O Brasil, seguindo uma tendência mundial dos países desenvolvidos, vem realizando nos últimos anos esforços para discutir e regulamentar os direitos das minorias. Entre estas minorias encontram-se as pessoas com deficiência.
No campo educacional, desde 2003 o Ministério da Educação/MEC vem implementando seu Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, que basicamente garante o direito ao acesso de todos brasileiros à escolarização. A partir de 2008, implanta-se a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, com ações que vão desde a formação de gestores e educadores, regulamentação de normas e critérios de acessibilidade para pessoas com deficiência até a aprovação de leis que dão suporte e possibilitam a aprovação de verbas para projetos. Seu embasamento teórico é o mesmo daquele apresentado pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovado pela ONU em 2006 e referendado no Brasil pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, especialmente em seu Artigo 24 (em Anexo).
Não há como negar que estamos diante de um avanço histórico inédito, pois, pela primeira vez há o reconhecimento de que todas as crianças são diferentes e que as escolas e sistemas de educação são os responsáveis por atender às necessidades individuais de todos os educandos – com ou sem necessidades especiais. A idéia em ação é que a pessoa com deficiência não tem que buscar sua “normalização” e que passa a ter sua condição aceita como direito constitucional de cidadão. Em sua fundamentação filosófica, a inclusão não pretende tornar todos iguais, e sim respeitar e valorizar as diferenças linguísticas, culturais e outras de cada um.
As pessoas com surdez apresentam diferentes graus de perda auditiva, indo desde pessoas com surdez leve, passando por aqueles que com auxílio de próteses readquirem a capacidade auditiva e surdos profundos que não conseguem ou não desejam adquirir a língua oral e só se comunicam através da Língua de Sinais. Além disso existem surdos nascidos assim e aqueles que adquirem a surdez: antes ou depois de adquirir a língua oral. Os surdos requererão, portanto, uma atenção especial de qualquer política pública direcionada a “todos”.
A questão da comunicação em um nível superficial e da língua compreendida como ferramenta de formatação do pensamento humano em um nível mais profundo, evidencia a importância da referência cultural que envolve a existência da Libras (e a existência de comunidades surdas organizadas ou não pelo Brasil) como ponto de partida para a implementação dessa política da educação inclusiva de maneira consistente e efetiva. Se assim não for, em função da situação acima descrita, poderá acontecer um retrocesso indesejado na luta por uma sociedade mais justa e da qual façam parte todos os brasileiros com igualdade de oportunidades.
Seguindo os caminhos apontados pela ONU, que durante quatro anos reuniu não só especialistas mas também representantes da sociedade civil em mais de 80 países (incluindo, é claro, o Brasil) para a elaboração do documento final aprovado, é imprescindível que pessoas surdas estejam presentes na discussão e na elaboração dos programas locais para implantação da já aprovada Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
Em função da novidade e das muitas ações paralelas que envolvem esta implementação, ajustes são necessários e esperados. E a presença dos representantes das comunidades surdas, ou, mais diretamente, dos profissionais surdos que atuam nos espaços educacionais (são mais de 500 professores formados pelo Curso Letras Libras no mercado e outro efetivo a se formar em breve, por exemplo) é imprescindível para o sucesso da empreitada.
“Certo é que as línguas de sinais não foram inventadas como recurso educacional ou comunicativo, seja no século XVII ou na década de 1960 quando o linguista americano William Stokoe provou serem elas línguas naturais. As línguas de sinais são manifestações culturais autênticas das comunidades surdas em todo o mundo. A aceitação desse fato, porém, vem seguindo caminhos nem sempre muito coerentes, já que existe efetivamente um impedimento sensorial que os enquadra na categoria de Pessoas com Deficiência, o que resultou durante muito tempo em uma visão que chamamos de ‘médica’ da surdez, em oposição à visão cultural apresentada acima. ‘Fazer o surdo falar’ foi durante muito tempo um programa político/educacional perseguido como se fosse essa a ‘cura’ para qualquer indivíduo que apresente perda auditiva.”(1)
O reconhecimento da identidade cultural das pessoas surdas, reivindicada por seus representantes em todo o mundo, não pode em momento algum ser questionada, ou pior, negada, sob pena de desqualificar a Convenção da ONU, por nós referendada através de Decreto Federal.
Meu ponto de vista
Isso posto, e acredito que estas questões estejam bastante claras para os gestores do MEC, passo a discutir uma falsa oposição, em meu ponto de vista, entre a escola inclusiva e a recentemente chamada “escola bilíngue” que vem sendo defendida por setores ligados à comunidade surda articulada e organizada.
Trabalhei como Assessora de Imprensa e Editora da Revista da FENEIS/Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos entre 1998 e 2002 e lá tive a oportunidade de acompanhar a discussão preliminar entre MEC e FENEIS sobre educação inclusiva e o desenvolvimento de projetos como Interiorizando a Libras (2), que entre 2003 e 2007 capacitou instrutores de Libras por todo o Brasil através da metodologia do livro + DVD Libras em Contexto (de autoria de profissionais surdos e ouvintes ligados à FENEIS).
Já como Gerente Editorial da Editora Arara Azul, vivenciei as reflexões que surdos e ILS/Intérpretes de Língua de Sinais de todo o Brasil em torno da criação do Exame Nacional de Libras, o PROLIBRAS, que teve sua primeira versão em 2006, lembrando que em todas estas ações participaram pesquisadores surdos e ouvintes profundamente envolvidos com a comunidade surda e com a FENEIS.
O lançamento do Curso de Graduação Letras/Libras, também em 2006, certamente será lembrado por muitos anos como um marco para a formação acadêmica dos surdos brasileiros. E mais uma vez posso afirmar por ter vivenciado de perto (apesar de não ter participado diretamente de sua concepção) que o mesmo contou com a presença de profissionais estreitamente ligados aos movimentos dos surdos.
Desde 2006 também, a Editora Arara Azul vem trabalhando na editoração de materiais didáticos bilíngues Português/Libras, o qual denominamos Livros Digitais, com participação direta de surdos e ouvintes fortemente ligados aos movimentos dos surdos e capacitação em Libras comprovada. Até este ano de 2011 já foram 25 volumes de livros do primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental, distribuídos para alunos surdos de todo o país.
Todas as ações que relatei, e que certamente são apenas algumas das fomentadas pelo MEC, só foram executadas em função do projeto maior, ou seja, a implantação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
A regulamentação da “Lei de Libras” exigindo a formação de professores de Libras para serem os futuros professores da matéria Libras nos cursos de licenciatura de todo o Brasil, dos futuros ILS para atender os surdos nas classes inclusivas, dos materiais bilíngues previstos nas leis aprovadas etc, é que levou o MEC a investir tantos recursos humanos, técnicos, institucionais e financeiros nos projetos acima descritos. Nunca antes a Libras foi tão valorizada e divulgada quanto nos últimos anos em nosso país.
O outro lado da moeda, não tão brilhante, é que a aplicação local (nas escolas, quero dizer) dessa política, muitas vezes vem acompanhada de desinformação, preconceitos (ainda), incapacidade gerencial ou do corpo técnico. Problemas de todos os tipos estão acontecendo por todo o Brasil. Isso é fato e não podemos escondê-los. São muitas as correções de rota que devem ser realizadas…
Porém, como mãe de um filho surdo, hoje com 26 anos, fico satisfeita por saber que nenhuma diretora de escola poderá mais dizer que “infelizmente não temos pessoal preparado para receber seu filho adequadamente”, palavras que ouvi por duas ocasiões, uma no Rio de Janeiro, com meu filho já alfabetizado e indo para a segunda série (atual terceiro ano) e depois em Petrópolis, na passagem para o Ensino Fundamental II (sexto ano). Destaco que as duas escolas são particulares e famosas por sua qualidade de ensino até hoje.
Diretores, professores, funcionários das escolas… agora é obrigação constitucional preparar-se (e isso no caso dos surdos significa aceitar e aprender a Libras e vivenciar a cultura surda) e receber adequadamente as pessoas com deficiência. E é nossa obrigação, NÓS ENQUANTO SOCIEDADE CIVIL, fiscalizar e cobrar para que as coisas funcionem adequadamente. E é função do MEC manter as portas abertas para que possamos ajudá-lo.
Por isso acredito que uma escola bilíngue (ou classe bilíngue, quando for o caso) não se opõe ao projeto de educação inclusiva e sim o reforça e complementa. O Brasil tem mais de 15 mil municípios e seria impossível ter escolas apenas para alunos surdos em cada uma delas. Impossível e incorreto no século XXI, quando sabemos da importância da convivência de uma criança com sua família. Hoje, até mesmo em situações-limite como pais com doenças mentais ou viciados em drogas, os esforços são para que o núcleo familiar seja preservado.
No caso dos surdos, que em todo o mundo são em média de 90% a 95% filhos de ouvintes, não há razão plausível para se retirá-los de suas casas e os colocar em escolas apenas de surdos, nem mesmo com a justificativa que culturalmente estariam melhor resolvidos. Um brasileiro que nasce ou fica surdo pré-linguísticamente deve ser separado de sua família apenas por isso e levado a uma instituição em outra cidade ou em um bairro distante de sua residência e ser privado do convívio com seus irmãos e vizinhos para somente vê-los nos finais de semana? Assim, a escola ou classe bilíngue, que funcione em outro momento escolar (no caso, no chamado contra-turno) poderá suprir algumas das necessidades culturais dos surdos enquanto participantes de sua comunidade surda.
Isso sem esquecer que a Libras pode ser oferecida em TODAS as escolas públicas de nosso país com segunda língua optativa para ouvintes e que TODAS as crianças devem aprender a respeitar e valorizar a Libras e a cultura surda.
Já a escola ou classe bilíngue, desde que funcionando como parte da formação escolar das crianças surdas, pode e deve servir para o incremento das relações humanas e sociais entre os surdos, além de ser a Libras (juntamente com o Português escrito) a língua prioritária de instrução, garantindo aos estudantes o acesso pleno aos conteúdos dos currículos.
Porém, acredito que cultura surda só pode ser verdadeiramente vivenciada e compartilhada pelos surdos em seus espaços próprios: associações de surdos, clubes surdos e outros. Jamais poderá a escola substituir a vivência de uma cultura plena, com velhos e jovens trocando experiências, com a comunidade surda organizando e oferecendo aos surdos os recursos para seu desenvolvimento como pessoa surda.
Vivenciando outras culturas
Em 1968, com onze anos de idade, frequentava o primeiro ano ginasial de escola pública de um bairro da Zona Norte de São Paulo. Naquela época não havia vagas disponíveis para todos os interessados e eram necessários exames de seleção para o ingresso. Existiam os chamados “cursos de admissão” que preparavam as crianças para este primeiro desafio em suas vidas escolares. Muitos, evidentemente, ficavam de fora do sistema escolar já que nesse momento a chamada “universalização do ensino” ainda não fora colocada em prática em nosso país, o que só aconteceu a partir do final dos anos de 1980. Assim, as famílias escolhiam a escola por diversos motivos e não necessariamente por ser perto de suas residências.
Tive muitos colegas de famílias estrangeiras nos sete anos que passei por lá. Já nos primeiros dias de aula identifiquei-me com uma colega nissei, Aiko, filha de sitiantes japoneses que moravam nos limites da cidade, quase em Mairiporã. Um dia Aiko me convidou para conhecer sua “escola” japonesa, onde ela passava as tardes, como vim a saber depois.
Lá Aiko estudava a língua escrita dos seus antepassados, pois em casa falava o japonês com seus pais e irmãos. Aprendia a arte do Ikebana (arranjos florais), a culinária tradicional, e muitas outras coisas ligadas à cultura nipônica.
Lembro que fui convidada em outra ocasião para uma festa, onde experimentei iguarias que hoje são “figurinha fácil” em qualquer cidade brasileira mas que naqueles anos de 1960 foram para mim uma experiência quase que esotérica.
Na época não me interessei pelo fato, mas a “escola” em questão era uma espécie de associação de moradores do bairro, com alto índice de imigrantes japoneses, que mantinham o estabelecimento com recursos próprios.
Havia também duas jovens judias em minha classe, Clara e Cleide, que moravam no então chamado bairro do Bom Retiro (distante também de nossa escola). Nossa amizade foi um pouco mais formal, porém tive a oportunidade de conhecer suas famílias pois fazíamos parte da mesma “equipe” e as inúmeras tarefas extraclasse nos obrigava a ter reuniões semanais em sistema de rodízio. Fiquei sabendo que nos finais de semana elas frequentavam a sinagoga do bairro para aprender o hebraico, que a religião era um elo forte na comunidade, pois quase todos os acontecimentos sociais giravam em torno dela e, que ao terminar o ensino médio, elas iriam moram em um “kibuts” em Israel por um período de dois ou três anos.
Helena era filha de húngaros e além de colega de escola, morava perto de minha casa. Passamos muitas horas juntas pulando corda, nadando na piscina da casa dela (como eu adorava aquela piscina!), fofocando sobre os garotos da sala. Sua mãe preparava às vezes o famoso goulash (prato típico) e eu apreciava a iguaria. Aprendi a cantar algumas músicas em húngaro e fui uma das “damas de honra” em sua festa de debutantes. Não lembro muito bem se a ligação de Helena com a comunidade húngara era através da igreja ou alguma associação, mas sei que existia, pois algumas vezes ela comentou de festas típicas que frequentava nos finais de semana.
Mas a minha maior vivência de uma cultura estrangeira foi a partir dos meus 16 anos. Fui convidada para fazer parte de um novo grupo de Bandeirantes que seria fundado no bairro em que morava. A organizadora, senhora Danuta, era polonesa e sua filha Marta Ana passou a ser por muitos anos, juntamente com outra filha de poloneses, Maria Teresa, minha(s) melhor(es) amiga(s) e companheira(s) de todas as horas.
O laço dessas pessoas com a comunidade da terra natal de seus pais e avós era feita através de uma igreja católica em um bairro do outro lado da cidade, onde havia um enorme salão paroquial usado quase que semanalmente para festas, comemorações, ensaios e apresentações de danças, de músicas típicas. Eram organizados passeios, piqueniques, enfim, havia uma comunidade muito organizada em torno das saudades de uma Polônia que já não existia… pois era época do domínio soviético sobre o país e, talvez, até mesmo por isso a tentativa de manter suas tradições vivas aqui no Brasil.
Havia um grupo de Escoteiros que se reunia na igreja, a maior parte deles rapazes filhos de poloneses e estabeleceu-se uma ligação estreita entre nosso grupinho de Bandeirantes e o deles. Para mim, a possibilidade de vivenciar aquela cultura tão diferente da nossa foi o que mais atraiu e me acrescentou para toda a vida.
Acredito que em função dessas experiências de contato com culturas estrangeiras, desde muito jovem, sinto a certeza que cada um de nós pode ter muitas identidades íntegras e convivendo em perfeita harmonia. Vou mais fundo e penso mesmo que quanto mais nos deixamos influenciar por outras realidades, mais fortalecidos ficamos em nosso eu único.
Muitas vezes que vejo os surdos reunidos em seus espaços próprios, onde são os “donos do pedaço”, lembro exatamente dos momentos que passei com a comunidade polonesa …
Conclusão
Nos últimos anos tenho refletido bastante sobre as questões de identidade e da cultura surda brasileira, em função da convivência com os profissionais surdos e ouvintes envolvidos com a tradução de texto escritos do Português para a Libras, o que me levou a apresentar um artigo ao PACC/PROGRAMA AVANÇADO DE CULTURA CONTEMPORÂNEA DA UFRJ sobre o que denominei de “tensões” na comunidade surda: solidão e desterro seriam duas delas (3).
Resumidamente, o que discuto naquele trabalho é o fato que, mesmo nos relatos de surdos que estudaram em escolas especiais para surdos, a educação jamais ficou ao cargo dos surdos. E mais, a política dessas escolas foi sempre regulada por profissionais ouvintes e que seguiam as “ondas” pedagógicas do momento.
Acredito que a oportunidade para que os surdos possam assumir seu papel de educadores de surdos e aglutinadores de uma verdadeira discussão sobre os rumos futuros dessa educação esteja batendo à nossa porta agora e com força. Cabe aos interessados terem, nesse momento, a capacidade de se apoderarem dessa chance e amadurecerem com tranquilidade as propostas de fortalecimento para dar aos surdos as tão aguardadas oportunidades iguais de educação.
E isso, em meu ponto de vista, só poderá acontecer através do diálogo e não do embate. Através de um pensamento “macro”, digamos assim: pensando o Brasil enquanto este país continental que tem quase seis milhões de surdos espalhados por todo o território. E entender que qualquer política que se aplique será com muitas dificuldades a serem superadas, trabalho incessante e repetidas reformulações. E que precisará sempre de surdos e ouvintes trabalhando conjuntamente por esse objetivo maior que certamente é comum a todos os envolvidos com a Comunidade Surda: a melhoria contínua das condições de vida dos surdos brasileiros.