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Diléia Aparecida Martins
Diléia Aparecida Martins
Professora de Educação Especial
Educação bilíngue para surdos: um olhar a partir da trajetória de intérpretes de Língua Brasileira de Sinais
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Publicado em 2009
ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.11, n.1, p.234-254
Diléia Aparecida Martins
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Resumo

O presente trabalho reflete à educação bilíngüe para estudantes surdos na educação superior, especialmente a trajetória de formação do intérprete de Língua Brasileira de Sinais. Recupera o histórico da educação da pessoa surda e apresenta os dados de pesquisa realizada com intérpretes de Libras que atuam no ensino superior, referentes à formação desses profissionais. A partir da resposta dos sujeitos observa-se, que os profissionais amparam-se em conhecimentos apropriados no decorrer de sua formação humana, a partir de sua disposição social e de seu acesso às produções simbólicas.

Introdução

A Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional, Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, garante o oferecimento da educação especial como uma modalidade de ensino preferencialmente na rede regular, desde a educação infantil (de zero a seis anos) até a educação superior.

A Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) e a LDB n. 9394/1996, vieram contribuir para o trabalho desenvolvido pela Secretaria de Educação Especial no atendimento educacional em escolas especiais, e prioritariamente, em escolas regulares.

Dados oficiais do MEC revelam um aumento significativo de matrículas na Educação Especial, dentre elas, de alunos surdos na escola regular e na educação superior. O ingresso do aluno surdo, fluente em Libras, na educação superior provocou a contratação do intérprete de Libras. No entanto, o trabalho no campo educacional do intérprete de língua brasileira de sinais (Libras) e língua portuguesa se apresenta como um desafio, tendo em vista o cumprimento de propostas educacionais inclusivas.

No levantamento de produções na temática observou-se que são poucas as publicações sobre a atuação do intérprete de Libras. Há estudos sobre a atuação do intérprete em sala de aula do ensino fundamental (LACERDA, 2002; 2006; LEITE, 2004; QUADROS, 2004; ROSSI, 2005). Algumas dissertações refletem o espaço ocupado pelo intérprete fundamentando-se na psicanálise e nos estudos culturais (RAMOS, 2005; PIRES, 1999; SANTOS, 2004; ROSA, 2005) buscando compreender o posicionamento ocupado por esse profissional na educação superior (LIMA, 2006) e na educação de forma geral.

Especificamente quanto à educação de pessoa surda, Januzzi (2004), lembra que a influência dos estudos da lingüística sobre a linguagem, possibilitou o surgimento de uma nova proposta pedagógica capaz de reconhecê-lo como usuário de duas línguas: a Língua de Sinais e a Língua Oral oficial do país.

De fato, no final do século XX e início do século XXI, destacam-se, no Brasil, estudos em lingüística sobre a Língua Brasileira de Sinais (BRITO, 1979; 1985; 1989; 1990; 1991; 1994; 1996) que contribuíram para o reconhecimento dos gestos utilizados por grupos de pessoas surdas como uma língua. Para Lacerda (1998) o descontentamento com o oralismo e as pesquisas sobre línguas de sinais podem ser reconhecidas como as principais razões para a busca de novas propostas educacionais.

É importante destacar ainda, a influência de outros países nas pesquisas sobre as línguas de sinais. Stokoe (1978), ao estudar a língua de sinais americana, revela que a estrutura dessa língua se assemelha à das línguas orais, encontrando nela, unidades - fonemas que são considerados parâmetros básicos para a existência de uma língua os estudos sobre as línguas de sinais tornaram-se cada vez mais estruturados e, com eles, surgiram alternativas educacionais orientadas para a educação bilíngüe.

No entender de Pereira (2004 p. 43), considerando que boa parte das crianças surdas nascem em famílias ouvintes, espera-se que estas estejam expostas à Língua Portuguesa e que fragmentos dessa língua sejam incorporados por elas. Essa língua constituiria, juntamente com os gestos, as expressões faciais e os movimentos corporais, uma linguagem partilhada com os familiares e com a sociedade.

A partir desses elementos, compreende-se que o bilingüismo, como uma proposta para a educação de pessoas surdas, “pressupõe o ensino de duas língua. A primeira é a língua de sinais, que dará arcabouço para a aprendizagem de uma segunda língua, que pode ser escrita ou oral, dependendo do modelo seguido” (Idem, p. 45).

O princípio fundamental do bilingüismo é oferecer à criança um ambiente lingüístico em que seus interlocutores se comuniquem com ela de forma natural, como acontece com a criança ouvinte. Na convivência com um adulto usuário da língua, a criança surda encontra a possibilidade de adquirir a língua de sinais como primeira língua, não como uma língua ensinada, mas apreendida dentro de contextos significativos.

Segundo Quadros (2006), como a língua de sinais é uma experiência lingüística visual, ocorre um choque entre uma proposta educacional oralista (praticada por tanto tempo) e o bilingüismo enquanto uma proposta em processo de iniciação. No Brasil, é comum associar a educação de pessoas surdas ao ensino do português oral e escrito, pois ainda encontramos resquícios do oralismo e da comunicação total, de modo que não podemos considerar as práticas educacionais vigentes completamente enquadradas no bilingüismo.

No entanto, atualmente, algumas experiências de educação bilíngüe continuam condicionando a educação de pessoas surdas à aquisição da língua oral, pois a sua inserção no ensino comum ocorre sem que este esteja organizado em duas línguas ou sem que assuma a língua de sinais como a primeira língua do aluno surdo. Como cita Quadros (2006, p. 4) acerca da experiência vivenciada no estado de Santa Catarina (SC):

Nas propostas de inclusão de alunos surdos na rede regular de ensino no estado, observouse a submissão/opressão dos surdos ao processo educacional ouvinte nas propostas integracionistas, que se estabelecem no condicionamento de todo o processo educacional ao ensino do português até a descaracterização completa do ser surdo. Isso é verificado observando-se os dados referentes ao fracasso escolar e à evasão dos alunos surdos das escolas públicas. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que temos 178.000 surdos no estado de Santa Catarina. A Fundação Catarinense de Educação Especial (FCCE) constatou que apenas 1.680 destes são atendidos nas escolas regulares com apoio das salas de recurso, ou seja, menos de 1% do total apresentado pelo IBGE está sendo contemplado no estado.

Especificamente sobre questões relativas a Libras na realidade escolar inclusiva é reconhecida a necessária presença de um profissional que domine essa língua, pois se observa no decorrer do processo de instauração do bilingüismo, a dificuldade de encontrar professores preparados e capacitados para o desempenho de um trabalho pedagógico bilíngüe.

O intérprete de Língua de Sinais passou, então, a ser considerado como um meio de tornar real uma proposta educacional bilíngüe, na qual a presença de um profissional fluente em Língua de Sinais é essencial. Entretanto, inúmeras são as dificuldades encontradas no trabalho conjunto de professores e intérpretes, com os alunos surdos e ouvintes.

A realidade escolar da inclusão esbarra na fragilidade de formação dos profissionais, que desconhecem a condição lingüística do aluno surdo e a função a ser exercida pelo intérprete. Paralelamente, esbarra-se na formação do intérprete para atuar no ensino, em sala de aula, cujo trabalho tem uma finalidade educacional, que pretende mediar o processo de ensino/aprendizagem e tratar a tradução/interpretação Língua de Sinais – Língua Portuguesa vinculada aos processos educacionais.

De acordo com Lacerda (2006) existem, ainda, implicações da falta de planejamento, de trabalho em equipe e de clareza na compreensão do que vem a ser, na prática, o ensino bilíngüe, de modo que este não se resuma à presença e atuação do intérprete em sala de aula. De qualquer modo, a pesquisa realizada por Lacerda revela que a presença do intérprete de Libras em escolas brasileiras é pouco comum e, ao mesmo tempo em que a fragilidade na formação docente para trabalho com esse alunado é freqüente.

Em seu processo de escolarização, a criança não encontra um ambiente educacional minimamente preparado para que possa aprender os conteúdos do currículo do ensino fundamental. A presença do intérprete de língua de sinais em sala de aula pode minimizar alguns aspectos deste problema, em geral, favorecendo uma melhor aprendizagem de conteúdos acadêmicos, entretanto, de qualquer modo, esse aluno continua inserido em um ambiente monolingüe.

No estudo das possibilidades para escolarização de educandos surdos, observamos que as dificuldades encontradas na Educação Básica têm sido freqüentes também no ensino superior. A problemática criada em torno da fragilidade da formação docente para ensino de pessoas numa condição lingüística bilíngüe e as limitações existentes no trabalho desempenhado pelo intérprete de Libras e a ausência de uma organização bilíngüe, dentre outros elementos, são observados nos demais espaços educacionais.

O trabalho pedagógico bilíngüe na educação superior e a atuação do intérprete de Libras

Segundo Ceretta e Fernandes (2008), o trabalho pedagógico bilíngüe na educação superior tem ocorrido de modo limitado desde o ingresso do estudante na Instituição de Educação Superior (IES) por meio do vestibular. Em que pese a existência de orientações do MEC, as universidades dispõem de bancas especiais e intérpretes de Libras, mas não, de recursos especificamente bilíngües.

No Brasil há adultos surdos que freqüentam cursos bilíngües em Instituições de Educação Superior. Franco (2008) afirma que o INES oferece, desde 2004, um curso superior de licenciatura bilíngüe. Uma segunda proposta de curso superior bilíngüe, segundo Quadros (2006) e Rossi (2008) é um curso superior de licenciatura e bacharelado em Letras – Língua Brasileira de Sinais oferecido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em parceria com o Ministério da Educação, com a Secretaria de Educação a Distância e a Secretaria de Educação Especial. Apesar da existência de duas propostas educacionais bilíngües na educação superior, reconhece-se que a maior parte da população constituída por pessoas surdas tem freqüentado o ensino superior em Instituições de Ensino Superior comum.

História

De acordo com Quadros (2004) observa-se que o trabalho dos intérpretes de língua de sinais iniciou-se com a atuação destes em atividade voluntária, valorizada enquanto atividade profissional na medida em que pessoas surdas conquistavam seus direitos e espaço na sociedade a partir do engajamento da sociedade civil.

Na Suécia a atuação de intérpretes de língua de sinais ocorreu em trabalhos religiosos por volta do final do século XIX. A criação de cinco cargos de conselheiros para surdos ocorreu em 1938, sendo ampliado para mais de 20 devido à demanda de trabalho, pela procura de surdos. No ano de 1968, por uma decisão do Parlamento, todos os surdos teriam direito a um intérprete sem arcar com encargos. Com a expansão do campo de trabalho do intérprete, surgiu, também, o primeiro curso de treinamento organizado pela Associação Nacional de Surdos, junto à Comissão Nacional de Educação e à Comissão Nacional para Mercado de Trabalho.

Nos Estados Unidos, conta-se que o primeiro intérprete teria sido Thomas Gallaudet, intérprete de Laurent Clerc, surdo francês que estava nos EUA para promover a educação de surdos. Nesse país, em 1964, foi fundada uma organização nacional de intérpretes para surdos (atual RID), estabelecendo requisitos para a sua atuação. O trabalho realizado pela RID progrediu de modo a avaliar e a registrar intérpretes de língua de sinais.

No Brasil, os registros encontrados revelam a atuação de intérpretes de língua de sinais por volta dos anos 1980, conforme afirma Quadros (2004). Entretanto ao analisar os documentos da Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS), uma federação que representa pessoas surdas desde 1973, observa-se que o trabalho desses profissionais pode ter-se iniciado anteriormente.

No intuito de levantar dados referentes ao histórico do intérprete de Libras, analisaram-se os relatórios da FENEIS desde a Ata de fundação em 1973 até o ano de 2002, data do último relatório disponível no site, na integra. Na ata de fundação é mencionada a presença de intérpretes, sem maiores informações. Somente no relatório de 1988 inicia-se a descrição dos trabalhos realizados por esses intérpretes junto à Federação.

Das atividades desenvolvidas destaca-se a atuação em redes televisivas iniciadas em 1988 no Rio de Janeiro, em empresas de aviação, na organização de encontros regionais, no encaminhamento às escolas estaduais, na assessoria jurídica, no departamento pessoal de empresas que contratavam pessoas surdas. Embora se reconheça que os primeiros trabalhos eram voluntários, os relatórios revelam a realização de pagamentos aos intérpretes. Aos poucos, com o passar dos anos, estenderam sua atuação à faculdades, de modo que, o aumento do numero de intérpretes e da demanda, provocasse a criação de um departamento nacional.

Estas eram as principais atividades desempenhadas pelos intérpretes vinculados à FENEIS, e é importante destacar que a atuação de intérpretes de língua de sinais se expandia cada vez mais no Brasil, em diferentes religiões, instituições educacionais e associações. A influência de associações e de pessoas surdas organizadas no sentido de favorecer o reconhecimento da língua de sinais pode ser observada por meio de várias ações, dentre elas o encaminhamento ao Ministério da Educação em 1999, do documento “Que educação nós surdos queremos” elaborado no pré-congresso Latino Americano de Educação Bilíngüe para surdos, realizado em Porto Alegre na UFRGS.

Em abril de 2002, foi homologada a Lei federal nº. 10.436, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais como língua oficial das comunidades surdas, o que representou um passo no processo de participação social e a abertura de várias oportunidades respaldadas pela lei. Posteriormente, foi regulamentada pelo decreto 5.626 de dezembro de 2005, que traz recomendações sobre a formação do intérprete de língua de sinais.

Segundo Rosa (2003) e Rossi (2005) diversos profissionais estiveram engajados em atividades de interpretação da língua de sinais, no entanto, a ausência de formação específica representava um impasse. A partir do decreto, a formação do profissional deve ocorrer através de curso de formação para a tradução/interpretação da Libras - Língua Portuguesa ou mediante aprovação em Exame Nacional de Proficiência.

Algumas faculdades e universidades vêm oferecendo cursos de formação, como as Faculdades Estácio de Sá - Rio de Janeiro; Universidade Federal de Santa Catarina; Instituto Moura Lacerda – Ribeirão Preto SP; Universidade Metodista de Piracicaba; dentre outras. A tensão existente em torno de questões relativas à formação de intérpretes de língua de sinais é algo que vem persistindo ao longo dos anos.

No Brasil, atendendo à exigência do decreto 5.626 de dezembro de 2005 entrou em vigência o Exame Nacional de Proficiência (ProLibras), desenvolvido pelo MEC em parceria com a UFSC, que considera habilidades e competências exigidas para tradução e interpretação. O tradutor e intérprete devem apresentar o domínio de habilidades que contemplam tradução e interpretação da língua de sinais para a Língua Portuguesa.

O Prolibras avalia questões relativas à gramática, história, educação, competência linguistica e ética. A avaliação ocorre em dois momentos: o primeiro prova objetiva em Libras que envolve compreensão dos sinais, conhecimentos específicos, legislação e ética profissional; o segundo consiste uma prova prática de tradução e interpretação, com temáticas relacionadas à educação, com dez minutos de duração, para cada participante.

A trajetória

Com o objetivo de conhecer a trajetória do intérprete de língua de sinais realizou-se uma pesquisa de caráter qualitativo, cujos sujeitos foram somente os intérpretes de Libras certificados pelo Exame Nacional de Proficiência para Tradução e Interpretação em nível superior e que atuam predominantemente neste nível de ensino.

A opção pelo estudo de profissionais certificados pelo exame nacional justifica-se pela abrangência e finalidade desse exame. Como já mencionado, o Prolibras é um programa promovido pelo Ministério da Educação em instituições de ensino superior que tem por objetivo a certificação de proficiência em Língua Brasileira de Sinais para uso, ensino e tradução/interpretação.

A construção dos dados foi realizada a partir de um questionário que abordava questões referentes a três eixos temáticos: realidade social, trajetória de formação e condições de trabalho.

A tecnologia da informação foi um recurso utilizado e contou-se com o trabalho de empresa especializada para a elaboração de uma homepage que pudesse unir os possíveis sistemas de criação de páginas na internet à necessidade de reunir num banco de dados as respostas do questionário. Foi utilizado um domínio próprio na internet, com uma página particular, de modo a poder disponibilizar no mesmo endereço o questionário e as informações sobre a pesquisa. Na primeira página o respondente se cadastrava, na segunda respondia ao “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” e na terceira página visualizava o questionário. O bloqueio da senha do respondente impedia que o mesmo realizasse novo cadastro.

Do total de 210 visitantes do blog, 131 responderam ao questionário. Os respondentes foram agrupados em cinco categorias, assim nomeadas: categoria A: pessoas surdas e/ou com deficiência auditiva, representando 5% dos participantes (06 participantes); categoria B: participantes que não se submeteram ao Exame de Proficiência, representando 15% dos participantes (19 participantes); categoria C: participantes que obtiveram a reprovação nos exames aplicados em 2006 e 2007; categoria D: participantes que apresentam certificados de nível médio, representando 28% dos participantes (37 participantes) e categoria E profissionais com certificação de nível superior, representando 22% dos participantes ( 29 sujeitos). Os dados relativos aos sujeitos desta última categoria é os que foram considerados na pesquisa.

Além da aplicação do questionário foram consultados dados estatísticos disponibilizados pela Secretaria de Educação Especial e pelo Censo Superior, os quais permitiram identificar propostas e serviços educacionais disponíveis a pessoas surdas; investimento e aplicação de recursos públicos na área. Também foi possível obter dados demográficos e socioeconômicos.

Análise e discussão dos dados

Na análise inicial dos dados, identificou-se, dentre os visitantes do blog, a atuação de diversos profissionais envolvidos com a interpretação de Libras. A opção por profissionais que atuam na Educação Superior surgiu a princípio, da necessidade de estudar a crescente atuação dos intérpretes em IES.

Segundo os dados do Censo da Educação Superior (2005), estima-se que, do total de matrículas de estudantes com deficiência, 38% correspondam à matrícula de alunos com surdez e/ou deficiência auditiva. A partir dos dados, infere-se que a quantidade de matrículas de pessoas surdas em IES em determinadas regiões do país, suscita o aumento de profissionais que atuam nessa área, de modo a corresponder à demanda.

Paralelamente, pode-se observar, ainda, os dados referentes aos aprovados no ProLibras cujo relatório técnico dos anos 2006 e 2007 indica que, de um total de 1.054 inscritos, foram aprovados 371. Do total de 371 profissionais com certificação em nível superior, 127 (cento e vinte e sete), ou seja, 34% concentram-se na região Sudeste; na região Sul localizam-se 29%, o equivalente a 107 profissionais certificados; na região Centro-oeste, concentram-se 19%, o equivalente a 69 certificados; na região Nordeste 13% o equivalente a 50 aprovados e, na região Norte 5%, o equivalente a 18 aprovados.

A partir dos dados do Censo da Educação Superior (2005) e dos dados do Exame Nacional de Proficiência para Tradução e Interpretação em nível superior referentes aos anos 2006 e 2007, presume-se que a concentração de profissionais nas regiões sudeste e sul ocorram devido ao índice das matrículas de alunos surdos em IES nessas regiões que influenciaram a atuação dos intérpretes, pois se constatou que de 6.328 matrículas de alunos com deficiência em IES, 49% estão na região sudeste e 24% na região sul.

Um olhar a partir da trajetória

Como foi mencionado anteriormente, um questionário com três eixos temáticos foi disponibilizado na homepage. Das 41 questões, nove solicitavam aos participantes informações referentes ao eixo trajetória de formação: escolarização, modalidade de ensino médio, nível de formação acadêmica e envolvimento em atividades de pesquisa. Compõem ainda esse núcleo de análise, os dados referentes ao engajamento dos intérpretes em movimentos sociais das comunidades surdas. É sobre a análise dos dados que se referem à trajetória da formação do intérprete que se abordará a seguir.

A análise realizada sobre a formação dos profissionais, fundamentou-se na visão de trajetória, expressa por Bourdieu (1997), como uma maneira singular de percorrer o espaço social e resultado construído de traços próprios da história individual ou de um grupo.

Compõe esse núcleo de análise, os dados referentes ao engajamento dos intérpretes em movimentos sociais das comunidades surdas, a escolarização e formação acadêmica, o conhecimento de línguas, como também, o envolvimento em atividades de pesquisa.

Engajamento em movimentos sociais: Segundo Bourdieu (1997), o falante de uma língua está inserido em um campo, sendo este reconhecido como uma forma de organização social que apresenta dois aspectos centrais: a) uma configuração de papéis sociais, de posições dos agentes e de estruturas às quais estas posições se ajustam; b) o processo histórico no interior do qual estas posições são efetivamente assumidas, ocupadas pelos agentes (individuais ou coletivos).

Nesse campo, tornam-se presentes estratégias de ação, de vida que constituem a trajetória daqueles que de um determinado meio participam. Por essa razão, entre as possíveis formas de se refletir sobre a formação, neste estudo, considera-se a formação ocorrida na e durante a vida e o posicionamento social ocupado por pessoas ouvintes que se apropriaram da língua brasileira de sinais e se tornaram intérpretes desta língua.

Na análise dos dados referentes ao envolvimento com pessoas surdas, destaca-se o engajamento dos intérpretes em movimentos sociais da comunidade surda, em associações de surdos e intérpretes por parte de 49% dos participantes da pesquisa. Pode-se observar o gráfico 1 (ver figura 1):

  • O engajamento em movimentos sociais da comunidade surda tem se apresentado como o campo, no qual o intérprete de Libras, ao se inserir, encontra condições para se apropriar da língua de sinais. Esse modo de conceber a língua como uma prática social instiga a reflexão acerca de dois fatores envolvidos na formação social dos tradutores e intérpretes. Há registros de que os primeiros tradutores não obtiveram formação especifica em cursos, mas que passaram a exercer a função devido à necessidade de facilitar a comunicação entre grupos com línguas diferentes entre si, conhecidas pelos tradutores;
  • De modo especifico, a formação de intérprete de Libras ocorreu por um longo período nas próprias Associações e Federações de Surdos, através de oficinas e estudos, como ressalta Quadros (2004); 

Diante das possibilidades existentes, pode-se concluir que a formação do tradutor e intérprete deve corresponder ao exercício de uma atividade profissional e por esta razão não deve ser vista como uma tarefa não cientifica.

Ao mesmo tempo, indaga-se quanto à possibilidade de que a formação social do falante da língua possa compor um núcleo essencial na formação de tradutores e intérpretes de Libras. Além do conhecimento técnico e científico necessários à sua formação profissional, o envolvimento com o campo no qual a comunidade surda está inserida tem se apresentado como um fator de forte influencia em sua formação.

Escolarização: Outro dado pode ser observado, referente à escolarização dos sujeitos da pesquisa. Dentre os participantes, 44% cursaram a educação básica - séries iniciais e no ensino médio - toda e/ou a maior parte do tempo em escola pública, Identifica-se ainda que cerca de 52% dos sujeitos da pesquisa concluíram o ensino médio na rede regular de ensino. Destaca-se que 30% dos sujeitos concluiu o ensino médio profissionalizante do magistério e que 17% concluiu outra formação em nível técnico.

Reconhecer que 30% dos participantes possuem formação específica no magistério pode ser considerado um dado relevante, uma vez que puderam se apropriar de elementos favoráveis à sua formação para atuação em instituições de ensino. Os dados referentes à formação acadêmica revelam que 52% dos sujeitos possuem a titulação de especialista; 26%, mestrado; 21%, graduação somente.

Nenhum dos profissionais se apresentou com a titulação de doutorado. Desse total de profissionais com formação superior, 82% desenvolvem ou desenvolveram em algum período da vida acadêmica, atividades de pesquisa.

Na questão referente ao conhecimento de línguas, 39% dos sujeitos afirma não possuir nenhum conhecimento de inglês e 21%, nenhum conhecimento de espanhol. Cerca de 39% afirma “ler, mas não escrever e nem falar” o espanhol; nenhum dos participantes “lê, escreve e fala bem” no entanto 9% afirmam serem proficientes.

Mediante o dado referente ao conhecimento de línguas, pode-se inferir a possibilidade de que os profissionais com proficiência em inglês e/ou espanhol possuam habilidades que favoreçam a possível atuação como intérprete trilingüe Libras – Português – Inglês ou Libras – Português – Espanhol.

Um dado que desperta curiosidade é o referente ao conhecimento de Libras. Embora todos os profissionais tenham sido aprovados no Exame Nacional de Proficiência para tradução e interpretação em nível superior, existem aqueles que consideram seu conhecimento de Libras muito bom, mas não, proficiente. Entretanto observa-se que nenhum dos sujeitos julga seu conhecimento bom, regular, insuficiente ou nulo.

A análise dos dados referentes ao envolvimento com movimentos sociais, escolarização, formação acadêmica, envolvimento com atividades de pesquisa e conhecimento de línguas, identificam as seguintes características relacionadas à trajetória de formação dos sujeitos da pesquisa:

  • Engajamento em movimentos sociais da comunidade surda;
  • Trajetória escolar na rede pública;
  • Boa parte dos sujeitos possuem formação em nível médio técnico sendo que 30% possuem formação profissionalizante no magistério;
  • Predominância de especialistas, em seguida mestres e graduados com envolvimento em atividades de pesquisa;
  • Alguns profissionais aprovados no ProLibras consideram seu conhecimento de Libras, excelente ou muito bom. O conceito de proficiência é ainda, pouco compreendido inclusive por aqueles que atuam como tradutores e intérpretes;
  • Poucos possuem conhecimento considerado proficiente em língua inglesa e espanhol observando-se a possibilidade de atuação como intérprete trilingüe.
  • Mediante a presença de dados referentes à trajetória de formação, pode-se concluir que o campo de formação social de intérpretes de Libras tem se apresentado a partir de relações estabelecidas pela língua de sinais e pela formação acadêmico-científica.

Considerações finais

As reflexões que a pesquisa apontou estão relacionadas ao processo de implementação de uma política educacional bilíngüe, considerando a presença e atuação do intérprete de Libras.

Pela análise do contexto educacional observa-se que a organização do trabalho pedagógico bilíngüe esbarra, na fragilidade da formação dos profissionais envolvidos, dentre eles, o intérprete de Libras que se caracteriza como um profissional inserido em uma IES sem condições básicas e fundamentais para o desempenho de sua função.

O engajamento em movimentos sociais da comunidade surda pode ser visto como um diferencial entra profissionais que obtiveram a certificação da proficiência, direcionando a compreensão de que a língua é socialmente produzida e que o melhor aprendiz, de uma segunda língua, é aquele que se coloca no mesmo espaço que o usuário nativo.

Diante dessa realidade, os profissionais em exercício, se amparam em conhecimentos apropriados, no decorrer de sua formação humana, a partir de sua disposição social e de seu acesso às produções simbólicas. Esse fato nos direcionada a compreensão de que o Intérprete de Libras que atua na Educação Superior submete-se a uma trajetória de formação que o mantém num nível cultural e social considerável.

Com relação à interpretação, em concordância à Eco (1990 p. 183), “um intérprete, como protagonista ativo da interpretação, está certamente pressuposto no curso de um processo de comunicação (eu digo rosa para alguém e esse alguém compreende que quero dizer flor vermelha).”

Dentre as inúmeras oportunidades, o intérprete de língua de sinais aprende a realizar uma interpretação correspondente a um sistema semântico e a um contexto. Nesse sentido, o estudo de sua trajetória de formação, revela que um dos possíveis desafios às pesquisas futuras seria encontrar meios de favorecer a este profissional, a oportunidade de aprimorar sua metodologia de trabalho, diante da complexidade e variedade de áreas inseridas na educação superior.

Pode-se considerar que um dos meios para a concretização dessas idéias seria a redefinição de políticas públicas, de modo a garantir a escolarização bilíngüe a sujeitos surdos.

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