisão ou inspeção de ocupação não manual.
Proprietários de pequenas empresas comerciais, industriais, agropecuárias
2 1 3
4. Ocupações não manuais de rotina e similares. 1 1 -
5. Supervisão de trabalho manual e ocupações similares. - - 2
6. Ocupações manuais especializadas e assemelhadas. 2 - -
7. Ocupações não manuais não especializadas. 1 4 3
8. Pessoas fora do PEA (População Economicamente Ativa)
Desempregado
3 3 -
Total 9 9 8

Tabela 1 - Ocupação dos pais e do cônjuge 1

  Pai Mãe Cônjuge
Estrato Alto - - -
Estrato Médio 3 2 3
Estrato Baixo 3 4 5

Tabela 2 - Nível sócio-econômico dos pais e do cônjuge

Nível de Escolaridade Pai Mãe Cônjuge
Analfabeto 1 - -
Ensino Fundamental I 6 7 2
Ensino Fundamental II 1 1 3
Ensino Médio 1 1 2
Ensino Superior - - 1
Total 9 9 8

Tabela 3 - Escolaridade dos pais e do cônjuge

Quanto à formação acadêmica das entrevistadas, a grande maioria conhecia bem a realidade da escola pública, já que tinham passado boa parte de sua vida de escolares na escola pública, e atuavam há anos como professoras dessas escolas. Além disso, oito participantes tinham cursado o Magistério, e, apenas uma, havia feito o curso médio de contabilidade.

À própria natureza específica do trabalho docente une-se como contribuição para o teor profissionalizante das professoras entrevistadas, principalmente, a busca de igualdade de nível de formação delas e das profissões liberais, o que Enguita (1991) chama de “Competência”. De acordo com ele, essa particularidade é limitada no professor das séries iniciais do ensino fundamental, pelo fato de, em geral, ele não possuir nível superior ou licenciatura e ser detentor de um saber sobre o qual qualquer pessoa se considera capaz de opinar. Parecia haver no grupo entrevistado a diferença de busca por um aperfeiçoamento em nível superior, seja por uma exigência legal, seja por uma vontade pessoal de qualificação.

Quanto à particularidade de sua formação universitária no Curso de Pedagogia e a tendo em vista a meta desse estudo em avaliar o tipo de preocupação (ou não) com as diferenças na prática pedagógica, pude constatar, observando a estrutura curricular do Curso, que as entrevistadas tiveram oportunidade de travar discussões sobre Alteridade em disciplinas específicas como Educação Popular, Fundamentos da Educação Especial e Fundamentos da Educação de Jovens e Adultos, entre outras.

2. Depoimentos das rofessoras: onde está o outro na escola?

Os depoimentos das professoras, alunas pré-concluintes ou concluintes do Curso de Pedagogia, apresentaram um discurso que está em evidência, ou seja, enfocaram a necessidade de repensar a escola de forma que a visão simplista de ensinar a mecânica de ler e escrever pudesse ser superada; a idéia de que a escola deve ir além de seus muros e agir de forma significativa na comunidade; a visão de que a escola é um complemento da educação familiar; e de que a escola deve servir para a formação da cidadania.

Elas se colocaram da seguinte forma:

“Tem uma função muito importante, não só ler e escrever”.

“Ela tem a função de educar e orientar as pessoas, toda comunidade, não só o estudante”.

“Olha, a função da escola que se discute tanto é de formação, de transmitir não só o conhecimento científico, mas de dar uma formação, conscientizar os alunos”.

“A função é ajudar na educação das crianças, ajudar os pais criar, educar, (...) eles na sociedade, o ambiente que eles vivem”.

“A escola tem a obrigação de educar em todos os sentidos, porque a criança, muitas vezes, ela chega na escola e não tem nem aquela educação doméstica e a gente tem que orientar”.

“A escola deveria ser uma escola capaz de formar pessoas críticas, que saibam lutar nessa sociedade que a gente tá, (...) a questão da cidadania mesmo”.

“(...) ela tem a função de formar cidadãos críticos, conscientes de suas atividades futuras”.

“Educar, ensinar a ler e a escrever. Educar no sentido de ser um bom cidadão futuramente”.

“A função da escola é levar às crianças, futuramente adultos, a saber como resolver as situações problema que a vida enfrenta, essa é uma das funções da escola além de formar cidadãos críticos e reflexivos”.

As colocações mostraram tentativas de superação de abordagens que apresentavam a escola como preocupada apenas com um conhecimento ou conteúdo escolar estagnado e cristalizado, como veiculado por visões de educação consideradas conservadoras. Parece presente em todas as falas a necessidade de fugir de reflexões que girassem em torno do conhecimento pelo conhecimento, mas que buscassem possibilidades de conscientização, através da cidadania.

Essa é uma das questões mais veiculadas, atualmente, como sendo de responsabilidade da escola: a questão da formação para a cidadania. Embora se saiba que a cidadania evocada pelo discurso oficial, presente nos documentos relativos às políticas públicas, limita-se, muitas vezes, a permanência das situações sócioeconômicas presentes na nossa sociedade, elas, por outro lado, podem dar margem ao desenvolvimento da reflexão, da criatividade em relação às questões cotidianas.

Para ampliar essa discussão, é preciso alertar para a possibilidade de que a escola, ainda que inserida nessa sociedade, que em função do modelo econômico é extremamente excludente, pode ser, ao mesmo tempo, um meio de solução para os maiores problemas sociais, ao fazer um trabalho de conscientização dos alunos, devolvendo-os à sociedade enquanto cidadãos, no sentido completo da palavra, capazes não apenas de lutar pelos seus direitos, mas de questionar as condições e a lógica vigentes. A escola teria a função de contribuir para que os indivíduos fugissem da sua situação de estagnação social, para buscarem alternativas de inclusão.

Isso não significa uma defesa ingênua da escola, como coloca Carrara (1996), como mecanismo isoladamente suficiente para a transformação social. É preciso estar atento às questões mais amplas ligadas às condições econômicas, políticas e ideológicas. Assim como coloca Carrara (1996), acredito que a escola poderá apenas instrumentalizar a construção da cidadania na medida em que privilegie um processo educacional contextualizado sócio-politicamente e formalize a participação enquanto estratégia de trabalho.

A cidadania, como outras questões importantes do cotidiano, não pode, no entanto, estar desvinculada da questão, objeto dessa pesquisa, fundamental para a verdadeira conscientização de que fala as entrevistadas, ou seja, de como a escola tem cumprido seu papel de ressignificação do conhecimento.

Em nenhum dos depoimentos o conhecimento foi lembrado como a base das atividades pedagógicas da escola, vinculado ao modo de ser e de estar no mundo das pessoas que elaboram e reconstroem esse conhecimento. Pelo contrário, as falas apontaram para uma visão de escola como detentora das respostas possíveis de transformar os(as) alunos(as) em pessoas críticas, conscientes e cidadãs. A elas parecia caber uma posição apenas diretiva, muito presente nos depoimentos das professoras (“orientar as pessoas”; “dar uma formação, conscientizar os alunos”; “ajudar os pais criar, educar”; “formar pessoas críticas”; “levar às crianças (...) a saber como resolver as situações problema”).

Ao se reportarem às dificuldades enfrentadas pela escola onde trabalhavam, a maioria das entrevistadas disseram que a escola apresentava dificuldades, quer seja com relação à estrutura física, à falta de material ou ao quadro de profissionais técnicopedagógicos, como mostram os depoimentos abaixo:

“Falta de material para trabalhar, material didático, gramática. Distribuíram dicionários e esqueceram da gramática”.

“A maior dificuldade é a falta de material”.

“Eu acho mais a estrutura física”.

“Estrutura física do município por ser realizada em duas casas residenciais”.

“Na escola do estado uma estrutura física, falta de material, (...) e falta de pessoal como os técnicos como psicóloga, orientadora”.

“A escola do Estado não tem um corpo docente completo, ela tem somente um diretor, (...) temos uma merendeira pra tudo. E, em termos de estrutura física, ela é pequena, uma escola que fica numa favela, ela é muito pequenininha, ela só tem duas salas de aula”.

“(...) ela precisa de mais espaço de melhores materiais para que possam ser atendidas essas necessidades”.

“(...) lá a gente não tem assim essas dificuldades, porque é bem organizada”.

“Na escola do Estado, assim... ela é uma escola muito bem equipada, recém reformada”.

As participantes apresentaram categorias que se fazem indispensáveis ao bom andamento das atividades pedagógicas: o espaço adequado, enquanto necessário para criar um ambiente propício e facilitador ao desenvolvimento das atividades; os materiais didáticos que a escola deveria dispor para a produção e planejamento dos trabalhos; e o quadro de profissionais técnico–pedagógicos disponíveis na escola de maneira que servisse de apoio à elaboração e execução de ações a serem desenvolvidas. Essas questões passam pelo campo da profissionalização que, de acordo com Libâneo (2001), refere-se às condições ideais que venham a proporcionar um exercício profissional de qualidade. A existência ou não dessa profissionalização vai influenciar, se não determinar, de maneira contundente o trabalho docente. O discurso oficial referente a qualidade da educação tem desconsiderado esses pressupostos, centrando, muitas vezes, as dificuldades existentes na escola à uma formação docente inadequada.

Essa visão precisa, a meu ver, ser ampliada, porque o investimento na formação por si só pode ser inócuo, na medida que não forem considerados outros determinantes. Um deles, esquecido mais uma vez pelas professoras, é tratar da dificuldade enfrentada pela escola em procurar formas de desenvolver suas atividades pedagógicas de maneira mais próxima das representações, vivências e aspirações de sua população alvo.

Considerações finais

Um meio de superação do quadro em que se encontram as iniciativas educativas, pode ser a materialização de práticas que vejam os alunos e os deixem ser o que são, mas que também possam decidir ser outras coisas, diferentes do que já se é. Além disso, a escola precisa estar aberta para proporcionar aos seus alunos o assumir de diferentes papéis que as condições sociais exigem, de acordo com a atribuição conferida ao contexto ou ao próprio indivíduo. As formas de trabalho pedagógico que têm sido desenvolvidas na escola podem acarretar prejuízos incomensuráveis para o enfrentamento dos problemas cotidianos e para uma maior flexibilidade em relação à vida.

A falta de reflexão sobre a importância de uma maior atenção sobre os próprios alunos, suas potencialidades na diferença demonstra, na verdade, o quão equivocado está o ensino, porque toma as questões educacionais de modo simplista, e não enquanto imbricamente ligadas às especificidades de sua população-alvo.

Diante do exposto, é preciso assumir os múltiplos olhares presentes no ato pedagógico, não só para cumprir as exigências teóricas e legais, mas para proporcionar meios de os alunos se tornarem sujeitos do próprio processo, sendo percebidos, e se percebendo, possuidores de histórias de vida que os constituíram e são fontes de conhecimentos inesgotáveis.

Notas

1 Para classificar as ocupações foi utilizada a escala de sete posições de prestígio, desenvolvida por B. Hutchinson e adaptada por Joly Gouveia (1969, apud Basso, 1994:43).
Posições:
1 e 2: Estrato Alto;
3 e 4: Estrato Médio;
5, 6 e 7: Estrato Baixo.

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