Introdução
“O que é ser uma pequena criança na escola, numa sala sem som, com um professor que fala, fala e fala, e, então, quando ele vem perto de você, ele espera que você saiba o que ele disse? [...] Ou o professor que pensa que para torná-lo inteligente você deve, primeiro, aprender como falar com sua voz, assim, colocando as mãos no seu rosto por horas e horas sem paciência ou fim, até sair algo indistinto assemelhado ao som?”
Willerd J. Madsen, Surdo, Poeta.
A Comunidade Surda vem demonstrando força, não somente no Ceará, mas no país inteiro, principalmente com a conquista da Lei de n° 10.436, regulamentada pelo Decreto N°5.626, que legitima a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) como língua oficial dos Surdos e que traz consigo vários artifícios para incluir os Surdos na nossa sociedade ouvinte como também para nos incluirmos em sua cultura. Essa conquista é um exemplo de luta e resistência desse grupo de indivíduos, que carrega na sua trajetória grandes perdas e derrotas, estigma e preconceito.
A pesquisa que foi realizada com alguns indivíduos surdos no Ceará teve por objetivo principal resgatar a história da Associação dos Surdos do Ceará – ASCE –, procurando investigar quais foram os principais motivos que levaram à sua fundação; entretanto, para que fosse possível compreender-los, foi preciso conhecer, antes de tudo, a caminhada desse movimento social, suas bases e o enraizamento das suas instituições na sociedade ocidental ao longo da história.
No primeiro momento da pesquisa, a metodologia utilizada foi principalmente a pesquisa bibliográfica: leitura de obras, artigos e revistas que contribuíram para a apreensão dos fatos históricos antecedentes à criação da ASCE, considerados peças fundamentais para a compreensão do presente, tendo em vista que as trajetórias individuais são processos não desvinculados do contexto social.
Esse artigo pretende, então, apresentar esse levantamento histórico inicial, como também alguns fatores que contribuíram para a fundação da Associação dos Surdos do Ceará – ASCE.
1. O indivíduo surdo na sociedade - Breve histórico das primeiras tentativas de inclusão e educação dos surdos na sociedade ocidental
Segundo Rocha (2000), na Antiguidade ocidental, a concepção que as pessoas comuns tinham dos deficientes físicos e mentais era que eles não seriam humanos. Os sinais que esses indivíduos carregavam poderiam ser evidências divinas punitivas ou sinais sobrenaturais. Os estigmatizados (GOFFMAN, 1982), eram vistos pelos gregos como indivíduos que carregavam algo de anormal, afetando seu status moral perante a sociedade. Frizanco e Honora (2009) destacam que o Surdo era desconsiderado humano porque não tinha a capacidade de fala, e quem não conseguia falar não conseguia pensar; o que distinguia o homem dos outros animais era a capacidade de raciocínio; logo, os Surdos não se distinguiam dos animais irracionais.
Esse imaginário sobre a surdez perpassou a Idade Média, com a justificativa cristã de que os Surdos não seriam humanos pelo fato de que todo humano é a imagem e semelhança de Deus, e as pessoas que não se enquadravam nesse critério logo eram marginalizadas. (FRIZANCO e HONORA, 2009, p.19).
No contexto da Idade Média, os nobres, para não dividirem suas heranças com outras famílias, promoviam muitos casamentos entre os próprios familiares e isso provocava aumento no nascimento de pessoas surdas. O problema é que, de acordo com os mandamentos da Igreja Católica, a alma só poderia ser salva se os cristãos passassem pelo sacramento da Confissão, ou seja, comunicar seus pecados aos sacerdotes. Foi a partir da preocupação em tornar os Surdos de famílias nobres efetivamente cristãos – como também confirmar o vínculo entre a Igreja e a Nobreza – que ocorreu a primeira tentativa de educá-los e torná-los indivíduos comunicáveis. (FRIZANCO e HONORA, 2009, p.19).
De acordo com um estudo realizado por Reily (2007), a escolarização dos indivíduos surdos esteve estreitamente ligada à Igreja Católica, pois havia uma tradição ritualista nos mosteiros – o voto do Silêncio – no qual os integrantes evitavam o máximo a comunicação oral, desenvolvendo, então, uma forma de comunicação gestual, que serviu de inspiração para a língua de sinais. O alfabeto gestual foi inicialmente desenvolvido pelo movimento monástico; a maior contribuição desse movimento foi apresentar a idéia de que a comunicação gestual era uma forma válida e eficaz para a comunicação.
Pelo que se tem registro histórico, a partir do século XVI, começaram a surgir os primeiros educadores e pesquisadores na educação de Surdos. Um dos mais importantes pioneiros foi um monge beneditino espanhol, Pedro Ponce de Leon (1520-1584), que ensinava alguns filhos surdos da aristocracia espanhola. Ele envolveu-se com a educação de Surdos com a chegada dos irmãos Francisco e Pedro Fernández y Tovar, filhos de um casamento consangüíneo da nobreza espanhola. Dentro do mosteiro, no contato entre a sinalização caseira dos irmãos e a sinalização dos beneditinos, desenvolveram uma comunicação razoável que permitiu o aprendizado dos Surdos na época. Seu trabalho foi bastante eficaz, o que atraiu o desejo de outros nobres para que tivessem seus filhos surdos educados por ele.
Segundo Reily, outro espanhol, Juan Pablo Bonet (1579 – 1633), é reconhecido como um grande colaborador na educação dos Surdos por publicar uma obra em 1620, referente às metodologias educacionais para os Surdos, Reducción de las letras y arte de enseñar a hablar los mudos, contendo também o primeiro registro desenhado do alfabeto datilológico . Seu contato com Surdos se deu quando começou a trabalhar para a família de Juan de Velasco, sobrinho de Francisco e Pedro Fernández y Tovar, já mencionados anteriormente.
Outros estudiosos que também se interessavam pela educação de Surdos propunham outro método de ensino, a Oralização . Um exemplo é o holandês Van Helmont (1614 – 1699), que defendia a leitura labial e o uso de espelhos para estimular a fala; Johann Conrad Amman (1669-1724), médico e educador alemão, que acreditava que a língua de sinais atrofiava a mente, dificultando o desenvolvimento da fala dos sujeitos surdos.
Ainda na Modernidade, um educador filantrópico francês, o abade Charles – Michel de L’Epée (1712 – 1789) se destacou por ser um dos primeiros a reconhecer a língua de sinais e que através dela os surdos poderiam aprender os ensinamentos cristãos. Ficou conhecido como o “Pai dos Surdos”. Ele se dispôs a ensinar duas irmãs gêmeas surdas, que já possuíam uma forma de comunicação bastante fluente entre si, e “concluiu que deveria aprender a gramática com os sinais de suas alunas para então lapidá-los, desenvolvendo um método para aproximar os sinais à língua francesa.” (REILY, 2007, p.322). A partir de então, defendeu que “a única maneira de chegar ao espírito dos surdos era pela via ‘dos mesmos sinais pelos quais a natureza os inspira’.” (REILY, 2007, p.323).
L’Epée fundou a primeira escola publica no mundo para Surdos em Paris, o Instituto Nacional para Surdos-Mudos, em 1760, às custas das suas aulas em praça pública, para demonstrar como a sua metodologia era eficaz. Escreveu uma obra bastante relevante sobre a educação de Surdos, La véritable manière d’instruire les sourds et muets, confirmée par une longue expérience , em 1794. (FRIZANCO e HONORA, 2009, p.23).
O segundo diretor nomeado no Instituto foi um ex- aluno de L’Epée, Abbé Sicard (1742-1822), e publicou escritos sobre as experiências que havia tido com um aluno surdo, Jean Massieu (1772 – 1846). Posteriormente, com a morte de Sicard, Massieu – que é considerado um dos primeiros professores surdos de que se tem registro – foi o nome mais cotado para ser o sucessor de Sicard no Instituto. Entretanto, outros dois professores quiseram participar da diretoria, Jean-Marc Itard (1774 – 1838) e o Barão Joseph Marie de Gérando, defensores do oralismo. Massieu terminou por não ser o diretor do Instituto e foi afastado, passando a ensinar em outras escolas.
Jean-Marc Itard, médico-cirurgião francês, tornou-se conhecido por iniciar um trabalho com uma criança que foi encontrada perdida, por volta dos 12 anos de idade, e que nunca teria aprendido a falar. Ele buscava compreender as causas da surdez, no entanto, constatou que elas não eram visíveis. Como afirma Moura para realizar seus estudos, ele dissecou cadáveres de Surdos e tentou vários procedimentos: aplicar cargas elétricas no ouvidos de Surdos, usar sanguessugas para provocar sangramentos, furar as membranas timpânicas de alunos (sendo que um deles morreu por esse motivo). (MOURA, 2000, p.25)
O ponto de vista médico de Itard, sob o qual via os Surdos como primitivos e incapazes de desenvolver as emoções e a intelectualidade, ainda perdura nos dias de hoje, fazendo parte dos discursos de educadores e fonoaudiólogos que defendem o método oralista como sendo o único meio de “salvar” os surdos da ignorância. Muitas vezes, também, esse ponto de vista é aceito por desconhecimento dos avanços pedagógicos e lingüísticos em relação aos Surdos. A sociedade ainda desconhece a capacidade intelectual dos indivíduos que nascem com surdez, sendo estes ainda tratados com preconceito e desdém.
Na América, os Estados Unidos se destacou em seus avanços com relação à educação de Surdos. Com muita dificuldade de importar os métodos ingleses de educação, tendo em vista que eles negavam repassar para não perder a exclusividade e a clientela, o método que foi trazido para a América foi o do Instituto de Surdos de Paris, de L’Eppé. Thomas Gallaudet (1787-1851) se interessou pela surdez quando conheceu uma jovem Surda, e teve a idéia de criar uma escola para instruir Surdos. Viajou para a França em 1816, e realizou um estágio no Instituto de Surdos. Seu instrutor, Laurent Clerc (1785-1869), Surdo educado no Instituto, foi contratado por ele para fundarem, em 1817, a primeira escola pública para Surdos dos EUA, a Hartford School.
A Língua de Sinais Francesa foi a primeira língua utilizada no ensino dos Surdos americanos, porém, com o tempo, foi gradualmente sendo modificada pelos alunos americanos, e assim foi se formando a Língua de Sinais Americana, a ASL .
Em 1864, o filho de Thomas Gallaudet, Edward Gallaudet, teve a permissão de fundar a primeira faculdade para Surdos, em Washington, denominada Nacional Deaf-Mute College, atualmente Gallaudet University. Até então, o uso da língua de sinais era fluente, porém a partir da metade do século XIX, começou a ser abolida, provavelmente, pela fase de extremo nacionalismo após a Guerra da Secessão, momento em que o pilar de unificação do país se deteve no uso da língua inglesa; como a ASL não era genuinamente inglesa, a metodologia oralista começou a ser prioritária no ensino de Surdos.
Edward Gallaudet teve grande influência na implantação da metodologia oralista nos EEUU, porém combinada com a língua de sinais. Em um ciclo de viagens pela Europa, ele foi surpreendido pelo fato de ver, em outras escolas, Surdos que conseguiam falar e sinalizar ; então voltou com a idéia de desenvolver, para os Surdos que tivessem condições, um método combinado de treinamento em articulação em leitura orofacial. Em uma Assembléia geral entre os institutos americanos de ensino para Surdos, foi divulgada essa proposta metodológica, sendo bastante bem-vinda pelos educadores. Porém, as proporções que esses treinamentos tomaram acabaram ultrapassando a prioridade, que era o ensino da língua de sinais, o que resultou na exaltação do método oralista nas escolas.
Cada vez mais o método oralista foi tomando o espaço da língua de sinais. Um dos grandes influenciadores do oralismo foi Alexandre Grahan Bell (1847-19922), casado com uma Surda oralizada que detestava estar entre outros Surdos. Ele acreditava que a língua de sinais era um fator que dificultava no esforço do Surdo em aprender a falar. Inventou o telefone tentando criar acessório para Surdos .
No passar dos anos, vários entraves e disputas entre os defensores do oralismo e da língua de sinais levaram algumas entidades a entrarem em decadência, causando uma crise no que diz respeito à educação de Surdo. Um grande marco divisor de águas, e fator que vai influenciar o futuro da educação dos indivíduos Surdos durante muito tempo, foi a realização de um Congresso sobre o ensino de Surdos, em Milão, 1880, para padronizar o melhor método a ser utilizado nos institutos nos demais países. Representantes de vários países – EUA, Canadá, Bélgica, Suécia, França – fizeram parte desse congresso, e entre os congressistas, apenas um era Surdo, que não teve direito de voto.
O método oralista foi defendido e acordado como o modelo ideal a ser utilizado nas instituições. A superioridade da fala em relação aos sinais, e o método oral puro foram as premissas básicas a serem seguidas por todos os institutos de Surdos em vários países. Os indivíduos Surdos atravessaram o século XX com extremas dificuldades de inserção na sociedade, pouca aquisição lingüística e baixíssimo rendimento escolar. A defasagem que o método oralista puro redeu muitos traumas, formação de guetos de Surdos; a troca de informação lingüística só acontecia entre Surdos ou entre ouvintes e Surdos que já estivessem acostumados.
Diante de tantos fracassos, por volta dos anos 60 do século XX, alguns pesquisadores americanos desenvolveram a metodologia Comunicação Total que buscou superar o método ate então vigente. Atualmente, o Bilingüismo é o método mais indicado nas escolas para Surdos.
2. A primeira instituição para surdos no Brasil
A fundação do primeiro instituto no país ocorreu no período do segundo império, com a chegada de um ex-aluno Surdo do Instituto de Paris, Hernest Huet. Sendo apoiado por Dom Pedro II, Huet conseguiu um prédio na cidade do Rio de Janeiro (na época, capital do Brasil) e em 26 de setembro de 1857, fundou o Instituto Imperial dos Surdos-Mudos do Rio de Janeiro, atual Instituto Nacional de Educação dos Surdos – INES. O interesse de fundar um instituto de educação para Surdos seria impulsionado pelo fato de o próprio Dom Pedro II ter um neto Surdo, filho da Princesa Isabel com o conde D’Eu, parcialmente Surdo.
Em 1874, eram atendidos apenas 17 Surdos, dentro de uma realidade de 11.595, conforme dados do Censo de 1872. No ano seguinte da sua fundação, o Instituto dos Surdos-Mudos teve seu funcionamento suspenso por questões de ordem administrativa, retormando suas atividades somente nove anos depois, após a reformulação de seu estatuto.
A língua brasileira de sinais – LIBRAS – começou a se desenvolver nesse período. Com o alfabeto datilológico francês trazido por Hunt, os sinais caseiros já desenvolvidos por Surdos brasileiros foram sendo organizados e readaptados com grande influência da língua de sinais francesa; o latim está para a língua portuguesa assim como a língua de sinais francesa está para a língua de sinais brasileira.
No início, o instituto utilizou a Língua de Sinais, porém, a partir de 1911, passou a adotar o método oralista, obedecendo às ordens do Congresso de Milão que proibia o uso da língua de sinais como método de ensino. Em 1957, por influência da diretoria do instituto, foi proibido qualquer tipo de uso, mesmo informal, da LIBRAS, impedindo até mesmo o contato de alunos mais velhos com os novatos. Mesmo com essa proibição, clandestinamente muitos professores e ex-alunos que freqüentavam bastante o instituto construíram focos de resistência e manutenção da LIBRAS.
Em 1970, com a influência da filosofia da Comunicação Total, e posteriormente do Bilingüismo, a educação de Surdos no Brasil começou novamente a utilizar a LIBRAS como meio de comunicação e ensino-aprendizado dos indivíduos Surdos.
2.1 Os primórdios da educação se surdos no Ceará
A discussão sobre a educação de indivíduos com deficiências em geral surgiu somente entre os anos de 1940 e 1950, a partir de algumas discussões que eram levantadas sobre a juventude cearense. Segundo os estudos de Vanda Leitão (2008) , quando profissionais do Centro de Orientação Juvenil, do Departamento Nacional da Criança vieram ao Ceará, em 1948, perceberam o grande número de alunos deficientes metais, houve o surgimento de algumas movimentações em prol da educação para crianças especiais. O que é importante ressaltar é que o Surdo estava entre essas crianças consideradas doentes mentais, ou seja, o Surdo, quando não isolado do mundo, era classificado e integrado na categoria de “doido”.
No Brasil inteiro, entre as décadas de 1950 a 1960, várias campanhas surgiram, como por exemplo, a APAE – Associação de Pais e amigos dos Excepcionais (com sede em Fortaleza), a CNEC – Campanha Nacional de Educação dos Cegos, e a CESB – Campanha para a Educação dos Surdos Brasileiros, sendo essa a grande influenciadora e sensibilizadora no processo de implantação de políticas públicas para Surdos no Ceará.
A primeira iniciativa governamental em relação aos Surdos foi a criação do Instituto Cearense de Educação de Surdos – ICES . O professor universitário Hamilton Cavalcante de Andrade foi o primeiro diretor do instituto, sendo uma pessoa bastante influente, conquistando mais visibilidade para a fundação do Instituto. Foi, a partir da inauguração, montado um grupo de profissionais especializados em surdez vindos do INES para conduzir um curso para as pessoas que não tinham habilidade em Educação Especial.
A conduta metodológica se deteve no oralismo, considerando os eventos e as decisões tomadas em outros países nesse período histórico. A intenção era fazer o Surdo falar, torná-lo um civil “normal”; porém, os resultados não eram satisfatórios: os alunos surdos reprovavam bastante, geralmente nunca aprendiam a falar, e levavam anos tentando aprender o português, porem sem sucesso. Os instrutores do instituto não percebiam que o método oralista só surtia algum efeito quando o indivíduo possuía algum resquício auditivo; os surdos com ausência total de audição não aprenderiam nunca a falar. O que acabou acontecendo foi o desenvolvimento de uma comunicação, que se baseava nos sinais dos Surdos do Rio de Janeiro (pois alguns alunos do ICES tinham contato com os Surdos do INES). A proibição oficial do uso da LIBRAS não impediu que os Surdos se reunissem às escondidas para tentar desenvolver uma comunicação gestual. Com o crescimento e articulação internar desses grupos de resistência ao oralismo, foi surgindo em todo o país várias associações para Surdos.
É nesse contexto de lutas, estigmatização e resistência, que é fundada a Associação de Surdos do Ceará – ASCE.
3. História da fundação da ASCE, a partir da trajetória dos surdos
A criação da ASCE surgiu da iniciativa de alguns indivíduos Surdos mais experientes que tiveram a oportunidade de conhecer sobre a formação de associações de Surdos no restante do Brasil, e trouxeram para o Estado do Ceará essa idéia. Esses Surdos viram a necessidade de haver um lugar onde fosse possível eles se encontrarem para que pudessem se comunicar utilizando a LIBRAS. Esse foi um dos primeiros e mais importantes objetivos de fundação da ASCE.
Esses indivíduos se estabeleceram entre os demais Surdos como uma espécie de “líderes” no percurso da criação da ASCE. Baseando-se no conceito de Goffman (1982), alguns dos Surdos entrevistados são como os representantes de sua categoria. Suas trajetórias se cruzaram, principalmente, no ICES, escola onde eles eram educados através do método oralista. Alguns Surdos que conheciam a LIBRAS através de viagens para outros estados ensinavam às escondidas alguns sinais para os outros Surdos, e assim eles começaram a estabelecer uma comunicação efetiva.
Pelo fato de escola proibir o uso da LIBRAS no ensino, eles se viam obrigados a se comunicarem discretamente em sinais, e quando eram vistos realizando esse tipo de comunicação, eram repreendidos tantos pelos professores como em casa, entre os familiares. A idéia que se tinha da LIBRAS – e isso é um reflexo histórico, já ressaltado – era que ela “atrofiava” o desenvolvimento da fala dos alunos Surdos, deixando-os preguiçosos para tentarem aprender e a utilizar o português falado e escrito.
A história da fundação da ASCE está intrinsecamente vinculada à biografia de alguns Surdos que serão aqui citados. Esse é um dos achados mais importantes que serve de reflexão para qualquer outro estudo de formação de grupos identitários: é a partir da ação de indivíduos, somando a sua necessidade particular com as necessidades de outros indivíduos em circunstância semelhante a sua, que se é gerado uma situação propícia para o surgimento de um sentimento associativista .
Durante as entrevistas com alguns representes, foram realizadas perguntas sobre os acontecimentos históricos da ASCE: período de fundação, principais idealizadores, as primeiras motivações que envolveram a sua criação, e as dificuldades encontradas durante o processo de legalização da associação. A Diretora Social atual, Aline Maria da Silva, 31 anos, Surda, relatou em LIBRAS alguns principais dados históricos sobre a associação, e que posteriormente, nas entrevistas realizadas com ex-presidentes, puderam ser constatados.
Uma parte da história da ASCE está bastante vinculada à biografia de Zuleica Lemos de Oliveira, Surda, atualmente com aproximadamente 60 anos. Aluna na sua juventude do Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES –, situado no Rio de Janeiro, tomou conhecimento da existência de associações de Surdos antes de voltar ao Ceará. Quando retornou, Zuleica e outra Surda, Silva Helena, decidiram viajar por alguns lugares do país para obterem informações e conseguirem contato com outros Surdos vinculados com associações de outros estados.
No percurso dessa viagem, conheceram a ASMG – Associação dos Surdos de Minas Gerais , e a diretora da época, Maria Regina Forin Tavares Pais, ao saber da carência dos Surdos cearenses, se comprometeu em apoiar e incentivar a fundação de uma associação no Ceará. Segundo o relato de Aline, Regina “sabia da importância de um espaço de interação, de troca e compartilhamento de informação sobre a comunidade surda e sobre a língua de sinais”. Zuleica recebeu de Regina orientação de como criar uma associação, e também as cópias do estatuto e do regimento interno da ASMG, servindo de base para os documentos da ASCE.
Novamente no Ceará, Zuleica e Silvia marcaram uma reunião com todos os Surdos que conheciam; alguns se reuniam freqüentemente na Praça do Ferreira, e outros estudavam no Instituto Cearense de Educação de Surdos – ICES. No sábado seguinte à convocatória, cerca de 30 Surdos, entre jovens e adultos, se reuniram no Instituto, para discutir a proposta de Zuleica e Silvia, de fundar um ambiente em que pudessem se comunicar livremente, e decidirem quais seriam os componentes da diretoria e as principais lideranças. Decidiram que, dentre eles, o primeiro presidente seria Francisco Suderland Mota, um Surdo, e quem fazia o papel de intermediador entre os Surdos e a sociedade ouvinte era o Surdo oralizado Erivelton (atual presidente), realizando as traduções para os Surdos não oralizados, tendo em vista que na época não havia no Ceará nenhum ILS . Alguns Surdos não tinham muito conhecimento da LIBRAS; desenvolviam sinais caseiros, mas com significados entre si. Erivelton, como tinha tido contato com os Surdos do INES, ensinava aos Surdos cearenses os sinais corretos. No processo de idealização e fundação, não havia presença de nenhum ouvinte. Uma das dificuldades enfrentadas nesse período era que a maioria dos Surdos eram jovens e inexperientes, não conheciam a dinâmica burocrática de uma Associação.
A responsabilidade financeira da Associação ficou a cargo de Francisco Suarez Bastos Mota . Ainda sem sede própria, a arrecadação em prol da associação era entregue na residência do tesoureiro, e posteriormente depositada em sua conta pessoal. Porém, surgiu um clima de desconfiança entre os Surdos e Suderland após ele adquirir um automóvel novo na mesma época de arrecadação financeira. Havia rumores de que Suderland havia usado as economias da ASCE (até então em processo de organização) para se beneficiar. Acusado de desvio de verba, Suderland se afastou da associação, e mesmo após a prestação de contas da tesouraria comprovando a inocência de Surderland, este não voltou a participar da associação, levando à associação fechar as portas com apenas 11 meses de existência.
Durante 6 anos, a Associação não realizou nenhuma atividade. Mas isso não significou que os Surdos tivessem desistido de se articularem. O surdo José Nilson Leite Farias e outros Surdos que eram mais articulados tomaram a frente em reabrir a Associação. A arrecadação de verba era uma das maiores dificuldades, que até hoje ainda é um problema para a ASCE. Segundo Everton de Farias Leite , 50 anos, e irmão de José Nilson, o surgimento de outras associações de apoio, como a APADA – Associação de Pais e amigos dos deficientes auditivos do Ceará, facilitou a inserção dos Surdos e a fundação da ASCE. A colaboração de um ouvinte nesse segundo recomeço também foi fundamental na condução dos processos burocráticos. Fernando Melo foi o primeiro intérprete do Ceará, como Everton relata:
[...] de fato na época nem conhecíamos a nomenclatura “intérprete”, dizíamos que era o ouvinte que estava junto com os Surdos, depois que compreendemos que ele (Fernando) era um intérprete e que estava junto nessa parceria. O Fernando foi uma pessoa muito importante para nós, ele lutou muito pela ASCE. (Everton Leite, 50 anos, Surdo, engenheiro).
A persistência dos Surdos em continuar se reunindo foi fundamental para que a idéia não se dispersasse; alguns indivíduos conduziram as discussões e mantiveram os encontros periodicamente. Willer Cysne Prado Vasconcelos , 44anos, relata que, depois que a ASCE fechou, Zuleica ficou bastante triste e decepcionada.
Então José Nilson, Halder Borges e o Francisco Brito, lideranças surdas da época, articularam a reativação da ASCE, já que todos os sábados os Surdos estavam do ICES eles aproveitaram a situação para divulgar a proposta. [...] Os primeiros candidatos a presidência da nova fase da ASCE foram os mesmos lideres que incentivam na promoção da ASCE [...] sendo José Nilton eleito com sua chapa e compôs uma diretoria. (Willer Cysne, 44 anos, Surdo, professor de LIBRAS).
A ASCE recomeçou as suas atividades, promovendo momentos lúdicos, como festas, campeonatos esportivos e desfiles de rainha. A quantidade de Surdos associados foi aumentando, e logo teriam que se mudar de onde estavam para um espaço maior. A antiga sede ficava no Bairro Meireles, próximo à Paróquia de Santa Luzia, em um espaço em que antes tinha sido uma pequena lavanderia. Então, na gestão de Willer Cysne, o processo de mudança do local começou, sendo finalizado na gestão de Nilze Mary:
Maria Aldenora Nogueira era presidente da APADA na época e tínhamos uma boa interação um bom relacionamento. Antes tínhamos uma casa alugada e a manutenção estava ficando complicada [...] não tínhamos nenhuma ajuda institucional ou governamental, nos mantínhamos apenas com as contribuições dos sócios e com os lanches vendidos. E através do contato que a APADA na pessoa da Aldenora tinha com Lúcio Alcântara que na época era Deputado Federal, que conseguimos a sede atual. [...] Ela entrou em contato com alguém da família que entrou em contato com ele e marcamos de conhecer a casa. Na ocasião eu não tinha divulgado nada ainda a comunidade surda, mantinha tudo em segredo. E quando chegamos lá a casa estava em péssimas condições com janelas, instalação elétrica e hidráulica quebradas, suja, o telhado também estava quebrado porque a casa já tinha sido invadida varias vezes por vândalos porque antes a casa estava sem uso. Após analisamos a casa decidimos reformá-la, mas sem contar nada aos surdos e resolvemos tudo conseguimos algumas verbas com os ministérios e finalmente pude divulgar e surpreender a comunidade surda. A notícia foi recebida com muita alegria por todos. [...] Mesmo fora da Presidência, eu continuava lutando para a reforma da ASCE, fazíamos ofícios, arrecadação nas instituições e também entre os próprios surdos, para a compra de material de construção, tinta, telhas, etc. A inauguração de fato se deu em 1996 durante a Gestão da nova presidente (Nilze Mary), na cerimônia de inauguração o Senador Lúcio Alcântara participou de todo o procedimento normal de concessão da casa. [...] A notícia se espalhou por todo o Brasil e fomos parabenizados por essa nossa conquista. (o mesmo)
Desde então, mesmo com as dificuldades financeiras, pois, como já foi dito, a associação é mantida por seus sócios, e muitas vezes, segundo algumas conversas informais, os sócios não pagam em dia, o que acarreta uma despesa na manutenção da casa. Também se requer verba para a realização das atividades periódicas, como por exemplo: festas em datas comemorativas (aniversário da ASCE, dia das mães, natal, etc); torneios esportivos entre as associações do país; desfile para escolha de rainha; assembleias com pautas sobre prestação de contas, projetos de eventos e viagens, dentre outras que surgem com o tempo.
Atualmente, a ASCE está situada na Avenida Bezerra de Menezes, n° 549, no bairro São Gerardo . Os encontros ocorrem aos sábados, a partir das 17h, e a ASCE só fecha quando todos os Surdos vão embora, por volta das 23h.
Conclusão
A Associação é o local em que os Surdos recebem informações através do uso de uma língua própria, compreendida e aprendida por todos os seus integrantes. A vontade de se comunicar e interagir com o seu semelhante ultrapassou as barreiras impostas pelos institutos de ensino, que com a organização e participação desses sujeitos estigmatizados, conseguiram fundar um local referencial para todos os indivíduos que possuem a mesma marca identitária.
Além de servir como local de interação e lazer, no qual o Surdo pode se divertir e se sentir acolhido, percebe-se que essa instituição é uma peça fundamental para construir e solidificar uma nova percepção do seu próprio estigma. Sentindo-se compreendido por outro indivíduo, a sua opinião auto-depreciativa começa a ser revista; o mundo silencioso e incompreensível começa a ser assimilado, as ações e fatos da sociedade passam a fazer sentido, e principalmente, as qualidades e capacidades próprias, antes sufocadas pelo estigma da surdez, passam a ser descobertas pelos indivíduos.
A Associação de Surdos do Ceará tem uma história bastante particular, porém não desvinculada do seu tempo histórico. Através de entraves que perduram a séculos, situações que justificaram a sua criação e manutenção na sociedade estão diretamente ligadas à fatores sócio-históricos.
A própria estigmatização do indivíduo Surdo, que até pouco tempo não possuía nenhuma credibilidade, foi o fator crucial para o surgimento de uma associação que o unisse aos seus semelhantes, e desenvolvesse, através de uma língua própria, uma percepção diferente, mas não inferior, em relação ao mundo e a sociedade.
CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: Métodos qualitativo, quantitativo e misto. 2. ed. Porto Alegre:Artmed, 2007.
FRIZANCO, Mary L. E. HONORA Márcia. Livro ilustrado de Língua Brasileira de Sinais: Desvendando a comunicação usada pelas pessoas com surdez. Ciranda Cultural, 2009.
LEITÃO, Vanda Magalhães. Instituições, Campanhas e Lutas: História da Educação Especial no Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 2008.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
MOURA, Maria Cecília. O Surdo: caminhos para uma nova identidade. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.
REILY, Lucia. O papel da Igreja nos primórdios da educação dos Surdos.Revista brasileira de Educação. Maio-agosto, ano/vol. 12. N.035. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, São Paulo.2007. P.308-326.
ROCHA, Márcia S. O Processo de Inclusão na Percepção do Docente do Ensino Regular e Especial. Monografia apresentada como conclusão do curso de Pós- Graduação em Educação Especial – Área de Deficiência Mental, Universidade Estadual de Londrina. 2000, p. 3-10.