Em Porttugal, nos últimos anos, tal como em muitos outros países, a imposição da via da oralidade ao surdo tem vindo a confrontar-se com uma forte e crescente corrente que, em defesa da gestualidade, assume a afirmação, a construção e a legitimação de uma língua e cultura próprias da comunidade surda. Contudo, esta visão nascente do surdo, enquanto cidadão portador e produtor de uma subcultura tem vindo a afirmar-se com dificuldade. A procura de visibilidade, por um lado, e a resistência à mudança por outro, são os dois pólos de uma relação dialéctica que sustenta a manutenção de uma relação circular entre a necessidade de um estatuto, e a necessidade de afirmação e legitimação desse estatuto enquanto condição para o desenvolvimento de uma dada população.
No nosso país, muito embora possam assinalar-se algumas contrariedades, a situação tem evoluído no sentido apontado. Todavia, em Angola, constata-se uma situação qualitativamente diferente. Propomo-nos desenvolver um trabalho de cooperação assente no estabelecimento de parcerias com duas associações angolanas. Para tal, intenta-se uma pesquisa que permita uma fundamentação sólida desta perspectiva e, simultaneamente, uma intervenção adequada e estruturada ao nível da formação de técnicos, da educação da infância surda, da divulgação das questões da interculturalidade no plano da surdez, e da contribuição para o nascimento de uma associação especialmente vocacionada para os surdos, enquanto comunidade cultural e linguística minoritária.
Deslocando as questões da surdez, da problemática da deficiência para a problemática da cultura e da identidade, este projecto pretende, em linhas gerais, contribuir:
- para uma crescente visibilidade dos surdos na sociedade;
- para a implementação do seu papel como parceiros sociais;
- e para o aprofundamento das raízes de solidariedade e cooperação com outros povos.
Após este traçado geral, gostaríamos de aclarar mais detalhadamente alguns aspectos.
Acerca da investigação sobre a surdez
Com efeito, convém destacar que o prestígio e a supremacia das línguas orais, assente numa herança cultural que tradicionalmente menospreza as sub-culturas, conduz a um relacionamento sociolinguístico complexo, no qual predominam o desconhecimento e a intolerância quanto às diferenças culturais e linguísticas. Grupos culturais específicos, como seja a comunidade surda, encontram-se fortemente estigmatizados por este tipo de atitude (COELH0,1998).
Em Portugal, a progressiva capacidade de afirmação dos surdos conduziu a um conjunto significativo de alterações, patentes no reconhecimento de uma comunidade com uma cultura e uma língua gestual constitucionalmente validada enquanto língua primeira dos surdos, verificando-se uma crescente conformidade de actuação com esses princípios, nomeadamente através do reconhecimento formal dos serviços de intérpretes e de monitores surdos, do ensino da Língua Gestual (LG) nas escolas, e de projectos de inclusão de crianças surdas em unidades bilingues.
Apesar de um longo caminho a percorrer, esta tendência contrasta com a situação em Angola, onde a guerra civil provocou a morte de cerca de 500 mil crianças, e onde outras tantas sobrevivem com doenças ou deficiências diversas, causadas pela guerra, insalubridade ou fome.
Exemplifique-se: a meningite é a principal causa de surdez de crianças em Angola (CAMARA,1998). A situação educativa é extrema. Na capital, 90% dos docentes do ensino básico não possui formação adequada e, no país, 15 mil espaços lectivos funcionam em locais de recurso, alguns debaixo de árvores (MATOS,1998).
O estado angolano reconhece a criança com necessidades educativas especiais e aponta uma via para a sua integração. Mas, as orientações educativas dos responsáveis pela área ·da surdez, presos a concepções tradicionalistas e não permeáveis a orientações e recomendações de diversos organismos internacionais, optam por uma educação oralista dos surdos, apostando no trabalho individual e diferenciado, para o desenvolvimento da percepção auditiva (ALVES, 1998). A única escola para surdos utiliza como formas de comunicação a oralidade, a escrita e a mímica. Declara praticar a leitura lábio-facial como método e apresenta um currículo de opção oralista (OLIVEIRA, 1998). Ignorando 30 anos de investigação sobre as línguas gestuais, o mito oralista como via para a integração dos surdos impera no discurso oficial.
Ora, tal como já defendemos, a posse de uma língua própria leva os surdos a assumirem-se como minoria linguística e cultural (ANDERSSON, 1994). Pode dizer-se que existe um projecto surdo da surdez. A língua gestual anula a deficiência linguística e sensorial e permite aos surdos constituírem uma comunidade e não um desvio da normalidade (SKLIAR, 1997).
A educação é o campo de batalha onde as minorias linguísticas ganham ou perdem os seus direitos (LANE, 1992). Reclamar uma educação bilingue para os surdos significa legitimar o uso das línguas gestuais como línguas de aprendizagem na escola (MASON, 1995), mas inclui também todo o desenvolvimento da pessoa surda numa perspectiva sócio-antropológica (QUADROS, 1997).
Consequentemente, reconhece-se a presença de inúmeros indicadores que justificam a necessidade de uma intervenção, a qual se preconiza seja criadora, no terreno, de condições de auto-sustentabilidade.
Os "porquês" do projecto / As instituições parceiras
No entanto, a concretização dessa necessidade de intervenção tem uma história. Ela advém de um encontro, em Lisboa, entre responsáveis da Associação de Pais para a Educação de Crianças Deficientes Auditivas da (APECDA-Porto) e dois homens angolanos, amputados, dirigentes de duas associações, respectivamente Liga Angolana para Reabilitação de Deficientes (LARDEF) e Associação Nacional de Deficientes de Angola (ANDA). Quando se tem uma história comum, conversa-se de outra maneira, criam-se cumplicidades. Logo ali ficou decidido que haveriam de trabalhar juntos, apoiando as crianças surdas angolanas. (FELÍCIO, 1999).
A APECDA-Porto, constituída em 1979, tem grande experiência de apoio a crianças surdas, e assume a intervenção da e na comunidade. Colabora nos estágios de formandos das escolas superiores de educação, organiza seminários, acções de formação e actividades culturais dirigidas a docentes, a pais e a crianças de outras escolas. Edita a revista COMMUNICARE, dirigida a educadores e estudantes interessados na comunicação humana e outros documentos de informação sobre a surdez, destinados à população em geral. É ainda responsável pelo Projecto de Comunicação Tecnológica para Surdos, o qual levou à criação de uma rede comunicacional entre diversas instituições vocacionadas para o trabalho com surdos, disponibilizando vários meios tecnológicos (computadores e telefones de texto, entre outros), base de desenvolvimento de uma identidade surda interventiva. É responsável, ainda, pela criação e manutenção de um conjunto de estruturas, tais como: Lar de apoio, Clube de jovens, Centro de férias, Centro de estudos, colaboração interinstitucional e participação no Projecto LABOR, aprovado no âmbito da Iniciativa Comunitária Emprego e Desenvolvimento de Recursos Humanos, Eixo-Horizon-Deficientes, o qual constituiu, uma possibilidade de investigação aprofundada no âmbito da problemática da surdez, cujos resultados foram divulgados ao Seminário apresentado em 18/DEZ/97, no Auditório UNESCO, no Porto(CABRAL et al.,1997).
O presente projecto resulta de um esforço comum, no qual tomam parte docentes da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto e, inscreve-se na Linha de Investigação 2 do CIIE - Formação, Identidades e Práticas Profissionais, relacionando-se com a construção das identidades e a diversidade. Desenvolve-se ao nível da intervenção e da produção de conhecimentos no âmbito da formação, das práticas profissionais e da sua implicação na construção de identidades. Cruzam-se, assim, contributos de diversas áreas científicas, nomeadamente no que se refere às questões da diferença e interculturalismo.
A equipa, no seu conjunto, reúne elementos que têm desenvolvido projectos no terreno das identidades culturais, da identidade dos surdos e da formação e educação.
No âmbito das Ciências da Educação o presente projecto tem como objectivos de investigação, a longo prazo, contribuir para:
- aprofundamento teórico das articulações entre identidades culturais e estratégias de formação/intervenção;
- a constituição de um corpo teórico, desenvolvido numa perspectiva epistemológica multi-referencial, no âmbito da cultura do surdo.
Objectivos e descrição
Conforme referimos, o relacionamento com as associações ANDA e LARDEF permitiu constatar a grave situação das crianças surdas e das estruturas de apoio angolanas. Com base nesses pressupostos desencadeou-se este projecto de cooperação, pretendendo-se contribuir para inverter esta situação, potenciando a intervenção de animadores da sociedade angolana, e tendo como objectivos fundamentais de intervenção:
- assegurar a educação de crianças surdas angolanas em Portugal;
- fornecer meios educativos e de reabilitação;
- promover formação de técnicos angolanos;
- desenvolver a formação de parcerias para estimular um trabalho multidisciplinar;
- desenvolver investigação nas áreas da interculturalidade e da linguagem;
- criar uma associação vocacionada para os surdos, enquaoto comunidade cultural e linguística minoritária.
Todo este processo tem vindo a ser monitorado, desde o seu início, pelas avaliações continuadas, e pretende-se, através da investigação, obter dados relevaotes e indicadores da orientação do mesmo, aprofundando os conhecimentos fulcrais para o desenvolvimento global do projecto, e em particular no que diz respeito à formação dos técnicos, ao acompanhamento das crianças surdas em Portugal, e à implementação de uma associação em Angola 'especificamente voltada para a surdez.
No que concerne à formação, técnicos da ANDA e da LARDEF foram convidados a participar, durante uma semana, em janeiro de 1999, no 1º Encontro Interinstitucional e no 2° Seminário Communicare. Este primeiro contacto teve em vista dar a conhecer a realidade portuguesa, no que refere ao apoio aos cidadãos dos grupos desfavorecidos, em particular à surdez.
Desde Setembro de 1999, e até junho de 2000, prepara-se a oferta de dois estágios, com a duração de um ano, para técnicos angolanos com formação média, decorrendo, neste momento, a selecção dos caodidatos. A componente prática exercer-se-á no Centro Sócio-educativo da APECDA no trabalho nas turmas em coadjuvação dos docentes, e em tarefas complementares no Lar de Apoio. A componente teórica consistirá num curso de formação organizado por esta equipa na FPCE-UP (Grupo de Ciências da Educação) e no Centro de Estudos da APECDA, a definir, de acordo com o trajecto académico dos candidatos a admitir. Terão, também, apoio financeiro e social, e ainda alojamento e alimentação. Está, ainda, prevista formação local, em Angola, assegurada por técnicos portugueses, destinada a docentes e técnicos aogolaoos, com a duração de 10 dias, e calendarizada para 2002. Obtido um ritmo satisfatório de contactos, e estabelecidas práticas de diálogo interinstitucional a partir das acções realizadas, prevê-se que um grupo de colaboradores das instituições (ANDA E LARDEF) adquiram competências para trabalharem com crianças surdas, e, a prazo, colaborarem no projecto de instalação de apoio específico a esta deficiência em Angola, em articulação com as suas instituições.
Em curso encontra-se, também, o acolhimento de alunas surdas angolanas, o qual é dirigido a crianças privadas do seu meio familiar em virtude da guerra e condições sociais e irá estender-se a mais duas criaoças, no próximo aoo lectivo. A sua permanência no nosso país inscreve-se na ideia de oferta de condições de educabilidade e oportunidades sociais, numa perspectiva de desenvolvimento, tendo em conta a sua formação pessoal e social, por um lado, e a rentabilização de recursos disponíveis por parte da APECDA.
A APECDA garante o acolhimento em familias portuguesas, com apoio da Equipa de Encaminhamento Familiar da Segurança Social, valorizando a experiência das familias no contacto com surdos. Isto contribui para o reconhecimento e alargamento do sentido de responsabilidade, solidariedade e cooperação com outros povos, e proporcionará a valorização e estimulação destes processos, através da exemplaridade que cada caso represente para o país de origem. Em aberto está a possibilidade de estas crianças tomarem em mãos o seu futuro.
Repercussões
Visa-se participar, pela via do diálogo entre culturas, na reconstrução de uma sociedade mais justa e valorizada através da contribuição para o desenvolvimento dos PALOP, numa história cruzada que se actualiza em gestos de lusofonia. O projecto repercute-se, deste modo, ao nível da valorização da cultura, língua, identidade surda e cooperação.
Como diz GIDDENS (cit. por STOER e CORTESÃO, 1999:98) "A globalização expressa o crescente papel da "acção-à-distância" nas relações sociais humanas. (...) pode ser definida como a intensificação das relações sociais à escala mundial, relações essas que ligam localidades distaotes de tal modo que os acontecimentos locais são moldados por fenómenos que ocorrem a muitos quilómetros de distância e vice-versa."
São, então, previsíveis alterações a nível local das condições de formação e atendimento, uma maior visibilidade social dos surdos enquanto minoria cultural e linguística, o seu entendimento como parceiros sociais, e ainda uma mudança relativamente ao poder reivindicativo, negocial e decisório da comunidade surda.
Difusão de resultados
Espera-se, por um lado, um avanço do conhecimento nos campos da linguagem e da interculturalidade, e nas áreas mais específicas da formação e da surdez; por outro, espera-se desenvolver as práticas educativas com crianças surdas, mobilizando um conjunto de informações e conhecimentos e possibilitando contactos e trocas de saberes experiendais entre as nossas instituições e as angolanas. Do ponto de vista da intervenção, estima-se que a formação de técnicos permita a criação e implementação de instituições congéneres.
Preconiza-se que estes avanços possam construir-se com base na articulação de um conjunto de princípios que se afiguram fundamentais nesta matéria, e pelos quais deverão ser co-responsáveis as diversas instâncias de decisão e negociação, a saber:
Universalidade (respostas para todos adequadas à diversidade);
Globalidade (panóplia de respostas sucessivas e simultâneas, num processo contínuo e evolutivo);
Integração (responsabilização de todos os cidadãos e aplicação de medidas diferenciadas);
Coordenação (articulação de intervenientes e harmonização de medidas);
Equiparação de oportunidades (não existência de discriminações);
Participação (na definição das Políticas);
Informação (esclarecimento permanente e actualizado);
Solidariedade (responsabilização e implicação de toda a sociedade).
A difusão destes resultados far-se-á:
- através da internet;
- por meio da publicação de artigos em revistas nacionais e internacionais;
- com recurso à publicação de um livro situando a problemática e descrevendo e avaliando a experiência;
- através da realização de um Encontro Internacional, onde se apresentará uma mostra desta e de outras experiências similares em outros países e onde se debaterão os grandes temas;
- por via da publicação das Actas do Encontro Internacional.
Acreditamos que a reunião de esforços conducentes à concepção e implementação deste projecto representam um contributo importante no domínio da cooperação com outros povos, e uma iniciativa promotora do desenvolvimento e da autonomização cultural, tornando-se, simultaneamente, num espaço de abertura e caldo de novos projectos.
ALVES, Mateus Cosme Cordeiro (1998). Aspectos Auditivos e da Fala: sobre a integração de deficientes auditivos em Angola. ln Boubacar Carnara (org.), Necessidades Educativas Especiais em Angola. Dakar, Unesco, pp. 79·90.
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CABRAL et ai. (1997)./ntegração Sócio-profissional da Pessoa Surda. Comunicação apresentada ao seminário realizado no âmbito 'do Projecto Labor-Programa Horizon, 18/DEZ. Porto.
CAMARA, Boubacar (1998). Aprender de Mãos Dadas. ln Boubacar Camara (org.), Necessidades Educativas Especiais em Angola. Dakar, Unesco, pp. 5-11.
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OLIVEIRA, Jeany de Jesus Van-Deste (1998). Escola de Deficientes Auditivos e da Fala. ln Boubacar Camara (org.), Necessidades Educativas Especiais em Angola, Dakar: Unesco, pp. 91-93.
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