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Clélia Regina Ramos
Clélia Regina Ramos
Diretora Executiva da Editora Arara Azul
Libras: A Língua de Sinais dos Surdos Brasileiros
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Publicado em 2002
Projeto Educação Especial Inclusiva "Módulo Avançado"/Manual do Aluno. Rio de Janeiro: SETRAB / IPPP, CAP. 4
Clélia Regina Ramos
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Resumo

Este artigo, originalmente escrito em 1995, faz uma retomada histórica sobre a origem das línguas de sinais no mundo, seguindo com a contribuição realizada pela linguista brasileira Lucinda Ferreira Brito. Discorrendo sobre o surgimento da Líbras/Língua Brasileira de Sinais nas escolas de surdos e avançando para a proposta de gramaticalização dessa língua, a autora traz a contribuição que a Venezuela desde 1988 realiza com a implementação do bilinguismo para surdos em todo país e enfatiza a necessidade de que os envolvidos na comunidade surda participem da discussão sobre sua implantação.

Mesmo quando estiveram banidas da educação dos surdos, as Línguas de Sinais (ou mímica, com se dizia) despertavam o interesse dos educadores. Como surgiram? Quando? Por que não existe uma Língua de Sinais única para que os surdos de todo o mundo possam se comunicar entre si? Essas perguntas, porém, são as mesmas que se fazem com relação à própria existência da linguagem humana. Desde que o homem passa a refletir sobre sua existência enquanto homem, ele reflete sobre essa questão. O mito ocidental da Torre de Babel pode servir como símbolo dessa busca de respostas.

São incontáveis os estudos lingüísticos, históricos, sociológicos sobre o surgimento da língua falada pela humanidade. Houve um desenvolvimento gradual, progressivo da linguagem, no qual ela se tornou o sistema complexo de significação e comunicação que é hoje, ou, como consideram outros pesquisadores, desde que existe é a linguagem formalmente completa, idêntica ao que conhecemos hoje em dia?

O primeiro ponto de vista é defendido por cientistas como G. Révész, que, em seu livro Origine et Préhistoire du langage (citado por Kristeva: 1981), aponta para uma perspectiva evolutiva na qual, em seis etapas, traça uma linha desde a comunicação animal até a linguagem humana altamente desenvolvida e complexa. O homem em seu estado primitivo estaria associado à dêixis, aos gritos e aos gestos. Essa visão, compartilhada durante muito tempo pela comunidade científica trouxe, e traz ainda, uma boa dose de rejeição às Línguas de Sinais das comunidades surdas, associando-as à gestualidade primitiva e portanto à inferioridade.

Mais recentemente, autores passam a considerar a existência de uma língua somente a partir do momento que exista uma cultura a ela ligada, não delimitando os meios de transmissão utilizados, a extensão do vocabulário, o tipo de som emitido pelos “falantes”. Podemos afirmar, sob esse ponto de vista, que as Línguas de Sinais existiram desde que existe a língua oral humana, e sempre que existirem surdos reunidos por mais de duas gerações em comunidades (Sacks, 1990:62).

Pelo fato de as Línguas de Sinais serem “faladas”, sem registro escrito 1, existe muita dificuldade de se localizarem as origens das mesmas. Por se tratarem também de comunidades pequenas e não reunidas geograficamente, o que se conhece até hoje sobre os surdos e suas Línguas de Sinais ainda é pouco.

Tentarei traçar, porém, um percurso que aponte para o significado dessas Línguas de Sinais no trabalho educacional dos surdos e que possa efetivamente auxiliar o professor nesses novos tempos da inclusão escolar.

Raízes Históricas das Línguas de Sinais

O primeiro livro conhecido em inglês que descreve a Língua de Sinais como um sistema complexo, na qual "homens que nascem surdos e mudos (...) podem argumentar e discutir retoricamente através de sinais", data de 1644, com autoria de J. Bulwer, Chirologia. Mesmo acreditando que a Língua de Sinais que conhecia era universal e seus elementos constitutivos "naturais" (icônicos, de certa forma), o fato de ter sido publicado um livro a respeito do assunto em uma época que eram raras as edições em geral já demonstra o interesse do tema, evidenciando uma preocupação com a educação dos surdos. Preocupação essa ratificada com a publicação, em 1648, do livro Philocophus, do mesmo autor, dedicado a dois surdos: o baronês Sir Edward Gostwick e seu irmão William Gostwick, no qual se afirma que o surdo pode expressar-se verdadeiramente por sinais se ele souber essa língua tanto quanto um ouvinte domine sua língua oral (in Woll,1987:12).

Quase dois séculos depois, em 1809, Watson (que era neto de Thomas Braidwood, fundador da primeira escola para surdos na Inglaterra) descreve em seu livro Instruction of the deaf and dumb um método combinado de sinais e desenvolvimento da fala.

Em 1760, na França, o abade l'Epée (Charles Michel de l'Epée: 1712 -1789) iniciou o trabalho de instrução formal com duas surdas a partir da Língua de Sinais que se falava pelas ruas de Paris, datilologia/alfabeto manual e sinais criados e obteve grande êxito, sendo que a partir dessa época a metodologia por ele desenvolvida tornou-se conhecida e respeitada, assumida pelo então Instituto de Surdos e Mudos (atual Instituto Nacional de Jovens Surdos), em Paris, como o caminho correto para a educação dos seus alunos.

Thomas Hopkins Gallaudet, professor americano de surdos, visitou a instituição em 1815 com o objetivo de conhecer o trabalho lá realizado (antes ele passara pela Inglaterra tentando aprender com os Braidwod acerca da metodologia oralista que eles desenvolviam, não obtendo aceitação pois os profissionais negaram-se a ensinar em poucos meses o que sabiam). De tão impressionado que ficou, Gallaudet convidou um dos melhores alunos da escola, Laurence Clerc, a acompanhá-lo de volta aos Estados Unidos. Lá, em 1817, os dois fundaram a primeira escola permanente para surdos em Hartford, Connecticut.

Ao lado de escolas que continuaram a desenvolver o método oralista, em 1821 todas as escolas públicas americanas passaram a se mover em direção à ASL (Língua de Sinais Americana) como sua língua de instrução, o que levou em 1835 à uma total aceitação da ASL na educação de surdos nos Estados Unidos. Ramos (1992:65) relata que houve em conseqüência dessa atitude uma elevação do grau de escolarização das crianças surdas, que passaram a atingir o mercado profissional de nível mais alto, a maioria delas optando por se tornarem professores de surdos.

Pesquisando sobre a educação de surdos em dezessete países (Austrália, Rússia, Alemanha, Holanda, França, Espanha, França, Espanha, Suíça, Itália, Dinamarca, Suécia, Itália, Dinamarca, Suécia, Argentina e Venezuela) observei que esse movimento em direção à utilização das Línguas de Sinais na educação dos surdos passa a acontecer na maioria dos países e com as mesmas conseqüências.

Surpreendentemente, em 1880, no famoso Congresso de Milão, que reuniu professores de surdos, as Línguas de Sinais passam a ser progressivamente banidas na educação de surdos, só sendo retomadas a partir da década de 1940 ou mais tarde.

O que aconteceu para que ocorresse essa mudança radical de pensamento? Ainda não existem respostas claras, apenas indícios apontando para o desenvolvimento da tecnologia das próteses reabilitadoras gerando uma expectativa de superação da surdez, sobre lutas de poder entre os “novos” professores surdos exigindo o afastamento do professores ouvintes...O que temos aqui, realmente, é uma lacuna histórica a ser preenchida.

A Lingüística e as Línguas de Sinais

Superando as decisões políticas, a ciência manteve-se curiosa com relação às Línguas de Sinais.

Ferreira Brito (1993:12), aponta os trabalhos de Carrick Mallery, de 1882 (reedidatos por Umiker-Sebeok e Sebeok em 1978, em uma coletânea de dois volumes, com estudos posteriores críticos de outros autores), a respeito das Línguas de Sinais indígenas das Américas e Austrália, como os primeiros estudos lingüísticos sobre Línguas de Sinais.

O pesquisador considerava a “Plains Sign Language – PSL/Língua de Sinais das Planícies Norte-Americanas” uma espécie de pantomímica. Apesar disso, porém, seu estudo torna-se importante para o avanço do estudo lingüístico das Línguas de Sinais por apresentar uma descrição bastante completa da PSL, propiciando aos seus sucessores analisar inúmeros aspectos da mesma. “Alguns estudiosos tais como Voegelin(1958), Liung(1965) e Taylor(1975) analisam a PSL em seus níveis lingüísticos (gestêmico, morfêmico e lexêmico), discutindo os três parâmetros, até então não mencionados neste livro: configuração de mão (forma), movimento (‘motion’) e ponto de articulação.” (Ferreira Brito:1993,11)

Pelo fato de as Línguas de Sinais indígenas serem usadas não só pelos surdos, mas, principalmente, na comunicação intertribal, apesar de terem sido aqueles primeiros estudos extremamente importantes, considera-se como data inicial dos estudos científicos das Línguas de Sinais dos surdos, os trabalhos realizados a partir de 1957 por William C. Stokoe sobre a ASL American Sign Language, financiados pelo governo norte-americano. Sua primeira publicação, Language Structure: An outline of the Visual Communication Systems of the American Deaf, de 1960, é tida como marco, como “prova” da importância lingüística das Línguas de Sinais. Em 1965 ele publica, em co-autoria com D. Casterline e C. Cronoberg, o primeiro dicionário de Língua de Sinais (A Dictionary of American Sign Language), inserindo definitivamente o estudo das Línguas de Sinais na ciência lingüística.

Os Estados Unidos continuam até hoje sendo o centro mundial mais importante de pesquisa lingüística em Língua de Sinais, contando atualmente, inclusive, com alguns pesquisadores surdos em suas equipes, inaugurando um momento de trabalhos que trazem forte influência da visão culturalista. A entrada de pesquisadores surdos no cenário da pesquisa lingüística sobre as Línguas de Sinais poderá trazer uma mudança qualitativa no trabalho que vem sendo realizado até hoje.

Como destaca Lucinda Ferreira Brito (1995:12), o estudo lingüístico de uma língua de modalidade gestual-visual pode afetar as teorias lingüísticas por vários motivos: os próprios preceitos teóricos que definiam a capacidade lingüística associada à fala oral; a gramática tradicional sendo obrigada a rever seus conceitos de arbitrariedade (substituindo, talvez, por convencionalidade), de simultaneidade (que não é possível na língua oral), do que é central e o que é periférico (o caso da entoação, que na língua oral é um fator paralingüístico e na Língua de Sinais faz parte do signo).

O fator mais importante, porém, é a necessária mudança de atitude do lingüista diante de sua pesquisa, abandonando a ilusória neutralidade diante de seus “informantes”, e tendo que se envolver com os problemas psicossociais e educacionais dos surdos. É evidente que quando o pesquisador é surdo, quando sua língua nativa é a Língua de Sinais, todos os fatores acima descritos terão um maior aprofundamento.

No Brasil, Lucinda Brito inicia seus importantes estudos lingüísticos em 1982 2 sobre a Língua de Sinais dos índios Urubu-Kaapor da floresta amazônica brasileira, após um mês de convivência com os mesmos, documentando em filme sua experiência. A idéia para a pesquisa, segundo a própria autora (1993), adveio da leitura de um artigo publicado no livro acima citado de Umiker-Sebeok (1978), de autoria de J. Kakumasu, Urubu Sign Language. No estudo, a Língua de Sinais dos Urubu-Kaapor se diferenciaria da PSL por constituir um veículo de comunicação intratribal e não como meio de transação comercial. Lucinda Brito, porém, constatou que a mesma se tratava de uma legítima Língua de Sinais dos surdos, pelos mesmos criada.

O interessante de se observar, no caso dos Urubu-Kaapor, é que os ouvintes da aldeia “falam” a Língua de Sinais e a língua oral, evidentemente, enquanto que os surdos se restringem à Língua de Sinais. Assim, os ouvintes da aldeia se tornam bilíngües, enquanto os surdos se mantém monolíngües.

Mas, e a Língua Brasileira de Sinais, a LIBRAS, como surgiu?

E, aqui, no Brasil

É conhecido como o "início oficial" da educação dos surdos brasileiros a fundação, no Rio de Janeiro, do Instituto Nacional de Surdos-Mudos (INSM, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos- INES), através da Lei 839, que D. Pedro II assinou em 26 de setembro de 1857. Porém, já em 1835, um deputado de nome Cornélio Ferreira apresentara à Assembléia um projeto de lei que criava o cargo de "professor de primeiras letras para o ensino de cegos e surdo-mudos" (Reis,1992:57). Projeto esse que não conseguiu ser aprovado.

Reis relata que o professor Geraldo Cavalcanti de Albuquerque, discípulo do professor João Brasil Silvado (diretor do INSM em 1907), informou-lhe em entrevista que o interesse do imperador D. Pedro II em educação de surdos viria do fato de ser a princesa Isabel mãe de um filho surdo e casada com o Conde D’Eu, parcialmente surdo. Sabe-se que, realmente, houve empenho especial por parte de D. Pedro II quanto à fundação de uma escola para surdos, mandando inclusive trazer para o país em 1855 um professor surdo francês, Ernest (ou Eduard) Huet, vindo do Instituto de Surdos-Mudos de Paris, para que o trabalho com os surdos estivesse atualizado com as novas metodologias educacionais.

A LIBRAS, em conseqüência, foi bastante influenciada pela Língua Francesa de Sinais, apesar de não se encontrar, através da análise do programa de ensino adotado inicialmente por Huet (Língua Portuguesa, Aritmética, Geografia, História do Brasil, Escrituração Mercantil, Linguagem Articulada, Leitura Sobre os Lábios para os com aptidão e Doutrina Cristã), nenhuma referência à Língua de Sinais. Entretanto, poucos anos depois, Tobias Rabello Leite (diretor da escola de 1868 a 1896) publica Notícias do Instituto dos Surdos e Mudos do Rio de Janeiro pelo seu diretor Tobias Leite (1877) e Compêndio para o ensino dos surdos-mudos (1881), nos quais se percebe que havia aceitação da Língua de Sinais e do alfabeto datilológico. O autor considerava a utilidade dos dois no ensino do surdo, como forma de facilitar o entendimento professor/aluno. (Leite,1881 in Reis, 1992:60/68)

É de 1873 a publicação do mais importante documento encontrado até hoje sobre a Língua Brasileira de Sinais, o Iconographia dos Signaes dos Surdos-Mudos, de autoria do aluno surdo Flausino José da Gama, com ilustrações de sinais separados por categorias (animais, objetos, etc). Como é explicado no prefácio do livro, a inspiração para o trabalho veio de um livro publicado na França e que se encontrava à disposição dos alunos na Biblioteca do INSM. Vale ressaltar que Flausino foi autor das ilustrações e da própria impressão em técnica de litografia. Não sabemos se o organização também foi realizada por ele.

Em 1911, seguindo os passos internacionais que em 1880 no Congresso de Milão proibira o uso da Língua de Sinais na educação de surdos, estabelece-se que o INSM passaria a adotar o método oralista puro em todas as disciplinas. Mesmo assim, muitos professores e funcionários surdos e os ex-alunos que sempre mantiveram o hábito de freqüentar a escola, propiciaram a formação de um foco de resistência e manutenção da Língua de Sinais.

Somente em 1957, por iniciativa da diretora Ana Rímoli de Faria Doria e por influência da pedagoga Alpia Couto, finalmente a Língua de Sinais foi oficialmente proibida em sala de aula. Medidas como o impedimento do contato de alunos mais velhos com os novatos foram tomadas, mas nunca o êxito foi pleno e a LIBRAS sobreviveu durante esses anos dentro do atual INES.

Em depoimento informal, uma professora que atuou naquela época de proibições (que durou, aliás, até a década de 1980) contou-nos que os sinais nunca desapareceram da escola, sendo feitos por debaixo da própria roupa das crianças ou embaixo das carteiras escolares ou ainda em espaços em que não havia fiscalização. É evidente, porém, que um tipo de proibição desses gera prejuízos irrecuperáveis para uma língua e para uma cultura.

Pesquisar as origens da LIBRAS é realmente uma tarefa a ser realizada, pois surpreende a todos aqueles que trabalham com a comunidade surda brasileira (tão espalhada por este imenso país) a homogeneidade lingüística da mesma. Apesar dos "sotaques" regionais, podemos observar apenas algumas variações lexicais que não comprometem em nenhum momento sua unidade estrutural.

Em 1969, foi feita uma primeira tentativa no sentido de tentar registrar a Língua de Sinais falada no Brasil. Eugênio Oates, um missionário americano, publica um pequeno dicionário de sinais, Linguagem das mãos, que segundo Ferreira Brito (1993), apresenta um índice de aceitação por parte dos surdos de 50% dos sinais listados.

A partir de 1970, quando a filosofia da Comunicação Total e, em seguida, do Bilingüismo, firmaram raízes na educação dos surdos brasileiros, atividades e pesquisas relativas à LIBRAS têm aumentado enormemente.

Em 2001 foi lançado em São Paulo o Dicionário Enciclopédico Ilustrado de LIBRAS, em um projeto coordenado pelo Professor Doutor (Instituto de Psicologia/USP) Fernando Capovilla e em março de 2002 o Dicionário LIBRAS/Português em CD-ROM, trabalho realizado pelo INES/MEC e coordenado pela Professora Doutora Tanya Mara Felipe/UFPernambuco/FENEIS.

Nacionalmente, a LIBRAS foi, recentemente, oficializada através da Lei n.º 4.857 / 2002, enquanto língua dos surdos brasileiros, o que, aliada à aceitação da LIBRAS pelo MEC, irá tornar a educação dos surdos e a vida dos surdos cada vez mais fácil.

A LIBRAS é uma Língua Natural

“A LIBRAS, como toda Língua de Sinais, é uma língua de modalidade gestual-visual porque utiliza, como canal ou meio de comunicação, movimentos gestuais e expressões faciais que são percebidos pela visão; portanto, diferencia-se da Língua Portuguesa, que é uma língua de modalidade oral-auditiva por utilizar, como canal ou meio de comunicação, sons articulados que são percebidos pelos ouvidos. Mas, as diferenças não estão somente na utilização de canais diferentes, estão também nas estruturas gramaticais de cada língua.” (Revista da FENEIS, número 2:16)

Para que as Línguas de Sinais tenham chegado ao ponto de serem reconhecidas como línguas naturais, entendendo o conceito natural em oposição a código e linguagem, avaliaram-se, evidentemente, as semelhanças existentes entre as mesmas e as línguas orais.

Uma dessas semelhanças, seguindo a linha saussuriana, a existência de unidades mínimas formadoras de unidades complexas, pode ser observada em todas as Línguas de Sinais espalhadas pelo mundo, possuidoras dos níveis fonológico, morfológico, sintático, semântico e pragmático.

A existência de registros diversos (por categoria profissional, status social, idade, nível escolar etc.), além de dialetos regionais, também referendam as semelhanças com as línguas orais.

A busca por uma “norma culta” vem sendo observada nos últimos anos nos encontros e publicações realizados por surdos, pelos instrutores de LIBRAS e pelos intérpretes de LIBRAS, indicando que a gramaticalização formal da LIBRAS está em vias de ser agilizada.

Resumidamente, podemos afirmar que:

“Os sinais são formados a partir da combinação do movimento das mãos com um determinado formato em um determinado lugar, podendo este lugar ser uma parte do corpo ou um espaço em frente ao corpo. Estas articulações das mãos, que podem ser comparadas aos fonemas e às vezes aos morfemas, são chamadas de parâmetros, portanto, nas Línguas de Sinais podem ser encontrados os seguintes parâmetros:

  1. configuração das mãos: são formas das mãos, que podem ser da datilologia (alfabeto manual) ou outras formas feitas pela mão predominante (mão direita para os destros), ou pelas duas mãos do emissor ou sinalizador. Os sinais APRENDER, LARANJA e ADORAR têm a mesma configuração de mão;
  2. ponto de articulação: é o lugar onde incide a mão predominante configurada, podendo esta tocar alguma parte do corpo ou estar em um espaço neutro vertical (do meio do corpo até à cabeça) e horizontal (à frente do emissor). Os sinais TRABALHAR, BRINCAR, CONSERTAR são feitos no espaço neutro e os sinais ESQUECER, APRENDER e PENSAR são feitos na testa;
  3. movimento: os sinais podem ter um movimento ou não. Os sinais citados acima tem movimento, com exceção de PENSAR que, como os sinais AJOELHAR, EM-PÉ, não tem movimento;
  4. orientação: os sinais podem ter uma direção e a inversão desta pode significar idéia de oposição, contrário ou concordância número-pessoal, como os sinais QUERER E QUERER-NÃO; IR e VIR;
  5. expressão facial e/ou corporal: muitos sinais, além dos quatro parâmetros mencionados acima, em sua configuração tem como traço diferenciador também a expressão facial e/ou corporal, como os sinais ALEGRE e TRISTE. Há sinais feitos somente com a bochecha como LADRÃO, ATO-SEXUAL.

Na combinação destes quatro parâmetros, ou cinco, tem-se o sinal. Falar com as mãos é, portanto, combinar estes elementos que formam as palavras e estas formam as frases em um contexto.” (Revista da FENEIS, número 2: 16)

Relato de uma Experiência de Educação Bilíngüe
Todas as citações desse tópico foram retiradas da Revista Nova Escola, número 69, de setembro de 1993. Lembro que as opiniões aqui expostas são do entrevistado.)

O médico uruguaio Carlos Sánchez, assessor de Educação Especial na Venezuela, foi responsável pela implantação de um trabalho bilíngüe do tipo Língua de Sinais/língua escrita em 42 escolas públicas em seu país.

Isso aconteceu em 1990, seis anos depois de o pesquisador tomar contato com as idéias de Emilia Ferrero e iniciar uma investigação de como se dava o processo da aquisição da escrita nas crianças surdas venezuelanas - que eram educadas nas escolas oralistas da rede oficial. Suas investigações o levaram a uma história de fracassos, em que "os surdos nunca chegavam a ser usuários constantes e fluentes da língua escrita".

Em 1988, Sánchez apresentou os resultados de suas pesquisas ao educador francês Jean Foucambert que visitava a Venezuela. Da discussão, surgiu a proposta de um tipo de educação que privilegiasse a língua natural da comunidade surda - a Língua de Sinais Venezuelana, e a escrita da língua da comunidade "oral" - o Espanhol. Um primeiro postulado que embasou essa mudança radical foi colocado por Foucambert:: "Não só os surdos, mas toda e qualquer criança pode aprender a língua escrita sem basear-se na oral, porque são independentes." Em segundo lugar, chegou-se à afirmação de que a língua de sinais é uma língua natural e que os surdos são uma comunidade lingüística minoritária, com direito a desenvolver sua cultura própria dentro da cultura majoritária. O fato de a Língua de Sinais cumprir

"uma série de requisitos que todas as línguas naturais possuem - espanhol, português, alemão, inglês, polonês... a criatividade é um deles -, pode-se sempre dizer alguma coisa nova. Outro requisito é a combinação de partículas não significativas que, usadas de certa maneira, criam significação.(...). Com 30, 40 configurações da mão, podem-se transmitir milhares de sinais significativos, como os fonemas da língua oral. A língua de sinais, que, como as línguas nacionais, é diferente em cada país e até em regiões dos países, possui além do mais uma gramática toda própria, organizada e complexa, e nos permite transmitir qualquer coisa(...) Com ela pode-se transmitir, criar e recriar o que se quiser: poesia, romance, filosofia...E pode-se até formular, idéias com duplo sentido, ou mentir, que é outra característica das línguas naturais."

Outra importante colocação da proposta de Sánchez é que a criança surda deve ter contato o mais cedo possível com a Língua de Sinais. Assim como uma criança ouvinte que não pudesse ter contato com uma língua oral até os 5 anos, um surdo que não consegue ser oralizado até essa idade (e mesmo as crianças mais estimuladas, surdas congênitas ou ensurdecidas em um período pré-lingüístico, portadoras de surdez profunda, dificilmente conseguem chegar a uma proficiência na língua oral nessa fase), tem seu instrumento cerebral de linguagem afetado de maneira significativa.

Quanto à metodologia do bilingüismo propriamente dita, Sánches acredita que, pelo fato de uma criança surda entrar em contato com a Língua de Sinais precocemente e adquiri-la espontaneamente como a criança ouvinte adquire sua língua oral, em conseqüência poderá desenvolver normalmente uma linguagem e ter o acesso à segunda língua - a língua escrita - garantido. Para o pesquisador, a língua escrita (tratando-se ou não de surdos) é uma segunda língua. "Não é necessário, como imaginam os alfabetizadores, uma racionalização sobre a língua escrita como objeto de conhecimento. A racionalização só ocorre depois que a criança incorporou espontaneamente certa quantidade de convenções da escrita. As metodologias dominantes procuram facilitar a reflexão sobre a escrita, mas isso não é o uso da escrita. O uso da escrita é inconsciente, no contexto de uma prática social."

Este é um ponto chave na proposta venezuelana de bilingüismo: qual seria esta prática social? O contato próximo com o livro, por exemplo. Os comentários sobre ele, sobre seu contexto, seriam efetivamente atos de leitura, de uso da língua escrita.

A "técnica" da escrita propriamente dita é passada aos alunos através do mesmo mecanismo que utilizamos na aquisição das palavras e sentido em uma língua oral. Ou seja, a multiplicação das vezes que a criança tem contato com a língua escrita. De início ela não estará internalizando um conhecimento profundo, não estará chegando ao sentido da palavra, isso só passará a acontecer quando ela tiver "um estoque suficiente de palavras reconhecíveis. É como ocorre com os japoneses e chineses, que começam a ter condições de ler bem ao reconhecer, digamos, 5 mil ideogramas. Fazendo um paralelo, na nossa língua escrita as palavras assumiriam o aspecto de um ideograma, transmitindo imediatamente a idéia, o significado. Como diz Sartre, assimilar a língua escrita é o mesmo que aprender uma língua estrangeira. Vai-se descobrindo pelo contexto."

Como 95% das crianças surdas são filhos de pais ouvintes, a questão familiar não pode ser deixada de lado. "Para adquirir espontaneamente a língua escrita é preciso que os pais, a família, o meio - escola inclusive- falem da língua escrita. Nós ainda não temos surdos que falem disso. Apesar de alguns pais utilizarem a língua escrita, a maioria deles desconhece a Língua de Sinais. Temos que dar um tempo para que se crie um meio social com uso significativo da língua escrita."

Assim, a escola acaba tendo que suprir em seu espaço não só a carência educacional, como acaba precisando reproduzir um ambiente familiar e um ambiente social – pela incipiente organização da comunidade, reflexo dos anos de oralismo que proibia o uso dos sinais. A proposta apresenta, então, cinco áreas de atividade (com a participação das crianças, de jovens e adultos surdos): jogos e esportes; teatro; ciências; leitura e escrita e trabalho. O professor participa como colaborador, pois, das cinco horas de atividades realizadas na escola, apenas uma é dedicada pelo professor para a ampliação do conhecimento dos alunos nas disciplinas. "Ainda assim, na medida do possível essa informação adicional se relaciona ao que foi trabalhado na prática, porque daí surge a internalização do conhecimento."

Um último ponto a ser discutido na proposta venezuelana é o que é chamado de integração. Quando se questiona a validade de se fundarem escolas apenas para surdos em lugar de se trabalhar com a presença da criança surda em salas de ouvintes, respeitando-se sua singularidade, o pesquisador acredita que a chamada "integração" tem dois componentes indispensáveis: "primeiro, a interação plena - poder falar o que se queira com várias pessoas; segundo: o poder de tomar decisões. A criança surda colocada numa escola regular não tem interação real e nenhuma possibilidade de tomar decisões. Na nossa escola, tentamos garantir esses dois componentes, porque ela é democrática (o professor deixa de ser o que manda); participativa (por incorporar os pais dos alunos); cooperativa (é um trabalho de todos), comunitária (é da comunidade de surdos), e ativa (porque ao se fazer é que se aprende)."

Apesar de a experiência da Venezuela não ser considerada por Sánches uma proposta bilíngüe, que no seu julgamento só poderá partir dos próprios surdos quando estes, enquanto comunidade, tiverem o acesso à educação superior facilitado e conseqüentemente puderem participar dos centros de decisão governamentais, foi para nós o primeiro contato direto com um trabalho que coloca em prática as idéias que acreditamos ser um novo caminho na educação de surdos.

Fica o relato dessa experiência singular para a avaliação e discussão dos professores, para que possamos, juntos, aprender e trocar experiências, visando implementar uma educação verdadeiramente inclusiva e integrativa em nosso país.

Notas

1 A partir de 1997, um grupo de pesquisadores de catorze países (incluindo o Brasil) vêm trabalhando com um sistema de representação das Línguas de Sinais, o Sign Writing/Escrita dos Sinais.
2 Segundo Quadros (1999), o primeiro estudo sobre Língua de Sinais do Brasil é de autoria de Gladis Knak Rehfeldt , “Linguistics bases for the description of Brazilian Sign language”. Publicado no livro editado por Harry W. Hoemann,The sign language of Brazil, 1981 (Mill Neck Foundation, N.Y.).

Bibliografia

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--------------------------------------- Por uma gramática de Língua de Sinais. R.J.: Tempo Brasileiro, 1995.

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RAMOS, Clélia Regina & GOLDFELD, Marcia. “Vendo Vozes: os passos dados na direção da realização de um programa de televisão para crianças surdas” in GELES número 6, Ano 5, Babel, 1992.

REIS, Vania Prata Ferreira. A criança surda e seu mundo: o estado-da-arte, as políticas e as intervenções necessárias. Dissertação de mestrado (n.p.). Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 1992.

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REVISTA NOVA ESCOLA. Ano VIII. Número 69. Setembro de 1993. S.P.: Fundação Victor Civita.

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