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Clélia Regina Ramos
Clélia Regina Ramos
Diretora Executiva da Editora Arara Azul
Tradução Cultural: Uma proposta de trabalho para surdos e ouvintes
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Publicado em 2004
Editora Arara Azul, e-Books
Clélia Regina Ramos
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

Eixo central da dissertação e da tese da autora (Faculdade de Letras da UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO), este artigo apresenta a proposta da metodologia TRADUÇÃO CULTURAL, que vem sendo utilizada até hoje em trabalhos de tradução do Português escrito para a Libras/Língua Brasileira de Sinais. Considerando a Libras uma língua ainda em processo de gramaticalização, mas com todas as características e aplicabilidades de qualquer língua humana, a proposta é o envolvimento da comunidade surda em qualquer trabalho de tradução, ou seja, a valorização do trabalho conjunto de pelo menos uma pessoa surda e uma pessoa ouvinte em qualquer trabalho de TRADUÇÃO.

Quando se fala em tradução de uma língua escrita, em sua modalidade literária, para a LIBRAS, que é manifestação de uma língua na modalidade “fala/oral”, há que se pensar sob outros critérios que não aqueles encontrados na bibliografia sobre tradução disponível, que privilegia a tradução escrita/escrita ou oral/oral.

Procurei estudar os textos que serviram de base teórica para minha pesquisa com o olhar fixado no trabalho que realizei em conjunto com uma pessoa surda, Marlene Pereira do Prado, durante três anos, qual seja, a tradução do texto de Lewis Carroll – Alice no país das maravilhas, buscando (e trazendo para discussão) as conexões possíveis e as divergências inevitáveis, tentando com isso construir um pequeno corpus de questionamentos a serem melhor tratados em pesquisas futuras. Sendo esta a primeira tradução desse gênero da qual tenho notícia no Brasil (e, até onde vão meus conhecimentos, no mundo) e que, exatamente por esse motivo, esteve sujeita aos acidentes de percurso previstos em iniciativas pioneiras.

Não acredito, portanto, que os pontos aqui discutidos possam ser considerados como tentativa de elaboração de uma teoria sobre a tradução de textos literários para a LIBRAS, mas sim a reflexão teórica sobre uma tradução específica em condições específicas.

A questão da tradução (ou da interpretação, quando em situação de fala) para os surdos não tem apenas a particulariedade que destacamos em sua denominação - cultural, mas é, em sua fundamentação, também filosófica, até mesmo existencial. A tradução de textos literários para a LIBRAS pode ajudar a satisfazer a necessidade de sua própria compreensão enquanto sujeito bicultural. Por serem minoria lingüística e bicultural, os surdos trazem em sua constituição como seres humanos a possibilidade da compreensão de dois mundos diversos. Compreender filosoficamente e poder comunicar-se com estes dois mundos faz parte de sua constituição como pessoa e como cidadão.

Enquanto o surdo não puder se apropriar adequadamente da cultura ouvinte, isso significando não só exercer plenamente seus direitos de cidadão, mas poder circular livremente por todas as instâncias sociais – o que inclui necessariamente a língua escrita e a tradição literária, ele continuará a ser tutelado por alguém ou por alguma instituição. A mãe, o professor, o intérprete, todos esses personagens exercem funções absolutamente necessárias em momentos específicos da vida do surdo. Mas o surdo só será pleno quando puder estar sozinho em alguns momentos.

A existência de legendas abertas ou ocultas na televisão; filmes nacionais legendados; serviço de intérpretes gratuitos; próteses auditivas gratuitas ou subsidiadas; telecomunicações facilitadas (TS/TDD, fax, pagers, computador, internet); escolas, professores e profissionais qualificados; garantia de vagas na universidade; qualificação profissional e emprego; são tantas as lutas a serem travadas e tão grande o rol de necessidades especiais que um cidadão surdo deve ter satisfeito para que possa exercer plenamente seu papel social, para que ele possa dar conta do seu papel social!

A literatura, a possibilidade de compreender e fazer literatura talvez seja sua possibilidade de exercer a solidão, sua possibilidade de se fazer inteiro, como acredito. E o caminho aqui proposto da realização de traduções culturais talvez seja um atalho bastante facilitador para que se chegue a isso.

A terminologia utilizada tradução cultural não tem a pretensão de ser inédita, nunca antes realizada. Apenas busquei uma expressão que pudesse conceituar com maior precisão a obviedade muitas vezes esquecida do significado intrínseco de uma tradução - ser ela um movimento não só entre línguas mas também entre culturas.

Os mistérios de toda ordem, científicos ou poéticos, que envolvem todos os tipos de tradução, que fazem da análise dessa atividade uma trilha a ser percorrida em floresta de cipós entrelaçados, são as mesmas que fizeram da tradução cultural que realizamos um caminho difícil e tão belo. Na tentativa de avaliar este percurso com um mínimo de segurança, elaboramos uma espécie de roteiro que abrangesse as questões principais já discutidas pelos teóricos da tradução e trazendo-as para o campo da tradução cultural. Vamos ao trabalho, então!

Uma das premissas teóricas das quais se partiu - o biculturalismo da comunidade surda, ainda não é regra geral na comunidade surda brasileira. Ainda são poucos os surdos que buscam, ou melhor dizendo, têm condições de exercer seu potencial bilíngüe e bicultural. De um passado muito próximo temos toda uma geração de surdos que perseguiram (por influência social e educacional) o modelo ouvinte: oralização, busca de valores da individualidade do ser humano e não da coletividade surda, isolamento, negação da LIBRAS.

Recentemente, com as mudanças proporcionadas pelo novo status da Língua de Sinais, com a fundação, em 1987 da FENEIS, e outras conquistas nessa direção, um pequeno grupo de surdos bastante politizados e combativos vem defendendo a cultura surda enquanto valor único e imprescindível à formação do cidadão surdo.

Após séculos de opressão social e cultural, a comunidade surda busca sua auto-afirmação através da valorização daquilo que eles denominam cultura surda, qual seja, qualquer manifestação cultural efetivada por surdos em LIBRAS.

Como a maioria dos indivíduos componentes dessa parcela politizada vivencia o lado oposto do chamado modelo oralista, ou seja, valorização do uso da LIBRAS, grupo de amigos surdos, preferência por locais de trabalho no qual não há necessidade de utilização do português, normalmente o que acontece nesse processo é que a língua oral (falada e escrita), um dos pilares de sustentação do modelo negado, e a literatura produzida pela humanidade até hoje passa a ser também, de certa forma, objeto de repúdio.

Especificamente com relação à questão da língua escrita e literatura, o que interessa no momento, os motivos da recusa podem ser avaliados no estabelecimento de outro paralelo entre o momento atual que a comunidade brasileira passa e os primórdios do fim do colonialismo político até a entrada no século XX.

O diálogo que Roberto Corrêa dos Santos (O Político e o Psicológico, estágios da cultura) estabelece com Silviano Santiago ( in Idéias- JB- 9-9-90, “Oswald de Andrade ou : o elogio da tolerância racial”) acerca do projeto literário/cultural do romantismo nos informa que o mesmo pressupunha uma essência do ser brasileiro, nossa verdadeira alma, ligada às nossas origens indígenas, ao primeiro habitante (origem), ao dono da terra. Assim, para podermos alcançar a almejada independência cultural da colonização européia, teríamos que retomar integralmente nossas raízes (origem) e concentrar nossos esforços em trazê-las para superfície, ou seja, na terminologia de Corrêa dos Santos, exteriorizar nosso interior. Só assim teríamos a força necessária para recusar o exterior com o qual até então nos reconhecíamos. Para o projeto romântico, o externo seria o falso e o interno o verdadeiro.

Já o modernismo, mais especificamente o da segunda fase (anos 30), o modernismo do manifesto antropofágico capitaneado por Oswald de Andrade, propõe um sentido inverso: deglutir, devorar tudo que é estrangeiro, moderno, trazer para o nosso interior o exterior. Outro ponto da análise de Corrêa dos Santos, que vê a consideração das culturas negra e indígena também como exteriores, faz com que a proposta encerre um duplo avanço, já que não considera um interior prévio, nenhuma essência anterior.

Porém, tanto para os românticos como para os modernistas, a questão da constituição e afirmação de uma identidade nacional estavam ainda no centro das suas questões. De um “achado crítico” de Silviano Santiago (palavras de Roberto Corrêa), parte o segundo autor para discutir a questão da nacionalidade sob o ponto de vista dos países desenvolvidos.

“Naqueles, a nacionalidade é tratada no pólo, senão tranqüilo pelo menos assumido, das diferenças. Diferenças que se batem por vezes, que se harmonizam mais adiante, que se suplementam, mas não se confundem.” ( p. 100)

Nós, os dependentes, os subjugados, os inferiores, precisamos antes encontrar o modelo (que pressupõe um todo ali representado) para, por um processo de comparação exaustiva, copiá-lo ou destruí-lo. “Para nós, a identidade é ainda de natureza psicológica, diz respeito à adolescência da cultura, problemas de afirmação, conflito de paternidade; ainda pode ser explicada pelo texto “romance familiar” de Freud: pais, filhos, independência, minoridade, essência própria, afirmação, rebeldia, procura de resposta desesperada para a pergunta quem sou, confusão e mistura com o outro; ordem por demais imaginária.” (p.100/01)

Roberto Corrêa remete a Nietzsche, que na segunda das “Considerações Extemporâneas” afirma serem exatamente a fraqueza e a doença de um homem ou de uma nação essa oposição entre um interior que nada reflete de um exterior, que por sua vez não tem correspondência alguma com seu interior. Quando nós (homens ou culturas) estivermos tão fortes (prontos) e pudermos ser apenas exterior, forma, sem a busca tola da essência, da origem, cada vez mais poderemos ser inteiros.

Mas a proposição nietzscheana nos parece também, ao caracterizar o surgimento do homem moderno como o do momento em que a cisão entre o dentro e o fora se dá, em oposição aos povos antigos, de certa forma romântica, pressupondo uma origem/essência íntegra. Pressupondo um modelo.

Evidentemente, quando Nietzche afirma a não pertinência de se atribuir aos gregos uma cultura autóctone, mas sim um permanente processo de assimilação de cultura “viva” de todos os povos com os quais eles mantinham contato, o filósofo atribui ao seu pensamento o movimento, palavra opositiva a modelo.

Pensando então no momento cultural em que se encontra a comunidade surda brasileira (urbana, sendo a carioca a que mais conheço), poderíamos traçar um paralelo com as considerações discutidas até aqui.

Podemos perceber que a questão central, aquela que tem o poder de aglutinação, é também a da identidade. Se durante muito tempo os surdos se esforçaram para parecer/ser como os ouvintes (oralização a qualquer preço, surdez negada, não formação de grupos de amigos de surdos), a partir do momento em que a língua de sinais passa a ser “reconhecida” como uma língua e aceita pelos ouvintes, há uma reviravolta em seu comportamento e surge o que denominamos por falta de melhor expressão “orgulho surdo”.

Como já foi apontado por Roberto Corrêa, o estágio psicológico de afirmação de identidade imita ou rejeita o modelo.

Mas o que notamos como muito interessante nesse paralelo traçado é que do romantismo para o modernismo há um tempo histórico marcado, de décadas. No caso do movimento de afirmação da identidade surda (brasileira, urbana..., nunca é demais lembrar), não estamos falando em mais de dez anos. Ou seja, há dez anos atrás nem se pensava em discutir que um surdo pudesse ter a língua de sinais como L1 (primeira língua) ou que pudesse rejeitar por si só o modelo ouvinte e ser ainda bem-sucedido.

Passaram os surdos rapidamente de um estágio ‘infantil”, submisso, sem visão histórica, para um “adolescente”, romântico, contestador de valores.

A existência de um estudo como o que proponho, sem nenhuma pretensão de ser modelar, demonstra a condição da comunidade surda de a partir de agora assumir como sua também a cultura ouvinte e dela participar em condições de igualdade, o que os levaria a passar por cima do paralelo com o movimento modernista, diretamente ao momento de “exteriorização do exterior” proposto por Corrêa dos Santos.

Poderia a literatura, representante da “alta cultura”, ser a lança nietzcheana atirada para o alto e mais alto ainda? Acredito que sim.

Tradutibilidade

De que princípio parte a idéia da tradução cultural? Tudo pode ser traduzido, ou, em função da própria natureza da linguagem, nada se traduz? Segundo Paes (1990:13), “os partidários dessa teoria têm apontado com razão que as palavras isoladas não têm sentido em si mesmas: a sua significação é determinada, de cada vez, pelo respectivo contexto. Por contexto, entende-se a frase ou o trecho em que a palavra se encontra no momento, tornados entendíveis por um conjunto de centenas de outras frases lidas ou ouvidas anteriormente pelo ouvinte ou leitor, e que subsistem no fundo de sua consciência”.

Quando se fala em duas línguas/culturas estabelecidas e reconhecidas, com indivíduos capazes de realizar com eficiência o trânsito entre esses dois quase “universos”, já existe o impasse sugerido pela posição acima exposta. É evidente que há uma certa impossibilidade de se traduzir, ao imaginarmos também um ponto a ponto perfeito.

Partimos de um conceito de língua que não separa língua e cultura. Exatamente por isso nos abre a possibilidade de tudo se traduzir. Reescrever, em última instância.

Em relação à Língua de Sinais poder ser língua-alvo de uma tradução, uma das questões da pesquisa que levei adiante foi justamente demonstrar a possibilidade de se efetivar um trabalho de tradução textual de uma obra literária, não apenas um recontar de história, mas uma criação autêntica de tradução.

No Brasil existem estudos sobre as Línguas de Sinais, sua importância para a educação dos surdos, as conseqüências psicológicas da recusa da LIBRAS e outros tantos trabalhos acadêmicos. Muitos e muitos trabalhos práticos também vêm sendo realizados por educadores, fonoaudiólogos, psicopedagogos espalhados por todo o Brasil, buscando cada vez mais inserir a Língua de Sinais na vida das comunidades surdas.

Porém, não existem ainda manifestações desse “pensar” em LIBRAS livres do jugo colonialista do ouvinte. Uma das falas mais emocionantes nos discursos acadêmicos e/ou políticos em defesa da LIBRAS é que a Língua de Sinais, enquanto língua natural, pode discursar filosoficamente, poetar, ironizar. Mas a realização desse discurso ainda não tem seu registro disponível organizadamente. Não existem centros de cultura surda, nem videotecas para o arquivamento dessas manifestações. Fala-se sobre a LIBRAS e sua potencialidade, mas a LIBRAS, realizada pelos surdos, não está disponível para consulta…

Existe no Rio de Janeiro um surdo (Nelson Pimenta) que lançou em 1999 um trabalho denominado Literatura em LSB: poesia, fábula, histórias infantis em vídeo, com produção e direção de profissionais americanos (o vídeo foi realizado nos Estados Unidos, onde o ator/criador participou de cursos de teatro e outros em várias ocasiões). A influência da cultura surda americana é facilmente notada, até mesmo no título do trabalho, que utiliza a terminologia LSB (Língua Brasileira de Sinais), seguindo os padrões “internacionais” , em oposição à denominação tupiniquim LIBRAS. Essa forte influência, evidentemente, não invalida ou deprecia o trabalho do surdo brasileiro, mas o aproxima sobremaneira de uma releitura de outro tipo de colonialismo... Mas essa discussão não nos interessa no momento.

A situação dos surdos brasileiros enquanto minoria lingüístico-cultural hoje pode ser resumida em sua luta para colocar a LIBRAS no currículo das escolas para surdos, para ter sua língua reconhecida.

O exercício da tradução pode acontecer de inúmeras maneiras, evidentemente. Uma primeira diferenciação que deve ser discutida seria a oposição entre a tradução literal e a tradução “livre”.

Um dos maiores teóricos sobre tradução no Brasil, Paulo Rónai (1987), defensor das traduções literais, aponta para a possibilidade de uma tradução “ótima”, com a utilização do trabalho vários tradutores em conjunto, ou com especialização/aprofundamento no tema ou autor a ser traduzido. No fundo dessa proposta está a busca da perfeição, do conceito de pureza, do original, do datado, do assinado.

Do outro lado da trincheira estariam a chamadas “belles infidèles” francesas, que dominaram até o final do século passado. Traduções adaptadas ao gosto nacional, que muitas vezes corriam o risco de se transformar em narrativas e não traduções propriamente ditas. O tradutor passa a ser co-autor efetivo do texto, muitas vezes funcionando também como censor.

O conceito de tradução cultural por si só rejeita o papel da origem enquanto valor, já que pressupõe uma estrada de duas mãos em fluxo constante. Assim, a possibilidade de interferência do tradutor existe e é esperada.

No caso dessa tradução realizada, por exemplo, quando Alice dentro do túnel ouve os passos apressados (pisadinhas) do Coelho se aproximando, a sugestão de Marlene foi a visualização da sombra das orelhas Coelho Branco, tremendo de nervoso. A opção de Marlene foi “ensurdecer” Alice e seus companheiros pelo texto afora. Em sua mente, mesmo quando isso não transparece, a história de Alice é uma história de um mundo surdo, do seu mundo surdo. Mas também de um mundo de uma mulher carioca, etc, etc.

Ainda no início do texto, Alice discute consigo mesma sobre a questão da latitude e longitude, referindo-se à Inglaterra e Nova Zelândia. Marlene optou por falar sobre o Brasil e o Japão. E quando Alice descreve o sabor do líquido delicioso que a garrafa mágica continha (“um tipo de mistura de torta de cereja, creme de ovos, leite e açúcar, abacaxi, peru assado, toffy e torradas quentes”), Marlene optou por traduzir por uma mistura de bolo de chocolate, bife e coca-cola.

Por que não? Nessa tradução absolutamente datada, pelos motivos que já esmiucei, o texto se constituiu da maneira que relato. Em outra tradução, em outro momento, quem sabe? Não desejarão os surdos, talvez, uma tradução o mais fiel possível ao autor? Talvez não venha a ser uma opção dos surdos o conhecimento profundo de outras culturas?

É evidente que ao se dar continuidade ao projeto de traduções culturais, quando da formação de uma equipe de profissionais para dar conta de uma pequena biblioteca de clássicos da literatura universal em LIBRAS, por exemplo, outras variantes entrarão em cena. O que realizamos nesse Alice no país das maravilhas foi uma experiência laboratorial, nunca é demais repetir.

O tradutor tem uma responsabilidade bastante grande, sua formação bilíngüe e bicultural é imprescindível, seu nível educacional deve ser o suficiente para dar conta da maioria das questões que são tocadas em qualquer tipo de literatura. Isso é inegável e não estou aqui defendendo que a tradução cultural permaneça sendo realizada da maneira que esta foi produzida. Porém, acredito que ela deverá ser conduzida primordialmente pelos surdos envolvidos, e como ela se desenvolverá não tenho condições de avaliar por hora.

A seguir, apresento alguns aspectos observados na tradução em questão, que julgo importante registrar para que possamos discuti-las a avaliá-las.

A pretensão de fazer a leitura de um texto em língua estrangeira, produto (de uma experiência laboratorial, nunca é demais repetir) de uma cultura quase que impossível de se mergulhar inteiramente, apresentou-se para mim muito mais, e quase só, como propaganda, divulgação das potencialidades dessa cultura, abertura de caminhos para futuros projetos, do que realização efetiva.

Serão os surdos, apenas eles, os responsáveis por uma análise realmente significativa dos resultados de um tipo de trabalho como esse. Acredito, porém, que algumas das questões que discutiremos poderão ser úteis em outras manifestações culturais, ainda que por um bom tempo com a inevitável presença de ouvintes fazendo a “ponte” com o saber constituído.

Algumas das aproximações, afastamentos e sobreposições possíveis entre uma língua oral e uma língua gestual/visual,estarão aqui apontadas, e, nesse sentido, acredito também que o presente artigo tenha alguma importância.

Minhas reflexões sobre o processo político/ideológico que envolveu o trabalho como um todo, desde o mestrado, mesmo que entrelaçadas intrincadamente com as outras questões, penso que também podem servir para futuros estudos ou reflexões.

Como traduzimos o texto

  • O texto-fonte utilizado foi a tradução realizada por mim na dissertação de mestrado a partir de uma edição fac-similar original de 1857.
  • Ficou claro entre as duas pesquisadoras que, mesmo sendo eu a representante do saber institucional, era a tradutora surda a responsável pelas decisões finais com relação ao texto em LIBRAS. No início da pesquisa a nossa insegurança quanto ao desenvolvimento e continuidade da mesma, quanto ao nível de “erros e acertos”, prazos a cumprir, estabelecimento de confiança mútua, foi sendo aos poucos substituída por uma liberdade total para encaminhar seu trabalho individual e nosso trabalho em conjunto com tranqüilidade e segurança.

Ideologias em rede e metodologia de trabalho

A questão teoria X prática discutida por Foucault e Deleuze em 1972 (“Os intelectuais e o poder” in Foucault:1995, p. 69/78) pode servir de base para a primeira discussão sobre a pertinência de um texto ser traduzido em conjunto por uma ouvinte (que propõe o trabalho) e uma surda (que é inserida no projeto com o mesmo já delineado), da literatura escrita para a LIBRAS.

É passível de questionamento o fato que, ao mesmo tempo que defendo a cultura surda e todos os valores a ela associados em oposição à supremacia ouvinte, proponho uma “aceitação” do patrimônio cultural da humanidade ouvinte pela comunidade surda. Também o fato de o trabalho ter acontecido dentro dos muros da universidade, templo indiscutível da ciência burguesa, pode ser encarado como fato contraditório.

Acredito que estão aí delineadas exatamente as linhas mestras das proposta: ideologia exposta conduzindo ao desvelamento ideológico.

Foucault inicia em 1961 um trabalho de análise teórica sobre o asilo psiquiátrico no século XIX e parte para a organização do G.P.I. (Grupo de Informação Prisões), buscando criar condições para que os presos falassem por si mesmos. Deleuze, no texto citado, analisa o processo que leva à construção da prática não como uma conseqüência direta da elaboração de uma teoria sobre a reclusão, nem aplicação de propostas, tampouco projeto de reforma. Para ele o que se deu foi um sistema de revezamentos em um conjunto, uma multiplicidade de componentes teóricos e práticos ao mesmo tempo.

Como relata Deleuze, o intelectual não mais precisa ser a consciência representante ou representativa. “Aqueles que agem e lutam deixaram de ser representados, seja por um partido ou sindicato que se arrogaria o direito de ser a consciência deles. Quem fala e age? Sempre uma multiciplidade, mesmo que seja na pessoa que fala e age. Nós somos todos pequenos grupos. Não existe mais representação, só existe ação: ação de teoria, ação de prática em relações de revezamento ou de rede.”

Entendo, assim, que nossa pesquisa aciona mecanismos idênticos, afastando a figura do intelectual teórico que planeja, por exemplo, uma ação social a partir de suas premissas tidas como “verdadeiras”, aplica seus modelos e retorna ao gabinete para analisá-la. A tradução cultural é uma proposta em movimento, que só se realiza quando em movimento.

Foucault (1995: p. 6/9) discute as noções VERDADE e IDEOLOGIA, temas que sempre estiveram no centro do que se convencionou chamar de educação de surdos. Falar em ideologia, para o autor, pressupõe a existência de uma verdade , conceito ao qual ela (a ideologia) se oporia.

Mas a utilização banalizada desses conceitos funcionam de maneira inversa na aparência, pois a cada nova metodologia que surge para a “integração”, “reabilitação”, “educação” dos surdos, aparece uma nova verdade, considerada como a resposta não-ideológica (verdadeira!) à problemática considerada.

Trabalhamos com o possível permitido pela estrutura universitária, mas trazendo para a universidade o surdo não mais como informante, e sim como pesquisador. Ponto básico para uma postura realmente inédita. Não só em termos de estudos de surdez, mas em relação ao próprio sistema de saber instituído.

O percurso pessoal e profissional de Marlene Pereira do Prado nesses anos de trabalho conjunto demonstra que nossa pesquisa funcionou como uma espécie de seminário, onde atuei como um elemento direcionador, reconhecidamente mais experiente, mas dela partindo as novas formulações, os acréscimos e questionamentos.

Marlene trouxe seu conhecimento e sua história de pessoa surda, e percebeu que o mundo da literatura que aparecia diante dos seus olhos penetrava de maneira diversa de tudo com que ela já tivera contato. Suas reações e comentários, assim como a sua própria produção da tradução, revelaram um vigor e um frescor inéditos.

Retomando mais uma vez o diálogo Foucault/Deleuze, encontramos a afirmação que “Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou simplesmente suas questões, fossem ouvidos em uma escola maternal, isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino. Na verdade, esse sistema em que vivemos nada pode suportar, daí sua fragilidade radical em cada ponto, ao mesmo tempo que sua força global de repressão.” (Foucault:1995, p. 72)

O que percebo, durante esses anos que venho participando de reuniões, palestras, seminários e congressos sobre a educação de surdos (onde ainda a maioria é de ouvintes), é que os profissionais apresentam suas propostas sempre embasados em uma teoria “verdadeira”, “inovadora”, sofisticada e que busca obter os mesmos resultados: integrar o surdo ao sistema escolar e social de maneira a obter resultados semelhantes aos obtidos com os ouvintes. Normalizar é a meta.

Cultura surda vira sinônimo a teatrinho de fim de ano (cujo tema, se escolhido pelos alunos, é sempre a opressão sofrida, os professores preconceituosos, etc.), no qual, supostamente, o surdo mostra seu “eu”.

O “conteúdo”, democraticamente exposto nos currículos oficiais (para todos os brasileirinhos, igualmente), deve ser o objetivo final a atingir. Ali deverão estar concentrados os esforços de surdos alunos e seus professores. Com teatro ou sem teatro, com a presença ou ausência de adultos surdos na escola, essas são questões secundárias. O que temos até agora é a necessidade de se cumprirem os conteúdos oficialmente recomendados e apresentar resultados compatíveis aos esperados pelos órgãos de avaliação. Surdos que tenham alguma habilidade especial e passível de ser demonstrada em público, melhor ainda…

Roberto Machado lembra, na Introdução do Microfísica do Poder (p.XVI) que não se explica inteiramente o poder constituído quando se procura caracterizá-lo por sua função repressiva. “O que interessa basicamente não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. Objetivo ao mesmo tempo econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dandolhes uma utilidade econômica máxima; diminuição da sua capacidade (…)”.

Assim, interessa ao poder constituído deixar que os surdos se organizem social e politicamente até um certo nível, tirando este “peso dos ombros” da sociedade.

A questão do emprego, por exemplo: enquanto os surdos continuarem a ser apenas digitadores eficientes, gráficos concentrados em ambientes barulhentos, faxineiras limpas e organizadas, “o melhor funcionário” da fábrica, a mim parece que o legado para a geração futura de surdos não será muito significativo.

E é impossível, mesmo com leis que garantam a aprovação de um percentual de surdos em concursos públicos, ou a contratação de surdos por empresas com mais de 100 empregados, ou qualquer outro instrumento de defesa dos seus direitos, que o surdo sem real habilitação educacional chegue a exercer qualquer outra atividade que não as velhas conhecidas.

Apenas a partir do momento que os surdos se apropriarem dos meios de produção das estruturas do poder em todos os níveis, isso incluindo, é claro, a escrita, só então poderão partir para sua autodeterminação. Não desconheço que tudo acontece em um processo, já em andamento em alguns setores da vida social e política.

A proposta de tradução cultural que Marlene e eu realizamos tratou-se de um trabalho conjunto de tradução de um texto literário - sintagma que tem um valor de superioridade em oposição ao sintagma LIBRAS (fala) na qual aquela que é ligada ao sintagma superior tem uma posição também de superioridade intelectual.

Por ficar claro que o resultado (a tradução filmada, a análise, a tese de doutoramento) só pôde ser obtido a partir da participação efetiva daquela que estaria na posição inferior, temos uma situação totalmente diversa de qualquer pesquisa ou projeto pedagógico que terá sempre o pesquisador ou o professor como finalizador, o escrevinhador, o avaliador (aquele que está fora).

Mesmo no espaço do Laboratório de Linguagem e Surdez, quando ativado, onde desenvolvemos grande parte de nossa pesquisa, o surdo continuava funcionando como informante, apesar de politicamente funcionar em pé de igualdade com os pesquisadores ouvintes. Essa questão não pode mais ser negligenciada pelos surdos. Não basta apenas ocupar espaços, há que se interferir nesses espaços.

A proposta de trabalho conjunto entre surdos e ouvintes que apresento, cujo nome tradução cultural tem como premissa uma via de duas mãos com fluxo intenso, necessariamente deve estar sendo posta em cheque pelos seus produtores e, futuramente, por seus leitores.

Não apresento um modelo e sim um texto.

E é esse texto em LIBRAS que coloco à disposição de todos.

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