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Educação de surdos no ensino regular: inclusão ou segregação?
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Publicado em 2004
Revista do Centro de Educação, nr. 24
Ana Dorziat Barbosa de Mélo
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Resumo

O presente artigo pretende oferecer subsídios para um olhar diferenciado sobre a questão da inclusão dos surdos no ensino regular. Procura superar a discussão técnica que permeia as políticas públicas que tratam sobre o assunto, inserindo-a numa visão político-pedagógica. Para tanto, expõe alguns critérios que podem servir de reflexões sobre o ensinar e o aprender para Surdos.

Introdução

É cada vez mais forte a insistência nos diferentes meios de divulgação (especializados e de comunicação de massa) sobre a necessidade de inclusão das pessoas chamadas deficientes ou portadoras de deficiência no ensino regular. Essa iniciativa é orquestrada pelas políticas públicas que têm instituído um discurso de solidariedade e de multiculturalismo nos seus documentos oficiais, sem, no entanto, apontarem caminhos de superação efetiva dos mecanismos subliminares de exclusão que ainda assolam o ensino regular. Na verdade, as escolas são organizadas para conviverem com uma exclusão sutil diferente da exclusão física de antes. Ela se dá por dentro do sistema, apresentada nos fracos resultados acadêmicos que são maquiados e transformados em respeito às diferenças individuais e às diferentes culturas. Importa é que, estatisticamente, todos permaneçam na escola.

Esse é um quadro contraditório, porque, ao mesmo tempo em que se institui um discurso coerente com alguns princípios de humanidade, destitui-se das pessoas o direito de participação social em condições de igualdade. Embora entenda que o discurso da inclusão dos chamados deficientes defenda a idéia de ajustamento dos diversos âmbitos de atuação social, para receber essas pessoas, diferente teoricamente das políticas de integração (Blanco, 1998), considero que pouco, ou quase nada, tem mudado nas práticas cotidianas.

Com relação aos alunos surdos, em geral, a recomendação de inclusão tem levado em conta sua forma de comunicação: a língua de sinais. Entretanto, essa fica restrita ao intérprete e ao surdo, desconsidera a interação com o professor e com os demais colegas, a importância das relações humanas, dos processos de formação de identidade e do estabelecimento de conexão entre os conteúdos escolares e as formas particulares (visuais) de apreensão e de construção de conhecimentos. Tratar sobre inclusão sem considerar as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos e de sua participação, como cidadãos, não passa de retórica. Tratar sobre inclusão significa levar em conta os diferentes modos de vida, que vão desde as condições materiais até as formas de organização presentes em cada grupo. Assim, falar sobre um surdo abstrato, como se essa palavra pudesse dizer tudo desse ser humano, remete a uma hierarquização clínica, orgânica. Os surdos são pessoas que possuem diferentes formas de vida material e representam diferentes papéis sociais. Não se pode negar que, sem um aspecto imprescindível ao ser humano – a linguagem -, torna-se difícil abordar aspectos gerais e particulares das relações humanas.

Para que haja a inclusão social das pessoas surdas, com o objetivo de participação social efetiva, sem a inevitável submissão a que as minorias são expostas, as escolas precisam organizar-se, considerando três critérios: a interação através da língua de sinais, a valorização de conteúdos escolares e a relação conteúdo-cultura surda.

1° CRITÉRIO: a interação através da língua de sinais.

A linguagem dos surdos – a língua de sinais – é o ponto de partida que dará sustentação a todas as reflexões que tratarem sobre a temática. Essa forma viso-espacial de apreensão e de construção de conceitos é um dos aspectos mais importantes, responsáveis pela formação da comunidade surda, e o que gera uma cultura diferente: a cultura surda. O reconhecimento da diferença passa pela capacidade de apreensão das potencialidades dos surdos, no que diz respeito ao seu desempenho na aquisição de uma língua cujo canal de comunicação é o viso-gestual e também à sua habilidade lingüística que se manifesta na criação, uso e desenvolvimento dessa língua.

Logicamente, a partir de um desenvolvimento lingüístico natural, outras características podem emergir, determinando formas dialetais diferentes, em consonância com as condições sócio-econômicas e geográficas de cada indivíduo surdo.

Devido às limitações no meio familiar para que esse desenvolvimento se dê naturalmente, pelo fato de a grande maioria dos surdos ser pertencente a famílias de ouvintes, torna-se imprescindível a organização de um meio lingüístico adequado que venha suprir essa limitação. Dessa forma, a escola de surdos, desde cedo, é primordial. Nela, é possível criar um ambiente lingüístico que não se restrinja à comunicação surdo-intérprete ou surdo-professor, mas que dê oportunidade de uma comunicação fluente, viva e natural, entre os colegas, o professor e os surdos mais velhos. A partir daí, não só a veiculação de todos os tipos de conteúdos curriculares se torna viável, como também a consolidação de uma forma particular de ver o mundo, a partir das informações visuais e da emergência de diferenças dentro da diferença. Esse é o critério para uma educação de fato. Sem ele, pode-se até vislumbrar alguma aquisição de informações, mas será mais uma maneira alienante, dentre as várias existentes, que a escola regular promove.

Quando se trata de inclusão, a valorização da língua de sinais para os surdos é, a meu ver, uma das questões essenciais, como possibilidade de igualdade de condições de desenvolvimento entre as pessoas. Contudo, o uso dessa língua, apesar de critério básico, não deve ser visto como a solução mágica para a inclusão social dos surdos e para todos os problemas que se apresentam no ensino. A exclusão social só pode ser enfrentada, através de uma educação engajada e atenta, que busque entender, além de fatores de ordem individual, os desdobramentos da educação, no âmbito das discussões da educação como um todo, considerando as esferas mais amplas da sociedade.

2° CRITÉRIO: a valorização de conteúdos escolares.

Segundo Apple (1994), as pessoas nunca agem no vácuo. A forma de ser, pensar e agir dos indivíduos está estreitamente vinculada às exigências da sociedade e à forma como essa sociedade organiza-se, em torno de seus cidadãos. No processo de construção dos surdos, o papel da escola é relevante, como uma das principais unidades representativas da estrutura social maior. Analisar as questões educacionais implica necessariamente considerar a história dos conflitos de classe, raça, gênero e religião, em diversos países do mundo, em contradição com as suas exigências sociais.

Vários autores que lidam com a educação têm apresentado preocupações em mostrar a relação entre estrutura e superestrutura sociais, estipulando a base material como sendo, em última instância, decisiva para a organização social. Essa idéia é traduzida de forma unilateral, no final da década de 60, por Althusser (1985), na sua representação de Aparelhos Ideológicos de Estado. Existem interpretações mais apropriadas (monismo materialista) que se colocam em posição menos determinista, mostrando que a escola não pode ser considerada como simples reprodutora do sistema, mas deve ser vista também como meio de transformação, uma vez que podem ser estabelecidas  relações de influência recíproca, entre as bases materiais e as ideológicas ou utópicas.

Segundo Weber (1996), o reconhecimento da vinculação da educação escolar a projetos político-sociais conduziu, no início da década de 80, à sedimentação de posturas que, ao perceber a ação educativa como ato político, distinguiu-a ou não da ação política propriamente dita. Essas idéias levam Saviani (1984) a alertar para o fato de que a ação política na educação se cumpre na medida em que ela se realiza enquanto prática especificamente pedagógica. Para ele, a pedagogia, empenhada em colocar a educação a serviço da transformação das relações de produção, deve privilegiar, sobretudo, o conteúdo veiculado nas escolas. A apropriação desse conteúdo pelos alunos, principalmente os da classe popular, coloca-os em pé de igualdade com os demais, tornando-se forte aspecto para a democratização social.

No discurso de valorização de conteúdo não está contido uma volta ao estilo de passar o ponto, que atropela as diferentes formas de elaboração cognitiva dos alunos e sua diversidade cultural. Ao contrário, considera a aquisição crítica e profunda do conhecimento, tendo em vista o tempo e o espaço social a que se destina, como critério para uma educação de qualidade que objetive, sobretudo, uma participação ativa e transformadora na sociedade.

Ao tratar sobre educação de qualidade ou qualidade na educação, é importante colocar meu entendimento sobre a questão, considerando as atuais circunstâncias em que se tem tratado sobre isso. No Brasil, a exemplo de alguns países que têm adotado uma política neoliberal, a questão da qualidade do ensino tem tomado contornos de um discurso hegemônico, transpondo modelos do mercado de produção para a educação, com especial ênfase na tese do capital humano. Autores como Frigotto (1997), Gentili (1997) e Silva (1997) realizam uma análise bastante apropriada dessa situação, enfatizando a necessidade do surgimento de um discurso contra-hegemônico que mostre a singularidade e a natureza diferencial da problemática educacional. Esses autores expõem a importância de um maior discernimento entre os educadores, falam sobre a necessidade de uma volta urgente ao discurso da democratização do ensino, desenvolvido em meados da década de 80, como forma de colocar em primeiro lugar as pessoas e não a produção.

As pessoas surdas, com maior nível de gravidade, têm sofrido também as conseqüências da política educacional em vigor, que se mostra democrática e culturalmente vinculada, quando se trata da defesa dos interesses do próprio sistema existente. Elas sofrem duplamente os preconceitos sociais: são vistas como deficientes, como incapazes, por não se moldarem (pelo menos aparentemente) às exigências do mercado. São, na sua maioria, oriundas das classes populares menos informadas, menos servidas de saúde básica e, por isso, mais suscetíveis de contraírem os males causadores da surdez (quando a causa não é hereditária).

Parece contraditório falar sobre a questão biológica da surdez, quando se tenta marcar um discurso da diferença. Entretanto, não se pode negar o aspecto orgânico como o desencadeador dos fatores de ordem sócio-cultural, que dão características próprias às pessoas surdas. Infelizmente, a tradição clínica na área, que buscava utilizar procedimentos terapêuticos, desconsiderando as implicações culturais da surdez, originou formas preconceituosas, que estiveram (ainda estão, em alguns casos) presentes também nos ambientes mais próximos dos surdos, como as escolas.

Esse preconceito esteve (ainda está, em alguns casos) presente também nos ambientes mais próximos dos surdos, como as escolas. Até bem pouco tempo, todas as políticas institucionais voltadas para essas pessoas, não só sugeriam o uso da terminologia deficiente auditivo ou portador de deficiência auditiva, como também negavam aos surdos o direito de conviverem entre si, de organizarem-se em grupo e/ou associações, de tornarem-se cidadãos, porque não lhes era permitida a apropriação da língua de sinais. Eles eram vistos e tratados como doentes e todos os esforços eram empreendidos no sentido de torná-los sãos.

Para reverter essa situação, é necessário e urgente pensar-se em formas de viabilizar, também para essas pessoas, um ensino em que o conteúdo seja colocado no centro do processo e os alunos possam ser impulsionados pelo adulto para independência intelectual. Exercerão, assim, o seu papel de cidadãos, com possibilidades de participarem criticamente da sociedade em que vivem, e não apenas de adaptarem-se ao tipo de sociedade existente, sociedade contraditória onde ao mesmo tempo em que o homem é capaz de, através de seu trabalho, contribuir para o progresso e a produção de riquezas, grande parte dos seres humanos encontra-se à margem dos benefícios desse progresso, dessa riqueza. Para tentar tornar a sociedade mais humana, a escola deve explicitar de forma clara sua finalidade e contribuir para desbloquear os mecanismos de exclusão existentes. Cabe aos profissionais envolvidos no ensino de surdos o compromisso de procurarem mudar o quadro caótico atual, através da discussão, implantação e implementação de propostas político-pedagógicas Que estas considerem o contexto mais amplo das discussões sobre o ensino e as especificidades de cada população-alvo.

Não é mais possível aceitar que persista o tratamento preconceituoso e estigmatizante conferido aos surdos entre os próprios profissionais da área. É necessário transformar as escolas em verdadeiras instituições de ensino, com todos os direitos e deveres que essa entidade exige. A organização de cada comunidade escolar, em torno de sua própria proposta pedagógica, deve iniciar pelo entendimento de que teoria e prática, conteúdo e procedimento, ensino e sociedade não são aspectos separados e compartimentalizados.

Urge que os professores busquem tensionar sua prática, no sentido de estarem sempre vigilantes sobre se ela condiz com os fundamentos teóricos em que eles realmente acreditam (e vice-versa). Reconhecer o caráter histórico no desenvolvimento do ser humano significa, em se tratando do trabalho educativo, valorizar a transmissão da experiência histórico-social. O papel do ensino não é esperar que as capacidades necessárias a um determinado conteúdo amadureçam na criança, para depois ensinar-lhe esse conteúdo. Segundo Duarte (1996), um ensino que assim proceda vai atrás do desenvolvimento, dirige-se ao seu passado. Pretende-se a viabilização de um ensino que se adiante ao desenvolvimento, impulsione-o, dirija-se ao futuro.

3° CRITÉRIO: a relação conteúdo-cultura surda.

O ensino não é isento de influências e de manipulações, que atendam a determinados grupos sociais. Giroux (1986) destaca em seus trabalhos o debate sobre a necessidade de resistência frente aos valores dominantes no âmbito escolar e sobre a possibilidade aí existente de formulação e vivência de novos valores.

No ensino de surdos, esses saberes foram representados pelo ouvintismo (Skliar, 1997), ou seja, o transplante linear dos modos de elaboração e produção dos conhecimentos dos ouvintes para os surdos. Ao lado deles, no entanto, continuaram (e continuam) sendo produzidos outros conhecimentos que põem em xeque os efeitos do poder, ligados à organização institucional que os sustenta.

Para que o conhecimento seja tomado como uma síntese entre saberes gerais, teorias científicas e saberes locais, inter-relacionados, é preciso não confundir cultura culta com cultura dominante e pôr em questão a lógica crescente, da pedagogização, dos esquemas classificatórios (Varela, 1994). Ao mesmo tempo deve haver cautela com posturas extremas que colocam de um lado as pedagogias tradicionais, o seu desprezo pela cultura não acadêmica, a sua rejeição à diversidade, e, de outro, as pedagogias renovadoras, com uma cultura escolar excessivamente vinculada ao criativo, ao concreto e ao prático, negando às pessoas o acesso a outros tipos de saberes.

O resgate dos conteúdos escolares, na verdade, subentende a necessidade de contextualização, do estabelecimento de conexões entre o particular e o geral, entre o individual e o coletivo.

O particular diz respeito aos modos particulares de expressão desse grupo que, por possuir uma cultura própria (visual/gestual), tem necessidades específicas. Por isso, é imprescindível estar atento ao que os surdos têm a dizer, às suas formas de organização, de racionalização, fazendo sobressair suas idéias, suas aspirações. O conhecimento dos seus modos de organização pode indicar procedimentos adequados que contribuam para uma estruturação curricular culturalmente referenciada.

O geral significa entender a diferença como contradição social, diferença como relação, em vez de diferença como algo livre-flutuante e deslocada. O refazer social e a reinvenção do eu devem ser entendidos como dialeticamente sincrônicos. Não são sem relação ou apenas marginalmente conectados. São processos que se formam e se informam mutuamente.

Para que se criem situações em que os alunos sejam realmente “ouvidos”, é necessário, cada vez mais, que a escola se perceba como detentora de responsabilidades pedagógicas específicas. É através desse trabalho, fundamentalmente pedagógico, que se pode vislumbrar resultados positivos e exeqüibilidade de ações.

De acordo com Pimenta (1993), o eixo central articulador do trabalho escolar é a tradução das habilidades, das atividades e dos conhecimentos necessários à formação do novo cidadão. Para isso urge saber o que fazer, o porquê fazer, o como fazer, para quem fazer etc.

Essas diretrizes apontadas por Pimenta, devem ter como eixo central o para quem fazer. Tal critério norteará o começo, o meio e o fim do trabalho escolar. Fundamentando na visão de quem é a população-alvo da escola, é possível promover a aquisição de significados socialmente construídos, através de uma relação pessoal e intransferível com os conhecimentos e imprimir um verdadeiro sentido ao fazer pedagógico.

A prática escolar tem sido, em geral, desenvolvida a partir da idéia de um aluno hipotético. Generalizações tendem a ser corriqueiras. Elas acontecem também em relação aos alunos surdos, prejudicando uma visão mais realista, em que cada pessoa, independente de ser surda, apresenta determinadas características de personalidade, produto de seu trajeto histórico-econômicosocial. A diversidade própria em qualquer grupo, muitas vezes não é considerada. O grupo de surdos, bem como o grupo de ouvintes, apresenta características internas de raça, de classe, de gênero, de religião etc., que podem vir a provocar conflitos, inseguranças, divergências e a influir na personalidade do indivíduo como um todo. Através de tentativas de apreensão das contradições internas do grupo, seria possível entendê-lo melhor. Na variedade de experiências surgem diferentes perspectivas de valores e de poderes. Segundo Lopes (1998:119), existem surdos que, por terem referências culturais mais fortes, tendem a dominar outros que não as possuem. Afirma ela:

“As trocas culturais e de poderes desiguais, entre surdos que compartilham de uma situação lingüística semelhante, auxiliam no processo de ocupação territorial escolar e na organização de movimentos surdos, na convivência e na formação de comunidades surdas”.

O conflito interno, presente em qualquer agrupamento de pessoas, pode estar levando alguns surdos a se isolarem, junto a pares surdos mais próximos. Essa não é a solução para que se conquistem espaços sociais, nem para que se mude a mentalidade do próprio surdo e da sociedade em geral, frente ao fenômeno da surdez.

A união dessas pessoas em torno de Associações deve ser incentivada. Sem organização, o convívio entre os que lutam pela mesma causa e pela busca de lideranças não há como promover e preservar a cultura surda. A escola, embora deva constituir-se espaço assegurado para os surdos, encontra-se ainda muito ‘direcionada’ pelos ouvintes, pelos modos ouvintes de representação. É nas Associações que os surdos podem encontrar meios mais apropriados de redirecionarem os rumos da escola, de imprimirem e imporem sua perspectiva surda, de organizarem novos ambientes discursivos.

Além desse papel conscientizador, a Associação pode agir de forma decisiva como espaço educacional, no sentido de colocar as crianças e seus familiares, desde bem cedo, em contato com outras crianças e com adultos surdos, promovendo um ambiente rico em interação, onde os surdos ditam as regras e podem ser eles-próprios, sem precisar usar artifícios para se fazerem entender. Essa interação, particularmente nesse momento de transição em que as escolas ainda buscam entender e aplicar a linguagem gestual, poderia proporcionar a base para a apropriação de valores e regras sociais, próprias da comunidade surda. A inexistência desse tipo de interação pode contribuir para a acentuação do parâmetro ouvinte. Ou seja, de um lado, são colocados os surdos e todas as suas supostas limitações e, de outro, os ouvintes que só pelo fato de assim o serem (ouvintes) parecem representar coisas boas. Se a sociedade maior for tomada como contexto de análise, essa visão Bem x Mal é decorrente da presença massiva de uma ideologia dominante que se impõe por si mesma como um divisor de águas. Corroborando essa postura ideológica, esteve presente no âmbito da análise sobre a surdez toda uma formação normalizadora, que ressaltava as vantagens em se falar oralmente. Isso contribuiu para uma baixa auto-imagem do surdo e para um sentimento de inferioridade ante a norma.

Embora sejam indiscutíveis as vantagens em ser ouvinte neste mundo em que as informações são basicamente audiovisuais, sobretudo quando não são usados mecanismos que elevem a auto-estima dos surdos, acentuem sua capacidade de desenvolvimento dentro da cultura viso-gestual e, ao mesmo tempo, abram canais de intercâmbio com o mundo do ouvinte, deve-se considerar que nem todos os ouvintes têm uma vida plenamente maravilhosa, pois é no seio da sociedade ouvinte que se originam e se perpetuam as contradições, discriminações e conflitos.

Na verdade, a incapacidade do homem em valorizar as diferenças gerou uma variedade de insatisfeitos que estão numa busca constante de estereótipos, de modo a se adaptarem, em contradição, muitas vezes, com suas peculiaridades. Nesse contexto, nenhuma identidade se constrói de forma definitiva, fixa, imutável (Hall, 1997). As pequenas diferenças fazem o indivíduo, na acepção do termo.

Nem sempre as representações das pessoas levam em conta essas diferenças, de forma real, verdadeira. Elas refletem os conflitos vividos entre o que se é e com o que se gostaria de ser.

Na vida dos surdos o ser sempre foi relacionado ao ouvir, ao falar e, em conseqüência, a tudo que estas habilidades representavam: ser inteligente, ser educado, ser maduro. Vários desses estereótipos têm contribuído para reforçar os valores ouvintes e sufocar formas de expressão da cultura surda. O normal (ser ouvinte) passa a ser o paradigma. Quando esse paradigma surge de forma explícita, aparece junto o lado negativo de ser surdo, que, nessa sociedade, significa um enfrentamento constante com o desconhecido. Mesmo no ambiente mais próximo (familiar) dos surdos, onde é esperado que haja mais compreensão, mais proximidade, a comunicação (quando existe) não passa de simples banalidades do cotidiano (Dorziat, 1999).

Comentários finais

A articulação de um espaço escolar verdadeiramente pedagógico deve ter, como princípio fundamental e norteador de políticas educacionais mais amplas, a sedimentação de bases ideológicas sobre concepções de homem e de mundo.

Qualquer que seja, a política educacional deve considerar esse princípio. O ambiente educacional deve perseguir a idéia de desenvolvimento pleno dos indivíduos, porque não fazê-lo, pode significar a criação de indivíduos de segunda categoria.

Para isso, as pessoas envolvidas no processo educacional precisam fazer um esforço, no sentido de se livrarem de modelos pré-determinados de homem, de entenderem a importância de que o aluno realize suas próprias elaborações; que compartilhe suas dúvidas, suas descobertas e seu poder de decisão sobre os destinos da escola.

No momento histórico em que vivemos, o ambiente educacional que pode reunir tais critérios é a escola de surdos. Nela, será possível perceber mais claramente em que consiste a diferença e como trabalhá-la, trazendo à tona a necessidade de novas construções pedagógicas, numa síntese política e lingüística, pois só elas darão suporte a uma inclusão social de fato.

Bibliografia

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. 6 ed., Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

APPLE, Michel. Repensando ideologia e currículo. In: MOREIRA, A.F. e SILVA, T.T.da. Currículo, cultura e sociedade. 2 ed., São Paulo: Cortez, 1994.

BLANCO, Rosa. Aprendendo na diversidade: implicações educativas. Conferência apresentada no III Congresso Ibero-americano de Educação Especial. Foz do Iguaçu/PR, 1998.

DORZIAT, Ana. Concepções de Surdez e de Escola: ponto de partida para um pensar pedagógico em uma escola pública para surdos. São Carlos / SP: Trabalho de Tese (Doutorado), UFSCar (mimeo.), 1999.

DUARTE, Newton. Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski. Campinas: Editora Autores Associados, 1996.

FRIGOTTO, Gaudêncio. O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In: FAZENDA, Ivani (org.). Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez editora, 1991.

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