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Clélia Regina Ramos
Clélia Regina Ramos
Diretora Executiva da Editora Arara Azul
A Atuação da Família/Profissionais/Legislação para o Desenvolvimento/Inclusão da Pessoa Surda
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Publicado em 2004
Editora Arara Azul, e-Books
Clélia Regina Ramos
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

A autora, que atuou como Assessora de Imprensa na FENEIS/FEDERAÇÃO NACIONAL DE EDUCAÇÃO E INTEGRAÇÃO DOS SURDOS entre os anos de 1998 e 2002, apresenta, nesse artigo, a discussão embrionária sobre a implantação da política da INCLUSÃO ESCOLAR pelo Ministério da Educação. Trazendo a visão da comunidade surda, apoiada por autores como Carlos Sanchez e Michel Foucault, é realizada uma rápida apresentação de projetos educacionais já implantados e, como contraponto, a experiência pessoal da autora, que tem um filho surdo em idade escolar.

A palavra INCLUSÃO tem aparecido bastante nos últimos tempos. Seja na mídia, seja nos espaços educacionais, ou nos (poucos) espaços ocupados pelos denominados “portadores de deficiência”. A mim parece que com significados distintos entre si.

Para os Surdos, por exemplo, com os quais convivo há quase dez anos como pesquisadora da Cultura Surda e há três anos como Assessora de Imprensa da FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos), a palavra INCLUSÃO carrega um sentido totalmente negativo, associado com perda de identidade cultural e lingüística. Os Surdos, segundo palavras do presidente nacional da entidade, senhor Antônio Campos de Abreu, “(...) a proposta de inclusão dos Surdos no sistema regular de ensino não se adequa às reais necessidades dos Surdos, além de relegá-los a um status de “não-ouvintes”, transformando-os em pseudofalantes de uma língua que não satisfaz suas necessidades de entendimento.

O que vem ocorrendo é um total desconhecimento da comunidade acadêmica no que se refere à cultura e à língua utilizada pela comunidade surda, desconhecimento que está encabeçado por profissionais que desconsideram a demanda imposta pela Surdez, acarretando com isso conseqüências globais na interação entre Surdos e ouvintes em todos os âmbitos.

Para a FENEIS não existe qualquer concordância a este respeito, uma vez que todos os Surdos dependem de estratégias lingüísticas que realmente satisfaçam sua demanda comunicativa, educacional e interativa. A barreira de comunicação que existe pode ser transposta ao colocar-se o aluno Surdo em um espaço educacional onde professores e colegas ouvintes possam aprender e usar novas formas de interação. Daí, a defesa de uma escola onde existam salas de surdos e salas de ouvintes e que, em momentos diferenciados e planejados, alunos possam interagir, reservando momentos educacionais distintos para as práticas pedagógicas específicas de cada grupo.

Os prejuízos impostos pelas novas metas inclusivas podem acarretar novos traumas na vida dos Surdos brasileiros, proibidos de se comunicarem em sua língua natural desde o século passado, o que vem demonstrando o quadro de empobrecimento cultural e social dos mesmos. A escola para Surdos é uma realidade necessária para a FENEIS, que deseja ver realizado o desejo de que todo o Surdo possa ter um desenvolvimento adequado e compatível com seu potencial de cidadão brasileiro, considerando-se que suas demandas sejam respeitadas.”

Do outro lado da moeda, sob o ponto de vista da sociedade como um todo, que evidentemente inclui o espaço escolar, mas que, por hora, vamos deixar hipoteticamente de lado apenas para levarmos adiante nossa análise, a idéia da INCLUSÃO, em oposição à malfadada palavra SEGREGAÇÃO, é absolutamente favorável, positiva. Quem, no mundo globalizado dos nossos anos 90, tem coragem de, em público ao menos, ser contra a INCLUSÃO? Inclusão das mulheres no mercado de trabalho? Isso nem mais é objeto de discussão, de tão óbvio. Mas na realidade, todos sabem, que somos nós mulheres ainda segregadas nesse mundo do trabalho, com salários abaixo dos salários dos homens, por exemplo. O espaço público brasileiro não mais admite o, agora crime, preconceito racial. Mas olhar ao redor em um Shopping Center da Zona Sul do Rio de Janeiro e olhar ao redor no campo de futebol de qualquer favela carioca....Em um quase não vemos negros, no outro, os brancos são poucos.

Despedir um empregado por ser homossexual, mesmo sendo ele um militar, por exemplo, nem pensar. Agora, se ele contrai o vírus da AIDS...No mínimo ganha uma licença para ficar em casa e não mostrar o estigma da doença.

O que se deduz do que afirmei? Que temos um espaço público real e outro projetado, em implantação, o que seja. Que pode se tornar, que vai se tornar real, mas para isso ainda temos longo caminho a ser percorrido.

Tentemos então entender o porque da rejeição da liderança Surda à INCLUSÃO escolar. Vamos tentar resgatar nesse breve texto, se é que isso é possível, mas tentemos, o processo histórico que desencadeou na existência de escolas especiais para surdos no século XVIII.

Mas sem esquecer, porém, que estaremos traçando um trajeto sob o ponto de vista do outro, do ouvinte (o que fica claro quando percebemos que as poucas fontes existentes relatam a história da educação dos surdos, da sua reabilitação para o mundo ouvinte).

Tarefa impossível seria tentar assumir o papel do surdo.

Porém, como a idéia de tentarmos fazer esse resgate desenvolveu-se a partir da leitura do texto La increible y triste historia de la sordera do professor Carlos Sánchez, ex-assessor do ministro da educação da Venezuela e que em 1992 implantou naquele país uma política educacional bilíngüe para surdos (língua de sinais/língua oral), que por sua vez fundamenta sua pesquisa em textos de Michel Foucault, sentimo-nos à vontade para dialogar com esses autores e aprofundar algumas questões.

Iniciemos esse painel da história da educação dos Surdos com Aristóteles (384-322 a.C.). Ele declara que audição é, de todos os sentidos, aquele que dá a maior contribuição para o conhecimento, já que o discurso só é compreensível porque a fala é composta por palavras, cada uma delas um símbolo racional. Assim, para ele, um cego seria necessariamente mais inteligente que um surdo-mudo.

Lucrécio ( 95-53 a.C.) sentencia “No hay arte possible para instruir al sordo”.

Temos na Bíblia um relato de um milagre de Jesus que “cura” um surdo e este se põe imediatamente a falar. Interessante lembrar que a palavra para designar surdo e mudo é única “kophoi”. Não existe língua possível para eles.

Essa imagem da antiguidade persiste ainda hoje no imaginário popular. O surdo-mudo. Como se a manifestação de uma condição fosse inseparável da outra. Apesar de hoje em dia sabermos que não se nasce “mudo” porque se nasce “surdo” o senso comum mantém o conceito invariável. Ainda o surdo-mudo.

San Juan Beverly, em fins do século VI, relata que ensinou falar um jovem surdo. Mas as poucas menções nessa época a qualquer tipo de “aproximação” com os surdos fica ainda por conta de curas milagrosas ou inexplicáveis. E sempre associadas com a fala.

Em 1198 o papa Inocêncio III autoriza o casamento de um “mudo”, argumentando que “apesar de não poder falar, em sinais pode se manifestar”.

O (re)nascimento das cidades, as viagens colocando povos e culturas em contato parece dar ao surdo sua primeira leitura como grupo lingüístico/cultural. Podemos apontar esse momento como o do “surgimento” das línguas de sinais. A estatística trabalha a favor dos surdos, já que em cada 10 mil habitantes, em média 150 são surdos de todas as idades. É evidente que a movimentação (lembrando que as línguas de sinais são fala e não têm registro escrito) propiciada pelo novo momento histórico irá beneficiar o encontro dos iguais.

É evidente também que eles passam a ser notados. E notados como “diferentes”. Como os bufões, como os anões, como os dementes de toda espécie, os surdos solitários do feudo eram absorvidos como responsabilidade coletiva, assimilados, de uma certa maneira.

Já no renascimento, dentro desse conceito de mobilidade e início da construção de uma identidade surda, eles podem até mesmo incomodar o poder instituído, já que, em grupo, sinalizando, podem parecer estrangeiros (perigosos, maldosos, larápios, da mesma maneira como hoje em dia vemos explodir pelo mundo todo o medo dos imigrantes).

A preocupação com eles leva à necessidade de aproximá-los da “normalidade”. Surge então o primeiro “professor” de surdos da história, o monge espanhol Pedro Ponce de León (1520-1584), da ordem dos beneditinos, a quem se atribui também a invenção do primeiro alfabeto datilológico (alfabeto manual). Ele ensina a três filhos de nobres a escrita e a fala em grego, latim e italiano.

O sucesso do monge, e, é claro, a nova concepção de mundo e de homem renascentista, traz ganhos reais para os surdos. E por toda Europa começam a aparecer candidatos a essa nova “ciência”: ensinar os surdos a falar. Quais eram os recursos empregados não importavam. Assim, a comunicação gestual de todo tipo aparecerá como recurso na aquisição da fala.

O mais antigo texto em língua inglesa que descreve a língua de sinais como um sistema complexo no qual “homens que nascem surdos e mudos(...) podem argumentar e discutir retoricamente através de sinais” é de 1644 - Chirologia , de autoria de J. Bulwer. Para ele, a Língua de Sinais era universal e seus elementos constitutivos “naturais”, o que corresponderia a icônicos. O mesmo Bulwer publica em 1648 Philocophus, dedicado aos irmãos surdos Edward e William Gostwick, barões. Nesse texto é afirmado que um surdo pode expressar-se perfeitamente através dos sinais como o faria um ouvinte em sua língua oral.

Em 1775 uma data marcante: a fundação do Instituto de Surdos e Mudos de Paris ( atual Instituto de Jovens Surdos de Paris), onde o abade L’Epée (1712-1789) desenvolve seu trabalho de descrição da Língua de Sinais utilizada pelos surdos de Paris, produzindo uma espécie de “dicionário” língua francesa/língua de sinais. Seu trabalho educacional com essa língua de sinais será conhecido e difundido por todo o mundo como o “método manual” ou “francês”.

Há uma mudança radical na metodologia de ensino que vigorava no renascimento, já que os alunos de L’Epée aprendiam a língua escrita e a língua de sinais, deixando a oralização de lado. Outro ponto importante do trabalho do abade é que seus antigos alunos foram se tornando professores, trazendo uma mudança de comportamento inédita na comunidade surda.

“Nas décadas seguintes à divulgação dos trabalhos de L’Epée, e, em virtude da adoção de sua metodologia em inúmeros locais, os surdos de toda uma geração, não só na França, mas também na Rússia, Escandinávia, Espanha, Itália e Estados Unidos, puderam destacar-se e ocupar postos de importância na sociedade de seu tempo, coisa que de nenhuma maneira poderiam alcançar sem a educação que receberam, na falta da qual permaneceriam limitados às tarefas mais baixas ou a mendigar pelas ruas.” (Sánchez, 1990:51 citando Stokoe:1978).

Sánches ( p.53/54) lembra que as concepções de L’Epée não escaparam, apesar do ineditismo da proposta, dos preconceitos próprios de sua época, e que não poderia ter sido de outra maneira. O abade acreditava que a língua de sinais que usavam os surdos era incompleta, devendo ser melhorada e universalizada. Com essa finalidade introduziu o que ele denominou de “signos metódicos”, que representavam as palavras da língua francesa que não existiam na codificação gestual, tais como preposições e artigos, entre outras. Em suas aulas utilizava sistematicamente os sinais naturais da língua de sinais completados com alguns signos de sua invenção, e as frases eram estruturadas segundo a sintaxe do francês.

Apesar disso o abade entrou para a brevíssima história relatada dos surdos como herói. Em um livro americano escrito por dois surdos encontramos que persiste até mesmo uma lenda apontando L’Épée como “inventor” das línguas de sinais, isso até mesmo entre os surdos.

Com a fundação, em 1790 da escola “gestualista” de Viena, poderíamos afirmar a existência de uma forte corrente de valorização das línguas de sinais na educação de surdos.

Há porém um movimento que segue por outros caminhos. Com origem reconhecida na Alemanha, a filosofia que denominamos Oralismo difundia o “método germânico”. Para seus teóricos, um dos problemas da educação dos surdos estava exatamente no uso da comunicação gestual e na existência de escolas residenciais especiais para surdos, que potencializavam o problema.

No início do século XIX os não resolvidos problemas educacionais dos surdos, que não deixaram de existir com as escolas gestualistas, sofrem uma forte influência dessa filosofia “otimista”, o Oralismo, e mesmo na França muitas crianças surdas acabam realocadas em escolas regulares. Segundo Sánchez (p. 66) a experiência fracassa, já que por todos os lados surgem protestos de pais e professores dos ouvintes, temendo uma “contaminação” . Fracassada ou não, a experiência desemboca no Congresso de Milão (1880), que reúne professores de surdos e decide expurgar da educação dos seus pupilos a língua de sinais. Esse pensamento dominará a educação de surdos por quase cem anos, trazendo para as comunidades surdas prejuízos enormes. Sob o ponto de vista educacional nenhum avanço foi obtido, já que a “normalização” do surdo, ou a exigência de que ele fale, de que ele faça leitura labial, de que ele se comporte como um ouvinte, não advém de decretos. As questões discutidas hoje em dia pelos educadores oralistas são absolutamente as mesmas que as de dois séculos atrás. Sob o ponto de vista cultural, a proibição do uso da língua de sinais no espaço escolar repercutiu profundamente nos grupos organizados de surdos, gerando seu enfraquecimento.

Mais uma vez a história dá voltas e, desde 1960, quando nos Estados Unidos o lingüista William Stokoe publica um trabalho provando serem as línguas de sinais línguas naturais com todas suas propriedades, inicia-se um repensar sobre a questão da surdez, que dará origem à filosofia da Comunicação Total e posteriomente ao Bilingüismo. O surdo passa a ser encarado como minoria bilíngüe e bicultural e as propostas educacionais, culturais, sociais partem dessa hipótese, construindo uma nova visão da Surdez. Mais uma vez os Surdos têm suas línguas de sinais aceitas.

Nesse ponto nos encontramos agora. Por todo o mundo há a valorização efetiva das línguas de sinais na educação dos Surdos.

Falar hoje no Brasil em INCLUSÃO escolar, evidentemente, significa para a Comunidade Surda politizada, sabedora do seu passado de mudanças radicais, do Surdo como uma peteca na mão dos educadores de Surdos, um retrocesso. O medo do desaparecimento de uma Cultura e uma língua que a duras penas tem sobrevivido.

Além de pesquisadora e profissional engajada na luta dos Surdos brasileiros, sou também mãe de um jovem surdo de quinze anos.

Meu filho nunca frequentou uma escola especial para Surdos. Durante 8 anos de sua vida Toríbio passou duas horas, 5 vezes por semana em uma clínica de reabilitação fonoaudiológica. Mais dois anos nessa jornada três vezes por semana. Após uma mudança de cidade, ele passou a ser atendido duas vezes por semana com uma fono indivivual, por 45 minutos.

Ao completar 12 anos, decidimos conjuntamente que Toríbio deixaria de freqüentar a fono, em função do acúmulo de atividades normais de um adolescente (esportes, curso de informática) já que, além do tempo dedicado ao estudo em casa ele ainda conta com a ajuda de uma professora particular duas vezes por semana.

Toríbio pode ser considerado oralizado, para o padrão de sua surdez profunda. Mas sua fala não é totalmente compreensível para muitas pessoas. Nunca foi reprovado na escola. Parece ser uma pessoa feliz.

A opção de se colocar uma criança Surda em escolas regulares traz infinitos problemas, que a cada dia nossa família tem lutado para superar. Com amor e dedicação em primeiro lugar, e em segundo e indispensável lugar, com muito apoio de profissionais especializados.

Isso tem nos custado bastante tempo e dinheiro, que arcamos com sacrifício e com alguma ajuda externa. Enumero a seguir algumas delas: Próteses (Toríbio teve 4 pares nesses anos), pilhas importadas e caras, fonoaudiólogos, psicopedagogos, terapeutas de vários tipos: já fizemos terapia familiar duas vezes, e individualmente meu marido e eu cada vez que as coisas ficam “pesadas”, professores particulares desde a 5° série ( antes disso eu mesma fazia este trabalho), e as tais aulas de natação, judô, capoeira, esportes indicados para “acalmar” sua agitação.

Esse é apenas um dos preços pagos pela INCLUSÃO ESCOLAR DOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIAS. Estarão os idealizadores da política educacional inclusiva dispostos a pagar essa conta?

Cabe a nós, pais, familiares, profissionais da área, amigos dos portadores de deficiências e, evidentemente, os próprios Portadores de deficiência adultos, cobrá-la dos responsáveis por sua implantação, apresentando, sempre que possível nossa experiência real, a experiência daqueles que vivenciam a situação.

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