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A Inclusão de Surdos na Perspectiva dos Estudos Culturais
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Publicado em 2007
Educação Especial / n. 15
Ana Dorziat Barbosa de Mélo
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Resumo

A escola pública é um direito de todos. Esta é uma premissa inquestionável, não apenas porque é garantida em lei, mas, sobretudo, porque está respaldada no conceito de uma educação democrática, justa, participativa e de superação de movimentos que contribuem para uma exclusão social cada vez mais acentuada. Diante disso, as iniciativas públicas, respaldadas na legislação vigente, têm intensificado a prática de inserção de todos os alunos nas escolas, passo fundamental para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. No entanto, a esse objetivo quantificável, medido por meio do número de alunos ingressantes no sistema, se unem outros de natureza qualitativa, que determinam também a permanência desses alunos nas escolas. Um deles, de suma importância, é o desenvolvimento de práticas curriculares, que atendam as demandas e necessidades dos envolvidos. Sem uma atenção especial a isso, estaremos instituindo um mecanismo de exclusão subliminar. Uma exclusão mais perversa, porque ocorre por dentro do sistema, sem ser vista. Portanto, é importante unirmos ao terreno teórico-legal uma nova visão sobre currículo, em que as formas de elaboração e subjetivação dos que estão envolvidos na prática cotidiana seja considerada, criado espaços adequados a que os alunos realizem suas próprias elaborações, compartilhem suas dúvidas, suas descobertas, exerçam, enfim, a capacidade de serem agentes da sua formação. Essa perspectiva, denominada por alguns autores de Estudos Culturais, é cada vez mais estudada e aceita nos estudos sobre Currículo. Assim, tratar sobre inclusão significa ir além do ingresso de alunos diferentes na escola; significa estar atento para promover movimentos pedagógico-curriculares na escola que envolvam todos os alunos, não como uma massa homogênea, mas como possuidores de histórias próprias, percepções particulares, enfim com peculiaridades que os fazem únicos. E, dentre as muitas peculiaridades existentes, está a das pessoas surdas, que desenvolveram ao longo de suas vidas estratégias visuais-gestuais de apreensão e de expressão de mundo, constituindo o que se passou a denominar de cultura surda. Por isso, nos perguntamos: Como vem se dando o processo inclusivo, na visão dos alunos surdos? Como os surdos expressam aspectos do cotidiano escolar? Há indícios de que as práticas pedagógico-curriculares venham assimilando os princípios de um ensino culturalmente engajado? Diante dessas questões, desenvolvemos um estudo em escolas da rede pública regular de ensino da cidade de João Pessoa-PB, com o objetivo de investigar o processo de inclusão de alunos surdos. Entre os objetivos elencados nesse estudo, realizamos o recorte do seguinte objetivo, para ser desenvolvido neste texto: analisar sob a ótica dos Estudos Culturais as concepções subjacentes à inclusão, tendo em vista a opinião de alunos surdos que estavam inseridos em salas de aula regulares.

Reflexões Iniciais

Por um período considerável, o objetivo maior da Educação Especial foi a integração dos ditos deficientes na sociedade. O termo integração era usado, basicamente, para representar o processo educacional dos alunos especiais em escolas comuns, juntos com os “normais”. Para atingir esse objetivo, o trabalho realizado nas instituições especiais era voltado ao processo de reabilitação, visando a suprir as lacunas cognitivas, comportamentais, lingüísticas e sociais dos alunos. A partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que fomentou o debate sobre os direitos individuais e abriu espaço para novas discussões, inclusive sobre o direito à educação, são semeadas as primeiras idéias sobre a inclusão. A partir dai, são produzidos vários documentos e ações que contribuíram para ampliar esse debate em níveis internacional e nacional.

No âmbito mundial, o movimento em prol dessa política foi deliberado em conferências, dentre elas a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, Tailândia, no ano de 1990. Essa Conferência, que destacou a necessidade de se adotar medidas enérgicas para prover educação para todos, sem distinção de qualquer espécie, contou com a participação de 155 países de todo o mundo, além de agências internacionais e organismos não-governamentais (SHIROMA, MORAES & EVANGELISTA, 2000).

Sob a influência das idéias contidas na Conferência de Mundial de Educação para Todos, acontece o encontro realizado em Salamanca/Espanha, de 07 a 10 de junho de 1994, com a presença de mais de 392 representações governamentais e mais de 25 organizações internacionais, que redundou na Declaração de Salamanca. Essa Declaração ratifica a importância da inclusão dos chamados portadores de necessidades educacionais especiais nas escolas regulares e detalha propostas sobre a necessidade de uma preparação das escolas regulares no que concerne a espaço físico, corpo docente, material didático etc. Nesse documento, a análise do tema é, na maior parte do tempo, abrangente, incluindo todos os alunos de escolas especiais e também os excluídos sociais como os meninos de rua, os indígenas etc.

Em termos nacionais, as políticas públicas posicionaram-se favoráveis à inclusão, envidando esforços para possibilitar o ingresso de todos à escola regular e instituindo critérios para que isso acontecesse como reza a própria LDB (Lei 9394/1996), em seu capítulo V, artigo 58, que prevê serviço de apoio especializado e professores especializados ou capacitados para atender aos portadores de necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino. No terreno prático, já se constatam as iniciativas no sentido de atender a um dos critérios fundamentais para haver o desenvolvimento pedagógico adequado das pessoas surdas: a língua de sinais. Como meio de sanar o enorme problema comunicativo surgido no ambiente escolar, onde se encontram alunos ouvintes e surdos e professores ouvintes, o intérprete de LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) tem sido valorizado. Sobre isso, afirma Fernandes (2003) que garantir a presença do intérprete em sala de aula é um passo importante, mas insuficiente para suprir a passagem do conteúdo escolar para surdos, mesmo que estes dominem a língua de sinais. Para ela, todos os procedimentos que envolvem o planejamento e as estratégias de ensino e de aprendizagem precisam ser levados em conta, tendo em vista um ensino de qualidade.

Nessa perspectiva, podemos considerar que a inclusão é uma temática complexa, porque envolve mais do que o ingresso e a garantia de critérios para o ensino dos diferentes, em especial a de surdos, foco de nosso estudo. É necessário desenvolver o debate em dois níveis: o geral, que inclui a discussão sobre a escola pública brasileira, como o fazem Souza e Góes (1999), sobretudo sobre as visões de currículo, praticadas no seu interior aos que já estavam supostamente incluídos; e o específico, relativo ao entendimento do que significa, para o processo pedagógico como um todo, possuir particularidades diferentes, como as das pessoas surdas, que desenvolvem formas de organização em torno das capacidades visuais-gestuais, o que constitui o que é chamado de cultura surda.

Portanto, para que aconteça a inclusão dos indivíduos, é importante que as discussões específicas e pontuais sejam incluídas também numa discussão sistêmica, que envolve as reformas curriculares que vêm sendo implementadas na contemporaneidade. Moreira, Pacheco & Garcia (2004) afirmam que a temática do currículo está, mais do que nunca, presente em toda parte. Essa presença se articula em torno de dois eixos principais: o das políticas educacionais e o das discussões teóricas. No plano das políticas públicas, tem sido visível o impacto das reformas curriculares que se tem realizado nos últimos quinze anos, no contexto das reformas neoliberais. Por isso, Pacheco (2003) chama a atenção para o fato de que considerar a política curricular como um espaço público de tomada de decisão significa, então, aceitar que as escolas não devem ficar circunscritas a administrações centralizadoras, pois os professores, alunos e pais, entre outros que atuam no contexto curricular, devem ser vistos como decisores políticos, embora nem sempre reconhecidos.

No segundo eixo, a teoria curricular tem sido abalada por uma série de perspectivas que colocam em questão as visões mais tradicionais da teoria curricular, ocasionando o surgimento de uma diversidade de perspectivas no campo. O fundamental, nessa discussão, foi reconhecer que, para tentar tornar a sociedade mais humana, a escola deve buscar desbloquear os mecanismos de exclusão existentes.

Essa tem sido uma visão cada vez mais considerada no campo dos estudos sobre o Currículo, quando, já na década de 60, Paulo Freire falava sobre a importância do diálogo. Para ele, é por meio da ação dialógica que o indivíduo recupera o direito de se pronunciar perante o mundo; criando e recriando novos contextos, sai da cultura do silêncio e descobre que o seu ser, mais do que tem história, produz história. Esta perspectiva respeita as diferenças e tem a percepção de que ninguém se educa sozinho, logo a libertação ocorre por meio de uma ação cultural coletiva. Quanto a isso, surge o aspecto da alteridade, que vê o outro como formador do eu, em um processo de trocas e assimilações, representando, muitas vezes, uma ruptura de si mesmo em muitos aspectos e valores. Nesse sentido, o diálogo só existe quando aceitamos que o outro é diferente e pode nos dizer algo que não conhecemos.

As justificativas presentes nos discursos oficiais dos setores educacionais estão sendo, há anos, construídas sobre as bases do respeito às diferenças, mas observa-se uma total dicotomia entre o que é dito e a execução dessas políticas. Na prática, temos presenciado uma escola que tem reproduzido significações de forma cristalizada, e tentado tornar, com isso, a sociedade cada vez mais uniforme, padronizada. Ela tem se esmerado no abandono, anulação e rejeição às diferenças, embora tenha buscado rever, ao menos aparentemente, essa postura nas últimas reformas pedagógicas, por já não mais suportar o descontrole frente às diferenças (SKLIAR, 2003).

Em meio a esse tão diversificado contexto contemporâneo, contraditório e incerto, surge a perspectiva dos Estudos Culturais, que redefiniram, sob a inspiração, sobretudo de Michel Foucault, o significado de cultura, de conhecimento e de currículo. Essa tendência representa um espaço em que o tema da surdez pode ser discutido, como uma questão epistemológica (SILVA, 1997), e os conceitos de identidade e diferença amplamente problematizados, respaldado em autores como Silva (2004), Hall (1997), Woodward (2004), entre outros. A discussão sobre diferença e identidade, na opinião de Silva (2004), não pode ser reduzida a uma questão de respeito e tolerância para com a diversidade. A diferença e a identidade não estão simplesmente aí como dados da natureza. Elas são cultural e socialmente produzidas e, como tal, devem ser questionadas e problematizadas. Segundo Costa (2002), os Estudos Culturais são resultantes, portanto, de uma movimentação teórica e política que se articulou contra as concepções elitistas e hierárquicas de cultura, firmando-se como algo de domínio político, no qual os grupos subordinados tentam resistir à imposição de significados que sustentam os interesses dos grupos dominantes.

Dessa forma, entendemos que a discussão curricular no âmbito da educação de surdos pode se dar de forma mais apropriada, pois passa a encarar o surdo enquanto autor e ator de uma cultura minoritária, enquanto usuário de uma língua natural, enquanto grupo que demanda uma educação bilíngüe e multicultural, enquanto pessoa diferente e de identidades legítimas (SÁ, 2002).

É fundamental, portanto, indagarmos sobre qual lugar ocupa o outro na educação, nas políticas públicas implementadas que, conforme vimos, estão condicionadas a um certo olhar “quase obrigatório” sobre a alteridade e têm utilizado diversos imaginários para enunciá-la. Assim, reafirmamos a necessidade de que sejam fomentadas reflexões sobre as diversas faces da inclusão e, nessa perspectiva, que seja particularizado cada grupo de pessoas diferentes para um melhor entendimento sobre quem são e o que pensam esses outros; enfim, sobre as representações da alteridade na educação.

A Pesquisa

1. O Caminho Percorrido

O estudo se realizou em três escolas da rede pública regular de ensino, sendo duas do Ensino Fundamental e uma do Ensino Médio, localizadas na cidade de João Pessoa – PB, que tinham alunos surdos incluídos. Constituíram-se participantes do estudo 12 (doze) alunos surdos. Para identificação destes participantes, optamos por identificá-los através de nomes fictícios, com a letra inicial da palavra Surdo. A opção por nomes fictícios, em detrimento do uso de códigos (letras e/ou números), deve-se ao fato de acreditarmos que essa forma de identificação possibilita um melhor tratamento aos sujeitos envolvidos no estudo.

Os dados deste estudo foram obtidos a partir de entrevistas, com um roteiro previamente elaborado. Segundo Richardson (1999), a entrevista é uma técnica importante que permite o desenvolvimento de uma estreita relação entre as pessoas. Ele esclarece que esse termo é construído a partir de duas palavras, entre e vista. Entre indica a relação de lugar ou estado no espaço que separa duas pessoas ou coisas; e vista refere-se ao ato de ver, ter preocupação de algo. Portanto, o termo entrevista refere-se ao ato de perceber realizado entre duas pessoas.

As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas, para que fosse possível registrar os depoimentos de forma fidedigna.

De posse de todos os dados, fizemos a transcrição passo a passo, registrando, na íntegra, os depoimentos obtidos. Em seguida, classificamos os dados a partir da leitura exaustiva e repetida dos depoimentos, isto é, de uma “leitura flutuante”, no dizer de Minayo (1993, p.235). Essa leitura permitiu apreender as idéias centrais dos relatos e das descrições sobre o tema em foco, destacando-as em negrito.

A análise de dados serviu de condução do processo descritivo. Procuramos, assim, estabelecer articulações entre os dados e os referenciais teóricos da pesquisa, tendo por base as questões de pesquisa. Trabalhamos com unidades de registro para analisar o conteúdo das falas dos entrevistados, destacando, para isso, trechos que constituíam o núcleo central e que respondiam mais diretamente à questão, bem como as categorias eleitas (comunicação surdo-ouvinte, dificuldades quanto à inclusão e visão sobre o Ser Surdo). Segundo Gomes (2002), a unidade de registro é empregada na técnica de análise de conteúdo e se refere aos elementos obtidos através da decomposição do conjunto da mensagem. Buscamos, assim, desvendar o que estava por trás dos conteúdos manifestos, indo além das aparências do que foi explicitado, adotando uma atitude de diálogo com os dados e o corpus selecionado.

2. Desvelando aspectos curriculares, por meio da especificidade do Ser Surdo.

2.1 Comunicação surdo-ouvinte.

Os alunos surdos, questionados quanto à forma de comunicação utilizada com os ouvintes, disseram que recorriam, basicamente, ao intérprete, além de usar a leitura labial, mímica e oralização. Um deles falou que não havia nenhum tipo de comunicação.

Quando o intérprete tá na sala de aula a comunicação com os professores é ótima e com os amigos também (...) só com intérpretes – SÍLVIO.

Se não tiver intérprete não tenho como me comunicar com eles – SANDRO.

A comunicação tem melhorado, pois há o intérprete (...) sou oralizado e os ouvintes falam sorrateiramente e peço-lhes para falar com mais calma – SAULO.

(...) não sei ler lábios e preciso de intérprete – SARA.

(...) quando as pessoas não sabem LIBRAS (...) chamo o intérprete (...) uso o corpo, escrevo algumas palavras (...) – SILAS.

(...) eu procuro sempre assim também ler os lábios (...) a minha comunicação é boa porque eu falo e tem um ouvido que eu escuto (...) – SOFIA.

(...) tenho leitura labial e converso com os professores e colegas da mesma forma – SUELI.

Outros professores, no entanto não conhecem nada e utilizam mímicas que não são LIBRAS (...) – SÉRGIO.

Através de gestos caseiros que improviso (...) – SÓCRATES.

(...) pelo fato de eu ser oralizada então dá pra gente se comunicar – SANDRA.

Bem, se me perguntaram eu respondo, falo (...) e se não entendem eu escrevo (...) – SAFIRA.

Não há comunicação nem relacionamento, apenas uma pessoa interage comigo. Com os professores é pior, não há comunicação e nem com os outros profissionais – SIMÃO.

As declarações dos alunos surdos em menção ao questionamento feito, em sua maioria, fazem referência ao intérprete como instrumento indispensável para a obtenção de uma comunicação satisfatória com professores e colegas. Isso mostra o desconhecimento da língua de sinais por parte dos docentes e colegas e, embora alguns alunos surdos tenham colocado que faziam leitura labial ou mímica, sabemos das enormes limitações comunicativas desses recursos para os alunos surdos. Portanto, partindo do princípio de que o currículo envolve as diferentes formas de apreender, elaborar e externalizar o conhecimento, exigindo uma interação dialógica constante entre os envolvidos no processo, vimos com preocupação que o aspecto fundamental de possibilidade de estabelecimento de diálogo está subordinada a procedimentos técnicoformais: interpretação da língua a cargo de um profissional. Dorziat (1998) trata sobre o assunto, afirmando que o universo de ensino abriga pessoas com realidades e interesses diferentes, sendo indispensável uma visão abrangente de currículo que transforme os alunos em sujeitos do próprio conhecimento. Sendo assim, nos é lícito julgar que as interações entre professores e alunos ouvintes, alunos surdos e processo de aprendizagem são os fundamentos que darão sustentação a um tipo de ensino que toma o conhecimento como produto das experiências cotidianas e para elas retornam.

Por isso, o compartilhamento de uma língua no processo pedagógico é um aspecto importante, por que não se trata apenas de “despejar” informações, mas de construir de forma consentânea ao universo cultural circundante os significados presentes saciedade. Entendemos que a língua de sinais é o passo inicial à viabilização da inclusão dos surdos na escola, para a compreensão de uma série de direitos que lhes são corriqueiramente negados como cidadãos e alunos, mas não podemos deixar de considerar que a educação para a formação de indivíduos críticos e autônomos exige uma maior interação e participação, envolvendo relações intensas e reais.

Da forma como é apresentado, as interações por meio do intérprete podem vir a limitar as mais variadas possibilidades de comunicação existentes, uma vez que, segundo Pequeno (2001), a capacidade de comunicação exige a compreensão da mensagem que o outro quer transmitir e, para tal, faz-se necessário o desejo de querer escutar o outro, a atenção às idéias emitidas e a flexibilidade para receber idéias que podem ser diferentes das nossas.

2.2 Dificuldades quanto à inclusão

Quanto às dificuldades que se deparavam no contexto escolar inclusivo, os alunos surdos elencaram uma série de dificuldades, dentre elas: falta de instrutor; aprendizado da Língua Portuguesa; inadequação do ambiente escolar; número insuficiente de intérprete; falta de capacitação dos professores para aprendizado da LIBRAS; falta de material didático específico. Outros disseram não enfrentar nenhum problema. Seguem seus depoimentos:

Falta um instrutor na escola e falta também mais um apoio dos professores em relação ao contato que eles devem ter com os surdos, porque não vão muito até os surdos não explicam muito os trabalhos. Só falam pros surdos se eles estão dando aula, aí se o intérprete chega eles dizem assim (...)“Passa aí pros surdos, fala isso daí...”, mas eles não têm a iniciativa de tentar se comunicar. Se a gente tira uma nota melhor é porque o intérprete deu fila se não tira nota é porque o surdo não tem capacidade de aprender isso pra mim já é uma dificuldade muito grande, mas assim, no geral é razoável. Deve melhorar a relação de amizade com os ouvintes porque, geralmente, há uma discussãozinha entre eles, mas seria melhor se eles se entendessem mais, se se apoiassem mais (...) – SILVIO.

As únicas dificuldades em sala são os conteúdos de português que são muito profundos para o surdo, não se adaptando nem a realidade nem a sua língua. Acho que deveria haver adaptação curricular no mínimo em português – SANDRO.

Conteúdo, conjugação verbal, acho que deveria haver uma adaptação curricular, não deve ser ministrada da mesma forma, pois para o surdo não é a mesma realidade – SÓCRATES.

Eu concordo com a inclusão, entre aspas como diz o ditado. Uma escola tem que ser inclusiva, mas que seja preparada para receber os surdos, tem que ter intérprete, as pessoas têm que aprender a língua de sinais; tem a questão de palestras, de informações sobre o que é a cultura de surdos, o que é a vida de surdo, língua de sinais, a questão da TV, filme legendado, tudo que venha a facilitar o surdo (...) – SOFIA.

Precisa ter mais intérpretes, curso de LIBRAS na escola para alunos e professores, para futuramente haver comunicação e relacionamento mais eficiente, livros e materiais específicos, para os surdos divulgar e comemorar o dia do surdo, divulgar a língua e a cultura do surdo. O professor explica e o surdo fica isolado. Necessário lutar para melhorar a inclusão. Contratem instrutor. Divulguem o resultado dessa pesquisa – SIMÃO.

Inclusão é um pouco complicado (...) Precisa ter um estudo direcionado para a criança surda, com vídeos, com instrutores, pois o surdo aprende por imitação, precisa aprender como lidar com outras pessoas. Alguns surdos adultos entendem a inclusão, outros estão em processo. Faltam intérpretes, não há como incluir os surdos sem eles. Os professores não sabem LIBRAS e precisam aprender no mínimo o básico para ter comunicação e o surdo não passar por tantas dificuldades – SAULO.

Para acontecer a inclusão precisa-se ensinar LIBRAS para as pessoas da escola, a  questão da escrita que é diferente da do ouvinte e as diferenças entre português e LIBRAS. O ouvinte é diferente do surdo – SARA.

É preciso acrescentar intérpretes, materiais apropriados, ex. TV com legendas e etc – SUELI.

Os professores não sabem LIBRAS e sem intérprete é impossível a inclusão em sala de aula, pois sem o mesmo como surdo vai entender o assunto ministrado pelo professor?- SILAS.

Os professores ensinam aos ouvintes e aos surdos só algumas vezes entendem. Necessito de intérprete para melhorar, porque tenho dificuldades em matemática – SAFIRA.

Não há nenhuma dificuldade, da forma que está acontecendo, deve continuar porque para os surdos está bom – SÉRGIO.

(...) não tem dificuldade nenhuma. Não precisa melhorar nada, tá bom a inclusão – SANDRA.

Os relatos acima mostram que a proposta de inclusão praticada pelas referidas escolas sofre os reflexos do ainda rudimentar sistema educativo brasileiro. Fatores elementares para o ingresso desta comunidade em uma instituição regular de ensino, como material apropriado, recursos humanos capacitados e presença constante de intérpretes ou número suficiente destes em alguns casos, não foram observados. Esses fatores dificultam em muito que estas escolas implantem uma inclusão autêntica. No entanto, insistimos em afirmar que é necessário tomar os procedimentos adotados como produto de uma concepção diferenciada de currículo e não como adaptações pontuais que apenas minimizam os efeitos devastadores da exclusão subliminar, sofrida pela permanência das práticas curriculares colonizadoras, que, embora reconheçam os diferentes, utilizam tal identidade para tratá-los como desvios ou ameaças (CORAZZA, 2002).

Assim, faz-se necessário a conscientização de todos quanto à importância de considerar a diferença como um princípio fundamental para a promoção da igualdade. Segundo CORAZZA (2002), um currículo assim tem como meta escutar o que os diferentes têm a dizer e incorpora em seu corpus as diferenças; sentir e tratar essas vozes, histórias, corpos, como desafios ao intercâmbio e à interpelação radical das crenças, valores, símbolos e identidades hegemônicas.

2.3 Visão sobre o SER SURDO

A representação do Ser Surdo nos depoimentos dos próprios surdos pontuou aspectos que enfatizavam a questão da normalidade x deficiência. Os entrevistados fizeram referência: à limitação imposta pela falta de audição; características do surdo, evocando a normalidade; sentimento de tristeza pelo fato de serem surdos; e ao fato de o surdo ser especial. Eis os depoimentos:

Ser surdo é viver num profundo silêncio. Não poder ouvir as informações que são passadas pelos professores, o que é dito pelos alunos, a conversa que tá tendo(...) Então é perder muita coisa, é não conseguir entender e compreender as coisas que são ditas, as informações que são passadas, ficar na sala de aula com o professor falando pras paredes porque ele não consegue ouvir nem entender. Tá perdendo todas as informações que ali são dadas e perde muito contato com o professor por causa disso daí. É viver num profundo silêncio – SÍLVIO.

É não conseguir perceber os sons, perceber as falas, entender as coisas que estão à sua volta – SANDRA.

(...) Realmente, é difícil a vida do surdo porque nem todo mundo conhece a LIBRAS, ninguém conhece, são pouquíssimas as pessoas que têm consciência disso. O surdo vai pro banco ninguém sabe LIBRAS (...)É só a questão de entender que é uma língua, uma maneira como o surdo fala e se comunica com as mãos, então é questão de entender isso, de aceitar a cultura e a vida do surdo (...) – SOFIA.

A vida do surdo é difícil, fico angustiado, pois é difícil me comunicar com os ouvintes, sinto-me sozinho, alheio, não entendo nada, preciso lutar, aprender, crescer, sempre precisando de alguém para ajudar na comunicação – SILAS.

Ser surdo, por um lado, é difícil para enfrentar as coisas da vida. É difícil ver o surdo inserido num emprego, pois não tem grau de escolaridade avançado, nem cursos, e são colocados em áreas de produção com trabalho excessivo. Tem gente que esquece que o surdo é uma pessoa normal e colocam-no na produção, ao invés de uma área que possa ganhar experiência e progredir.O surdo tem capacidade de aprender tanto quanto o ouvinte, mas muita gente não enxerga isso (...) Sou instrutor de LIBRAS, isto é uma vantagem, trabalho, ministro cursos, e tiro proveito da surdez e sou alegre, se não tivesse trabalho estaria me auto-destruindo. Sou alegre em família, mas, algumas vezes, sinto-me no meio de estranhos mesmo sendo oralizado – SARA

O surdo é uma pessoa normal como qualquer outra, só tem uma limitação que é a audição que dificulta o aprendizado, mas, somos capazes de buscar isso e reverter a situação – SÓCRATES.

É uma pessoa normal, é uma comunidade que gosta de estar inserida e ser feliz. Gosta de brincar e tem habilidades da mesma forma que qualquer outra pessoa – SANDRO.

Sou normal igual aos ouvintes, o único problema é a comunicação que não existe com os mesmos, não posso me relacionar com ouvintes, não recebo algumas informações da televisão, nem política, não posso ouvir música e, às vezes, sofro por viver isolado por falta de comunicação. Em parte sou triste, pois é muito difícil a comunicação – SIMÃO.

É ser uma pessoa como outra, dotada de emoções e sentimentos iguais a qualquer outra pessoa – SÉRGIO.

É ser triste. Não posso falar, não tenho comunicação com os ouvintes, sinto vontade de escutar, mas paciência, até em família não há comunicação. Não posso atender ao telefone, tanto na sociedade como em família fico triste por falta de comunicação, só com o grupo dos surdos me sinto feliz – SAULO.

Às vezes fico triste porque os ouvintes falam rápido e não entendo, e preciso da ajuda da minha família que é ocupada e não me ajuda. Gosto de ser surda, sei que o ouvinte desenvolve rápido e o surdo também. Ser surdo é ser diferente, ter cultura e língua própria. A família não sabe disso, precisa aprender (...) – SUELI.

Ser especial, ser inteligente, ter muitos amigos surdos. Sinto muita paz, sou extrovertida e alegre – SAFIRA.

Esses depoimentos mostram que a representação do SER SURDO para os próprios surdos está extremamente arraigada à visão médico-científica. Ao recorrer a uma comparação entre surdos e ouvintes, pôde-se observar que o parâmetro de vida dos surdos está diretamente ligado à pessoa do ouvinte. Ao adotarem este ponto de vista, atribuindo o conceito de normalidade ao ouvinte, o surdo torna-se vítima da supremacia desta visão social predominante, que o tem levado a sorver a designação de anormais ou deficientes. A repercussão disso é a visão que o ouvinte encontra-se sempre em uma posição de vantagem em relação a ele (surdo), comprometendo consideravelmente sua auto-estima, através de sentimentos de inferioridade e tristeza.

Desse modo, a maioria dos depoimentos mostrou que o olhar dos surdos para si mesmos recaiu sobre aspectos limitadores ou incompletos, acompanhando um movimento da cultura ocidental de ser ou representar a si mesmos, a partir de algum modelo de estética, de inteligência, de normalidade.

A incapacidade do homem em valorizar as diferenças gerou uma variedade de insatisfeitos que estão numa busca constante de estereótipos, de modo a se adaptarem, em contradição, muitas vezes, com suas peculiaridades (DORZIAT, 1999).

Reflexões Finais

Os depoimentos dos participantes levam a crer que persiste nas concepções dos entrevistados, como reflexo das práticas escolares investigadas, uma inclinação a considerar a inclusão como algo a ser acrescido à atual rotina escolar.

Ao compreendermos que o currículo inculca visões particulares de mundo e produz identidades individuais e sociais específicas, questionamos o tipo de formação oriunda de um currículo que desconsidera as formas de expressão e organização dos alunos envolvidos. Poderíamos almejar para os surdos um currículo que considerasse também as experiências e o referencial histórico que eles têm construído, sem desconsiderar as interfaces com a(s) cultura(s) e a(s) realidade(s) ouvinte(s), já que muitas dimensões entre identidade e alteridade estão envolvidas no processo social. Não é apenas a inclusão da Língua de Sinais que vai orientar uma nova abordagem curricular, mas a observação e aceitação dos surdos em sua totalidade, em suas especificidades, diferenças grupais e individuais e, ao mesmo tempo, nos aspectos específicos de sua cognição (FRANCO, 1999). Esta colocação é pertinente, pois, segundo revelam os dados, as peculiaridades dos alunos surdos, que ultrapassam as necessidades lingüísticas e mesmo de interação surdo-intérprete, não são consideradas. Portanto, não é a tolerância das formas de comunicação que vai resolver toda a problemática do ensino para as pessoas surdas, mas as formas como os envolvidos no processo educacional concebem a linguagem e a importância ou lugar das duas línguas (Língua de Sinais e Língua Portuguesa), como fatores culturais, nas interações dialógicas e práticas em sala de aula.

Precisamos, também, entender que, embora o intérprete tenha representado uma aceitação da Língua de Sinais, enquanto principal língua de instrução dos surdos, sua presença não pode ser vista como um substituto do professor, uma vez que entendemos a premência da interação professor-aluno, para que seja desenvolvida uma prática pedagógica crítica, participativa, criativa e autônoma.

O presente estudo aponta, portanto, para a necessidade de uma maior reflexão curricular no âmbito educacional, com o intuito de transformar a escola em um espaço verdadeiramente democrático, onde se estabeleçam múltiplas relações entre o eu e o outro; onde os diferentes interlocutores reconheçam não só a condição bilíngüe do surdo, suas diferenças e potencialidades, mas, também, outras questões que discutem a surdez como diferença política; enfim, onde seja possível desenvolver um currículo para todos, envolvendo, em particular, o processo cultural inerente aos surdos, como enfatizam os Estudos Culturais em Educação.

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