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Ronice Müller de Quadros
Ronice Müller de Quadros
Professora e Investigadora
CODAs brasileiros: Libras e Português em zonas de contato
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Publicado em 2007
Estudos Surdos II / Ronice Müller de Quadros e Gladis Perlin (organizadoras) – Petrópolis, RJ : Arara Azul, p238-266
Ronice Müller de Quadros
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Resumo

Este artigo apresenta um estudo realizado a partir de uma entrevista com uma filha de pais surdos no Brasil. É um estudo de caso cujo objetivo central é analisar o contexto de um CODA brasileiro em zonas de contato entre línguas faladas e de sinais. A partir desse caso, abordaremos aspectos que envolvem situações de fronteira e contato entre línguas e percepções do universo Surdo e do ouvinte, destacando as formas como as conexões são percebidadas por este CODA. Primeiro, apresentaremos um panorama do contexto do Bilingüismo no Brasil e situaremos a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Em seguida, passamos à análise das zonas de contato estabelecida com elementos lingüísticos, culturais e políticos que constroem as diferentes perspectivas de um CODA. Neste artigo, adotaremos o termo CODA – Crianças de pais surdos – utilizado pela Organização Internacional CODA, embora isso não implique, necessariamente, uma filiação à mesma.

1- Contextos de bilingüismo no Brasil

O Brasil ainda é considerado um país monolíngüe, cuja língua oficial é o Português. Entretanto, há muitas outras línguas faladas neste país, o que o torna um país multilíngüe:

No Brasil são faladas cerca de 210 línguas por cerca de um milhão de cidadãos brasileiros que não têm o Português como língua materna, e que nem por isso são menos brasileiros. Cerca de 190 línguas são autóctones, isto é, línguas indígenas de vários troncos lingüísticos, como o Apurinã, o Xokléng, o Iatê, e cerca de 20 são línguas alóctones, isto é, de imigração, que compartilham nosso devir nacional ao lado das línguas indígenas e da língua oficial há 200 anos, como é o caso do alemão, do italiano, do japonês. (Oliveira 2005).

Todas essas línguas são brasileiras e por isso precisam ser reconhecidas através de políticas lingüísticas que garantam sua preservação como línguas tão legítimas quanto o Português, e que são utilizadas de cidadãos brasileiros.(Oliveira 2005). Entretanto, as políticas lingüísticas do país são insuficientes para sustentar a conservação das diferentes línguas no país. Observa-se que o movimento lingüístico no Brasil é similar àqueles que ainda estão ocorrendo em alguns países europeus, que mantém uma concentração em torno de uma pretensa unidade lingüística, que propicia o favorecimento de uma língua em detrimento das demais, que já foi discutido por Grosjean (1982), Lapierre (1988), entre outros. Esta situação vem sendo gradativamente mudada com políticas a longo prazo, principalmente nas regiões de fronteira do país e também em relação à Língua Brasileira de Sinais. Algumas proposições estão sendo feitas em relação às escolas indígenas e escolas de Surdos. A exemplo disso, a Constituição Brasileira de 1998 reconheceu o povo indígena brasileiro, o que foi decisivo para a preservação de suas línguas. Desde, então, os direitos lingüísticos dos indígenas estão sendo considerados em diferentes esferas da sociedade, entre elas a educacional. Muitos escolas foram estabelecidas utilizando a sua própria língua indígena como a língua de instrução, figurando o Português como segunda língua. Além disso, ocorreram algumas ações com as línguas alóctones em cidades em que os aspectos lingüísticos tornaram-se uma espécie de “patrimônio cultural”. Há políticas lingüísticas estabelecidas que apresentam reflexos em uma educação com proposta bilíngüe.

Em relação ao contexto lingüístico dos surdos, ocorreram, nos últimos anos, algumas políticas lingüísticas importantes que empoderaram a Libras. No próximo item, traremos alguns elementos acerca das mesmas, face ao impacto que apresentaram às comunidades surdas e aos sujeitos bilíngües, como é o caso dos CODAs.

2- A Língua Brasileira de Sinais

Libras é a língua usada pela comunidade surda no Brasil. É uma língua que expressa níveis lingüísticos em diferentes graus, assim como as demais línguas; apresenta uma gramática com uma estrutura própria, usada por um grupo social específico (Quadros/Karnopp 2004). No Brasil, as Associações de Surdos sempre buscaram os elos de umas com as outras para manter e facilitar o contato entre surdos de diferentes regiões do país, favorecendo a herança da língua de sinais a gerações de surdos e famílias surdas. As festas, os jogos, os encontros nacionais, foram e continuam sendo formas surdas para propiciar a interação social e o desenvolvimento da língua e cultura surda. Essas práticas lingüísticas, entretanto, não eram refletidas nas Educação de Surdos há muito tempo atrás. Constituíam-se, apenas, em práticas de resistência a um sistema que negou a língua de sinais por muito tempo, o que se alterou, significativamente, na última década (Skliar/Quadros 2005). A geração de surdos, ainda viva, da década de 30 e de 40, não teve muitas oportunidades de estudar, uma vez que quase não havia opções no país. Eram apenas duas escolas de surdos no Brasil: Instituto Santa Terezinha, em São Paulo, e Instituto Nacional de Educação de Surdos, no Rio de Janeiro. Por isso, dessa geração, apenas alguns surdos tinham freqüentado essas instituições. Muitos não tiveram qualquer tipo de educação, e isso também dependia da situação econômica da própria família. A geração da década de 50 começou a ter algum tipo de educação em instituições que faziam parte da Educação Especial, local que reunia os que se denominavam deficientes de várias ordens, mentais, físicas, etc. Também alguns deles tinham a educação oral em institutos especiais .Também os Institutos de São Paulo e Rio de Janeiro adotaram a educação oral. Então, essa geração de surdos, se recebeu algum tipo de instrução de um lado, sofreu o impacto da negação da língua de sinais, por outro.

As escolas de surdos, as classes especiais, e as escolas regulares, por muito tempo não permitiram em seus sistemas o uso da língua de sinais 2. O processo educacional sempre privilegiou o uso da língua portuguesa, conferindo um status aos seus falantes, política essa que continua a trazer conseqüências negativas para a vida dos surdos. Em discursos de sala de aula, em políticas educacionais, em conversas entre os próprios surdos, podemos ver a reprodução dessa longa história de tentativa de desqualificação da língua de sinais e do próprio grupo cultural dos surdos, baseada na falsa premissa de superioridade das línguas orais. Pressuposição equivocada já contestada por muitas correntes que não seguem a lógica fonologocêntrica, apontada por Derrida(2004) que impera no ocidente como paradigma de verdade. Naturalmente, os codas sentem o impacto desses dilemas em suas vidas.

Apesar disso, há muitas ações que indicam uma mudança no processo. Na década de 80 e 90, a Associação de Surdos passou a ser cada vez mais empoderada e algumas escolas Surdas começaram a usar a língua de sinais na escola. Em 2002, foi aprovada a lei 10.436 que reconheu a Língua Brasileira de Sinais como a língua dos surdos brasileiros:

Art. 1º. É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.(Lei 10.436 de 2002).

Essa lei foi regulamentada através do Decreto 5626/2005, que apresenta as ações para aplicar às políticas lingüísticas e educacionais com vistas a preservar e disseminar a Língua Brasileira de Sinais. Isto determina, por exemplo, a realização, em um período de até dez anos, de exames de Proficiência em Língua de Sinais e de interpretação, bem como firma o compromisso para que sejam desenvolvidos programas de formação de professores de Libras e de intérpretes em diferentes níveis de escolaridade. Além disso, propõe cursos de nível superior bilíngües voltados à educação infantil, e determina a inclusão da língua de sinais em todos os cursos que formam educadores no Brasil.

Em 2006, foi criado o primeiro programa de Língua de Sinais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a meta de formar professores de Libras. Este curso está sendo oferecido em nove Estados do Brasil: Amazonas, Ceará, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Com a duração de quatro anos, formará, em 2010, 500 professores de língua de sinais, dos quais 447 são surdos. Todos os materiais estão sendo produzidos com uma forma própria utilizada pelos surdos, sendo que a equipe de produção conta com o trabalho de vários intelectuais surdos de diversas áreas. Em todo o processo a presença dos surdos é fundamental 3. Também nessa Universidade, desde 2003, há um projeto específico que tem uma meta de que surdos freqüentem as diferentes áreas do conhecimento com o envolvimento de intérpretes nos cursos de Graduação. Atualmente, há três pesquisadores surdos que já concluiram o Mestrado em Educação na UFSC. Também dois surdos estão concluindo o mestrado na área da lingüística e oito estão na área da Educação. Também há três intérpretes de língua de sinais e mais seis ouvintes bilíngües também produzindo pesquisas na área. Esses pesquisadores vêm de diferentes regiões do país e levam de volta a suas regiões o conhecimento produzido em relação à língua de sinais e à Educação de Surdos, ampliando a rede de formação. 

A tecnologia também contribuiu para disseminar o conhecimento, uma vez que é produzido em programas de TV aberta com a presença de intérpretes de Libras, exigidos pela Lei Federal.

Todo esse movimento político da última década tem modificados as perspectivas, outrora diminutas, das línguas de sinais. As escolas “permitem” língua de sinais em seus diferentes espaços e as universidades estão sendo solicitadas a providenciar intérpretes de línguas de sinais, se elas têm estudantes surdos. A década que iniciou em 2000 tem sido favorável às políticas lingüísticas afirmativas, como foi o caso do reconhecimento de Libras como uma língua oficial e disseminada nos vários espaços  sociais.

A geração de surdos da década de 60 é que pode testemunhar essas mudanças operadas. Há muitas experiências distintas relacionadas às línguas de sinais, mas é a geração dos anos 60 que vivenciou o processo intenso de negação da Libras e o recente processo de transição a partir de seu reconhecimento legal. A grande maioria desses surdos tiveram contato com a língua de sinais e a a utilizaram em associações de surdos e outras organizações. Dentro desses espaços, os CODA s, que são trazidos, geralmente, pelos pais e familiares, crescem junto com outras crianças e adultos surdos, exercitando assim, a língua e sua cultura.

A CODA entrevistada nessa pesquisa pertence à família de surdos da geração da década de 30. Seus pais não eram escolarizados e utilizavam somente a língua de sinais. Ela é do início da década de 70 e cresceu sinalizando com sua família surda (com tias, tios, primas e com os amigos dos pais). Apenas aprendeu a falar com 5 anos de idade, e convivia com crianças ouvintes que vinham à sua casa porque assim o desejava sua mãe, para que pudesse aprender a falar. Houve duas seções de entrevistas, uma delas não foi estruturada e foi uma conversa informal. A partir dela, tomamos notas e organizamos questões específicas relacionadas às fronteiras entre as línguas de sinais e as orais, relacionadas ao mundo surdo e ao ouvinte, para realizar na seqüência uma entrevista semi-estruturada. Como Preston (1995) mencionou após ter entrevistado 150 crianças ouvintes filhas de pais surdos, a experiência de cada entrevistado é singular, nesse sentido ler as referências culturais inscritas na entrevista possibilita ampliar a percepção do universo de surdos e ouvintes em zonas de contato.

A entrevista realizada para esse artigo é um ponto de partida de pesquisas com sujeitos ouvintes filhos de pais surdos no Brasil, uma vez que investigações dessa natureza ainda são incipientes em nosso país. Nossa meta não é estabelecer generalizações a partir de um estudo de caso, mas lançar um olhar para as fronteiras entre os universos surdos e ouvintes a partir das experiências de bilingüismo dos codas.

3 - Fronteiras e zonas de contato de CODAs

A experiência de nascer, viver e crescer em meio a uma família de pais surdos faz com que a percepção das representações culturais, sociais, políticas e lingüísticas sejam atravessadas por substratos filosóficos, éticos e estéticos marcados por tensões em zonas fronteiriças de contato. O universo surdo e o ouvinte marcam as fronteiras dos codas. Pratt (1999, 2000) define a zona de contato como aqueles espaços sociais em as culturas se encontram, e se constroem em linhas de diferenças, em contextos assimétricos de poder. A autora adverte que esse lugar pode oscilar entre um lugar de belicosidade e de perigo e de entendimento mútuo, o que é imprevisível e apenas descoberto nas relações. Pratt denomina esses lugares de “safe houses”, que possibilita os grupos sociais constituirem suas identidades e suas comunidades e protegerem-se dos sistemas opressivos. A partir dessa perspectiva, pensar sobre as experiências dos codas em zonas fronteiriças de contato pode contribuir para que visões etnocêntricas acerca da diferença sejam progressivamente diluídas.

A tradução cultural implica muitos laços que são construídos em linhas conflituosas e de poder. Falar sobre a relação de fronteira que um coda vive em universos diferentes implica perseguir, cuidadosamente, as linhas imaginárias e tensas que vão sendo formadas em zonas fronteiriças de contato. Toda linhagem teórica desenvolvida por Wrigley (1996) Lane(1993), Padden e Humphries (1996), Young (1995) e outros, são pontos referenciais para as reflexões críticas que abordam as relações coloniais entre surdos e ouvintes. Pretendemos, em consonância com essas linhas teóricas, abordar alguns elementos do campo lingüístico, cultural e político oriundos dessas zonas de contato que se constroem em linhas de diferença.

São nas convivências, no cenário cotidiano, que os sentidos e as operações tradutórias vão sendo exigidas dos sujeitos envolvidos nas relações de grupo, desafiando linguagens e articulando a língua dentro de laços culturais. Os codas, desde a tenra idade, aprendem que nem sempre o princípio de equivalência lingüística é possível, trata-se de mundos diferentes e que tornam abissais as diferenças. Sem saber, as crianças codas já se deparam com o território da intradutibilidade dos idiomas com os quais convive. Derrida, conforme afirmações realizadas em colóquios e destacadas por Ottoni, seu tradutor no Brasil (2006), faz a diferença entre língua e idioma. Diz que o idioma não se confunde simplesmente com a língua, é um dos enigmas da tradução. A língua se traduz, já o idioma é uma experiência singular, “armadilha” que resiste à tradução. Entretanto, a ética reside, justamente, em encontrar saídas para, paradoxalmente, “traduzir o intraduzível”.

CODA s estão, permanentemente, vivendo entre fronteiras da língua, do idioma e da cultura. Suas sensações e experiências com o corpo das línguas orais e visuais remetem para o caráter tenso de ter que suportar o peso da idiomaticidade de duas línguas que são irredutíveis uma à outra e de dois mundos culturais que apresentam uma forte assimetria em suas relações de poder. Se determinadas situações fazem sentido dentro de apenas determinadas línguas e culturas, como lidar com elas durante a travessia de sentidos sem banalizar ou querer minimizar as diferenças culturais? Como traduzir essas “zonas de contato” que não representam uma visão utópica das línguas como entidades gramaticalmente coerentes e homogêneas gramaticalmente, e compartilhadas de forma similar entre os membros da comunidade?

Sinalizar e falar são processos distintos que remetem à questão da responsabilidade da tradução e à responsabilidade de não tornar homogêneo o que é naturalmente tenso. Em muitas situações familiares, um coda passa pelo impasse do campo representacional de línguas distintas. Nos eventos cotidianos, no encontro de intermediação entre surdos e ouvintes, há pequenos conflitos gerados pelos distintos campos de significações. Os vínculos estreitos dentro de um círculo familiar onde compartilham intimidades também produzem sentidos que interferem na forma como os sujeitos interagem nas esferas sociais e as percebem.

A situação de fronteira subjetiva de um CODA que pertence tanto ao grupo cultural dos surdos como dos ouvintes traz uma situação de angústia da tradução. Como passar para língua portuguesa o que em Libras é construído dentro de um campo subjetivo com uma forma tão singular em relação aos aspectos culturais? Como traduzir para Libras o que tem uma dinâmica própria da língua portuguesa e que tem outro tipo de representação no imaginário dos surdos?

Essa tensão do sujeito de pertencer a dois universos radicalmente diferentes e perceber que o que é relevante dentro de uma cultura pode ser totalmente indiferente na outra, muitas vezes, leva um coda a pensar que há um abismo de perspectivas culturais, e que a tradução ficará sempre em dívida. Muitas experiências que são vivenciadas ricamente em Libras perdem sua potência significante na língua portuguesa. Ouvintes não compreendem muitas referências culturais surdas, por outro lado, muitas vezes os surdos interrogam acerca de sentidos atribuídos pelos ouvintes, que para eles não têm a menor importância. A própria língua portuguesa, na perspectiva surda, se torna um conjunto de informações excessivas e desnecessárias, apenas um instrumento opressor. A cumplicidade da relação se esvazia, à medida que situações se tornam incompreensíveis diante de comunidades com perspectivas tão diferentes (por exemplo, as piadas feitas em uma língua perdem o significado na outra).

Não apenas a forma de dizer na língua de sinais e na língua falada diferem, mas o próprio campo afetivo se constitui culturalmente de substâncias diferentes. A corporalidade envolvida nos atos de fala implica relações completamente distintas que interferem no processo de elaboração de sentidos. O coda se constitui com ambas estruturas lingüísticas que se mesclam e interagem na constituição de sua subjetividade, especialmente quando a experiência com o bilingüismo se dá sem a violência colonial e o recalque da língua de sinais. Por exemplo, como seguem as palavras do CODA entrevistado:

Eu lembro quando eu comecei a lecionar, eu estava ensinando, no turno matutino, em uma escola de ouvintes, e, à tarde numa escola de surdos na mesma série. No início, eu não podia entender o que estava acontecendo. Os professores da escola de surdos me diziam que a língua de sinais era muito limitada para fornecer todos os conceitos escritos em Português. Eu fiquei chocada, porque eu usava a língua de sinais em toda a minha vida! Eu me dei conta que os surdos eram considerados deficientes, eles não eram considerados pessoas normais e eles não poderiam aprender o que deviam aprender. O pior era que os professores acreditavam que eles estavam fazendo o que estava certo. Eu, realmente, me senti muito mal.

Os ouvintes, mesmo trabalhando em uma escola de surdos, muitas vezes, não sabem a língua de sinais e nem reconhecem o seu estatuto lingüístico, social e cultural. Por outro lado, apresentam uma visão de que o Português apresenta conceitos que não podem ser expressos em uma língua “limitada”. Considerando a dicotomia estabelecida entre ambas as línguas, a língua de prestígio é o Português. Através das línguas, a relação colonial é estabelecida. Também há um status estabelecido colonialmente por meio da escrita. Observou-se que, muitas vezes, este sujeito não compartilhava dos estereótipos disseminados na escola, porque essa pessoa tinha a percepção da diferença na sua própria vida.

Conforme Bishop (2006), outra declaração presente um uma entrevista mostra como essas duas línguas fazem parte dessa forma bimodal de ser CODA:

Eu ainda tenho contato com alguns amigos que são filhos de pais surdos. Além disso, eu tenho meus primos, que também são filhos de pais surdos. Quando falamos uns com os outros em Português, algumas vezes nós usamos sinais no meio da conversa. Os sinais parecem expressar melhor algumas coisas do que as palavras em Português.

Paradoxalmente, os codas também são vítimas do próprio preconceito que cada língua porta. Muitas vezes, esse sujeito não compartilha de uma série de estereótipos disseminados nos distintos sistemas culturais, justamente porque tem a percepção da diferença em sua vivência cotidiana. Entretanto, esse sujeito não consegue apagar a leitura cultural de que faz de si e dos outros, e é intensamente afetado por ela. Por haver internalizado os sistemas de representações lingüísticos e culturais, esse sujeito reconhece os preconceitos que se incrustaram em ambas as línguas, em cada uma a sua forma. Por isso, no momento de traduzir, essa interferência do campo representacional emerge no ato da fala, e resulta em um efeito de estranhamento e mal-estar. Aquilo que seria muito claro e profundo em um contexto lingüístico em língua de sinais que se vale de estratégias de imagens para a construção de seus conceitos, perderia a sua potência e seus efeitos na língua portuguesa. Para exemplificar isso, a CODA apresentou uma explicação do conceito de interdisciplinaridade em Libras e em Português que desenvolveu juntamente com seus alunos:

Eu já havia ensinado o conceito de “interdisciplinaridade” em classes de ouvintes utilizando Português. Eu costumava explicar que nesse conceito também fazia parte o estabelecimento de relações entre os diferentes campos do conhecimento, e exemplificava com interfaces feitas entre a Educação e outras áreas como a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia, a Antropologia, entre outras. Também, eu costumava dizer utilizando palavras em Português como estas relações poderiam ser estabelecidas. Quando eu necessitava ensinar o mesmo conceito para um grupo de surdos, eu soletrava a palavra “interdisciplinaridade” e, então, eu explicava através de uma representação usando o espaço e demarcando os locais para cada área de conhecimento usando uma metáfora (cada local era uma casa). Depois usei o sinal de caminhar entre uma casa e outra como se fosse feita uma visita para trocar idéias e aprender com o outro campo de conhecimento (na casa dele). Essa relação era estabelcida entre uma casa e outra (mostra como fez em sinais). Eu jamais usaria esta metáfora em Português e ela, simplesmente, fluiu em sinais. No final, eu percebi que a explicação em sinais era estranha ao Português. É tão diferente dizer a mesma coisa em uma língua e na outra.

Em Libras poderiam ser explorados ativamente aspectos morfossintáticos de locação, orientação das mãos e verbos direcionais e a nomeação de um conjunto de disciplinas como elementos constitutivos conceituais das imagens. A representação, por exemplo de cada área como uma “casa”, situada em diferentes espaços e pessoas que se deslocam e se movimentam, em um vai-e-vem em direção a esses espaços simbólicos, pode se constituir em um processo metafórico que aproxima os sentidos de uma perspectiva contida no conceito de interdisciplinaridade. Esse processo metafórico de “dar a ver, ou visibilizar” em Língua de Sinais possibilita uma interação com o sujeito que se aproxima com imagens, que são também um conjunto de significantes.

Em língua portuguesa, pelos próprios recursos das línguas orais que operam com lógicas metafóricas de outra natureza, essa imagem exigiria uma série diferente de elementos para sustentá-la. Lógicas diferentes, com construções de sentidos diferentes. É fundamental transferir essas lógicas operativas de interação cotidiana dos surdos em língua de sinais para construção de conhecimentos complexos.

Também de acordo com o grau de formalidade ou informalidade do texto apresentado, há diferentes usos da linguagem, mas elas não estão separadas e estanques, Há um processo intensivo de intercâmbio de estruturas que se encontram e se afastam paradoxalmente. Tanto em Libras como em Português, há o uso de diferentes registros e graus de formalidade e informalidade. Os codas crescem sinalizando em situações de informalidade, em casa, com amigos surdos, nas associações de surdos e nas suas festas.

Eu cresci em uma família de surdos, sim, eu tinha um monte de surdos na minha família... primos, tios, tias e meus pais tinham muitos amigos surdos que costumavam nos visitar e vice-versa. Eu aprendi a sinalizar com essas pessoas na minha casa, na casa delas e, também, na associação de surdos. No verão, passávamos todas as férias na colônia de férias dos surdos na praia com muitos surdos de diferentes lugares, inclusive da Argentina. Eu adorava estar lá. Nós sinalizávamos o tempo todo e, também, falávamos quando estávamos entre ouvintes. No entanto, esses ouvintes compartilhavam as mesmas experiências.

(...) Quando eu estava dando uma palestra, após duas horas, eu percebi que estava cansada de sinalizar e, jamais, tinha esse sentimento em contextos informais, como em casa. Eu estava usando a língua de sinais formal sem intervalo. Eu me senti mental e fisicamente cansada.

(...) Eu lembro de estar com amigos surdos bebendo cerveja em um bar e um deles contando piadas em língua de  sinais. Ele era muito engraçado. Eu pedi para ele gravar as piadas para mim. Ele me mandou a fita. Eu a assisti e ria sozinha, mas meu marido não podia entender como eu poderia estar rindo com aquelas piadas. Eu me dei conta que elas são engraçadas apenas em sinais. (...) As piadas são engraçadas porque elas mostram a realidade por meio de situações concretas, e eu não sabia como explicá-las em Português, apesar de serem muito óbvias em língua de sinais.

s aspectos visuais e motores das línguas de sinais são muito diferentes das línguas faladas. Eles também interferem nos registros e nos níveis de formalidade das línguas de sinais. Esse CODA teve a oportunidade de desenvolver diferentes registros e níveis de formalidade em ambas as línguas, decorrente das relações estabelecidas no uso dessas línguas. A experiência de conviver com a língua de sinais com diferentes registros não é comum entre CODAs no Brasil, pois as experiências, normalmente, ficam restritas ao ambiente familiar.

O uso abundante de exemplificações durante a exposição de um assunto, bem como a possibilidade de mostrar as ações nas histórias (piadas) é específico das línguas de sinais, em razão dessa modalidade, propiciando uma maior interação dos surdos com os conceitos envolvidos. Essas possibilidades específicas das línguas de sinais são usadas para expressar tanto conceitos complexos, como conceitos simples. A questão é que há muitas formas de construir imagens na língua de sinais que não são possíveis de ser realizadas na língua portuguesa.

Isso se percebe que não se dá com a mesma freqüência em meio aos ouvintes em contexto escolar com a língua portuguesa, que, às vezes, parecem prescindir de determinados tipos de construções de imagens, as quais seriam fundamentais no processo criativo. As formulações alternativas, as soluções múltiplas e a descoberta de problemas, tão necessários como as soluções são conquistas que se pode obter no cruzamento interativo entre línguas e linguagens.

As fronteiras entre formalidade e informalidade também têm estreita relação com os paradigmas construídos dentro de uma sociedade ainda fortemente estratificada e discriminada em classes sociais. Os usuários de variantes dialetais da língua portuguesa, por exemplo, sofrem com o peso do prestígio do Português padrão. A ilusão utópica de um Brasil monolíngue ainda vigora, apesar de muitos esforços no sentido contrário.

Libras, nos meios acadêmicos, apresenta um outro estatuto de comunicação. Em conversas informais, a sinalização assume contornos que marcam um estilo diferente de sinalizar, com sinais mais familiares, com mudança do uso da própria intensidade da palavra, porque o efeito de retórica e a subjetividade implicada assumem outra relação. As representações lingüísticas tomam, portanto, formas intrinsecamente relacionadas com os espaços políticos ocupados e a posição de sujeito assumida no ato de enunciação. No momento de sinalizar, também os tipo de espaço se constituem em textos que interferem na produção de sentido. Os sujeitos bilíngües são atravessados por esse conjunto de variáveis que se dão em ambas as línguas, o que implica o domínio de estruturas língüísticas e simbólicas que se cruzam em determinado momento, e se separam em outro. E, às vezes um sistema pode prevalecer sobre o outro:

As regards discourse dominance, one language may be seen by the bilingual as more appropriate or better suited in a given situation with respect to audience, topic, situation, and so on. The different usage of the two languages is subject to different domain and function allocations. That is why a bilingual child may feel more comfortable talking to a particular individual in one language rather than another or might find one language better suited to a particular task or activity (e.g. playing with toy characters). Although one cannot rule out the notion of equal status of the two linguistic systems in some contexts for a bilingual child, the dominance of one system cannot be denied in the overall interactional domain of a bilingual child. (Bhatia & Ritchie, 1999:574).

Quando duas línguas são desenvolvidas a fim de estabelecer as competências gramaticais e pragmáticas, elas não apresentam uma relação simétrica. Um sistema pode ser mais apropriado do que outro em algumas circunstâncias, dependendo do contexto, dos fatores sociais, temporais e da forma do input. Além disso, a predominância de uma língua também depende da “estrutura de sentimento” envolvida que abarca uma série de fatores subjetivos que entram em relação.

A perspectiva bilíngüe de um CODA em escola de ouvintes é negligenciada. O reconhecimento dessas características culturais, sociais e lingüísticas, que deveriam ser tomadas como elementos relevantes para o seu processo interativo escolar, é neutralizado. Na maioria da vezes, a escola recebe essa criança ouvinte, filha de pais surdos, e estabelece um muro que a separa de seus pais. Dentro dessas escolas, os pais se tornam figuras alienígenas, não recebem o feedbak em relação aos seus filhos, porque a maioria delas não está preparada nem para compreender a cultura surda e muito menos a língua de sinais. Isso cria uma cisão entre o mundo escolar e o universo íntimo, espaços que concorrem de maneira distinta na forma de colocar relevância aos assuntos e construir um olhar para a realidade.

Há uma negligência ao estatuto bilíngüe do CODA entrevistado, que também se observa entre outros CODAs. O reconhecimento desse estatuto lingüístico e suas repercussões sociais e culturais são neutralizadas nos processos interativos escolares.

Fica claro nas palavras do CODA entrevistado que sua escola estabelecia uma barreira entre ela e seus pais. A escola não sabia língua de sinais e não tentava se comunicar com sua família. A escola estava organizada dentro dos padrões lingüísticos estabelecidos conforme a organização brasileira, isto é, na língua portuguesa. O espaço privilegia as línguas faladas e costuma não reconhecer as línguas que não estão em seu currículo. A escola desconhece os surdos e sua língua. Então, quando esta criança precisa ir à escola, ela se sente fora de seu mundo, ela não tem uma relação de pertencimento com aquele espaço. Para a escola, os pais surdos são vistos como alienígenas. A escola não consegue atribuir a esses pais o status de pais, por que eles são surdos. Eles não são vistos como pais, mas vistos como surdos. A eles não é outorgado o direito de serem pais. A escola repassa à própria criança a responsabilidade dos pais, porque ela ouve. Esse ponto é trazido por Preston (1995) em suas entrevistas com CODAs. Nas palavras do entrevistado para esse artigo, a escola foi relacionado com o mundo ouvinte e, conseqüentemente, com a língua portuguesa e não com as pessoas surdas e a língua de sinais. Isso parece estabelecer uma lacuna entre sua família e a escola à qual ela, definitivamente, não pertencia. Por outro lado, ela é ouvinte e necessitava freqüentar esse espaço. Então, a zona de contato é forçada pela sociedade e tem que ser estabelecida. Isso reflete sua posição no mundo.

A escola era a porta de entrada para o mundo ouvinte, completamente disconectado do mundo surdo. Eu tive que aprender isso e não foi fácil. Minha família não falava sobre isso; eles simplesmente queriam que eu fosse para a escola, porque estudar era muito importante para a minha vida. Eu não falava Português quando cheguei na escola, mas lembro que eu entendia as pessoas, apesar de não falar essa língua. Eu só usava a língua de sinais , mas eu sabia que eu não podia usar essa língua com aquelas pessoas. Elas simplesmente não sabiam nada da língua de sinais! Era muito difícil para mim, uma vez que minha vida era na língua de sinais, a língua que eu me sentia à vontade em usar. Na escola, eu não tinha alternativa e minha família ainda ficava muito triste comigo, uma vez que eles esperavam que eu ficasse feliz em ir para escola para aprender. O meu maior problema foi que a escola não sabia nada sobre a minha língua de sinais e a minha família surda. Meus colegas tiravam sarro dos meus pais todo o tempo. Eu tive que conviver com uma perspectiva ouvinte da surdez que eu não compartilhava. Para mim, era normal ser surdo, mas para eles era algo ruim. Eu não gostei da minha primeira escola. Apesar disso, meus pais estavam tão confiantes sobre a escola que nem se importavam com o que a escola pensava sobre eles. Eles sempre me diziam que as pessoas zombavam deles, porque não conheciam as pessoas surdas e sua língua de sinais. Nesse sentido, meus pais nos colocam em vantagem em relação aos ouvintes da escola, pois nós sabíamos sobre os surdos, sobre a língua de sinais e que, ainda, eu iria aprender a ler e escrever a língua portuguesa. Essa foi a mensagem dada pelos meus pais a mim, especialmente da minha própria mãe. Para mim, como uma CODA, esse contexto não era fácil e eu tive que aprender como lidar com essas diferentes perspectivas. O Português era uma língua que eu devia aprender para falar, ler e escrever, e a língua de sinais era a língua usada pela comunidade surda. Para os meus pais surdos, aprender o Português era algo que me colocava em uma posição de vantagem, uma vez que me daria condições de mudar meu status e, também, me tornaria uma intérprete ainda melhor para eles. O Português teve uma função instrumental relacionada com a possibilidade de melhorar meu nível educacional. Isso foi traduzido para a minha vida inteira.

O espaço escolar, tanto para surdos quanto para codas que tem uma relação intensa com a língua de sinais no espaço doméstico e pouca relação com a língua portuguesa, se constitui na metáfora dura do encontro com o outro que não sabe sinais e nem quer saber. CODA s e surdos compartilham, apesar de suas diferenças, uma cumplicidade aproximada na structure of feeling:

Eu sempre lembro de pessoas surdas falando que os professores surdos são melhores do que os professores ouvintes. Eu posso entender o que eles querem dizer. Eles não querem dizer que não haja professores surdos que não sejam bons professores. O que acontece é que você precisa conhecer a pessoa surda, o mundo surdo, para entender essa colocação. Quando alguém diz “bem, você é filho de pais surdos, você entende”, ou “você entende o que eu (surdo) signifiquei ao dizer isso”, ou “você entende como uma sala de aula com surdos deve ser organizada” .... Isso significa que você tem que conhecer muito bem as pessoas surdas para entender as formas que as pessoas surdas organizam a sua língua, seus pensamentos, suas idéias, suas formas de ser. Quando um surdo vem e me diz “ah... agora entendo porque você sabe, você é filho de pais surdos”, isso signfica muito. As pessoas que sabem sobre as pessoas surdas e sua língua podem ser capazes de perceber o mundo em outra, perspectiva, na perspectiva surda. Você tem que conhecer surdos para falar sobre eles. Você tem que conhecer a sua língua para discutir sobre eles. Se você não conhece, você provalvemente não vai alcançar essa perspectiva. Hoje eu percebo o quão diferente é dizer algo em uma língua e em outra em se tratando do mesmo assunto. Não é só um conhecimento gramatical que está implicado, mas um conhecimento discursivo que apresenta diferentes perspectivas em cada língua. Eles podem ser intercambiados, uma vez que são compartilhadas pela mesma pessoa, mas eles apresentam diferentes formas de encontrar os elementos em cada língua. Se você não conhece a língua de sinais usada pelos surdos brasileiros, você pode ensinarlhes algo, mas a interpretação que esse conhecimento terá na língua de sinais será outra. Eu estou nos dois mundos, uma vez que sou uma CODA, sou ouvinte, mas tenho um tipo de perspectiva surda. Esses mundos em que cresci e que fazem parte de mim tornaram-me bilíngüe. Eu sou somente uma pessoa com duas línguas, compartilhando diferentes formas de ver os mundos possíveis. Isso não significa que esses mundos não sejam atravessados um pelo outro, pois eles são. Eu aprendi muito sobre as diferenças crescendo dessa forma. Isso foi possível porque cresci convivendo com os dois mundos, o mundo surdo e o mundo ouvinte.

A empatia é um dos elementos que reforça a busca por estratégias adequadas para atender de fato as necessidades do outro. A empatia de uma coda é um processo de abertura ao conjunto de problemáticas vistas a partir de ângulos comuns aos surdos. Embora os dilemas sejam distintos frente às experiências com a alteridade, há muitos pontos similares no que tange aos aspectos discriminatórios presentes na sociedade que não reconhece as diferenças. A escola reflete essa sociedade.

No Brasil, as pessoas que sabiam língua de sinais eram consideradas intérpretes. Como os CODAs usavam língua de sinais, eles tornavam-se intérpretes compulsoriamente, pelo menos para as próprias famílias. Para as famílias surdas, os CODAs são vistos como possíveis “pontes” entre os mundos surdo e ouvinte. Na geração do CODA entrevistado, as famílias surdas desejavam intensamente ter intérpretes dentro da família para “ajudá-los” a conectar-se com o mundo ouvinte. Isso pode ser entendido com um sentimento beneficente (advocate feeling), assim como mencionado por Preston (1995). No presente caso, os valores das línguas são colocados e nessa família surda a língua de sinais é muito importante e o CODA a herda.

Quando eu tinha cinco anos, minha mãe me levou para uma grande loja e pediu para eu ajudá-la a preencher um formulário para aprovar o crédito. A mulher ia me pedindo as informações e eu as pedia para a minha mãe em sinais, que me passava as informações e eu as traduzia para a mulher, uma a uma, uma vez que eu ainda não sabia ler. Minha mãe me via como uma pessoa que estabelecia a comunicação entre ela e o outro e isso fazia parte de nossa educação. Eu cresci em uma família com pais surdos, além de outros familiares surdos e com os amigos surdos da minha família. Eu cresci em um ambiente muito “surdo”! Meus pais nunca tiveram educação oral (Graças a Deus!), pois assim ser surdo era normal. O problema era não saber sinalizar. Eu lembro de outras crianças gozando de meus pais imitando os movimentos das mãos, mas meus pais não se importavam e me diziam para ignorá-los, pois eles eram uns pobres coitados, eles não entendiam a língua de sinais. Meus pais sentiam pena deles.

As referências visuais de um coda, que resultam das mediações pelos familiares e membros da comunidade surda, passam a figurar como uma espécie de estatuto do olhar, com uma rede de significantes que se transfere para os vários outros momentos da sua vida. A profundidade da experiência visual marca sua subjetividade, e a impressões que os pais transmitem acerca da importância do olhar produz significações em suas vidas:

Eu também lembro que meus pais falavam que era muito triste ser cego. Isso sempre esteve muito presente. Eu tive um tio surdo com Síndrome de Usher e ele estava ficando cego. Minha família sempre deu muito importância aos olhos. A possibilidade ver as coisas, de ver o mundo, era algo maravilhoso. Eu notei que, mesmo sendo ouvinte, eu podia não ouvir. Isso acontece até hoje comigo. Minha casa era muito barulhenta, mas eu nunca havia notado isso. A TV ficava em um volume altíssimo e as batidas das portas eram bem fortes. Eu morava em uma casa em que o assoalho era todo em madeira, assim, uns chamavam os outros batendo o pé. E, quanto mais longe, mais altas eram as batidas, para provocar a vibração suficiente para o outro sentir. Nossa casa era muito barulhenta. Eu simplesmente não ouvia  esses sons. Meu marido ouvinte começou a chamar a minha atenção e me fazer perceber o quanto eu me desligava e o quanto eu mesma provocava muito ruído. Parecia que eu selecionava os sons e não os processava na minha mente. Por outro lado, meus olhos sempre foram muito atentos a tudo e minha visão tem uma amplitude maior. Ver significa muito para mim. É incrível que uso as mesmas estratégias usadas pelos surdos quando não quero conversar. Eu simplesmente desvio o olhar e para mim não há conversa se não estou olhando para o outro, mesmo que ele continue falando, independente da pessoa ser surda ou não. Isso eu aprendi e atravessa as fronteiras entre surdos e ouvintes.

Retomando um conceito de “safe house” usado por Pratt de sujeitos em zonas de contato, os CODAs encontram na comunidade surda o espaço de segurança, o porto seguro para viver a intensidade de uma língua constituída no corpo e na forma de olhar. Libras é o reencontro e o conforto de uma segurança de volta à casa paterna, a “safe house”; o Português, por outro lado, é a língua do colonizador, a necessidade da zona fronteiriça de contato, que impõe espaços de negociação e a revisão permanente do encontro com o outro ouvinte, que faz parte também do ser coda. Então, faz-se necessário estar na zona de contato, nas fronteiras, nas margens que se constróem nas linhas de diferença. Torna-se fundamental construir espaços de negociação para um CODA sobreviver nesse contexto. A negociação é um espaço de tensão constante na vida do CODA nas relações com os outros surdos e outros ouvintes.

Palavras finais

Este artigo trouxe alguns aspectos sobre as zonas de contato de uma CODA brasileira discutindo as relações entre as línguas de sinais e falada no Brasil. Alguns aspectos foram trazidos com o objetivo de iniciar este campo de investigação nesse país e de dar uma contribuição sobre os contextos brasileiros para este volume. Essa CODA compartilhou conosco suas experiências relacionadas com suas línguas trazendo elementos para a análise das zonas de contato que se estabelecem nas fronteiras, nas margens. Pesquisadores não costumam prestar atenção nos interespaços (assim como discutido por Bhabha, 1998, ao se debruçar nas sociedades colonizadas). Nós começamos a prestar atenção nas zonas de contato que podem trazer elementos que apresentam uma riqueza de informação para contribuir para as conexões entre os surdos e os ouvintes. Não é um espaço confortável, porque estar “entre” gera conflito, gera embate. Por outro lado, estar “entre” também é estar em ambos lugares com duas línguas. Isso pode dar ao CODA uma posição vantajosa nos processos de negociação. No entanto, os conflitos são sempre tensos e podem ser perversos.

Notas

2 No Brasil, a maioria das crianças surdas estão em escolas regulares, cuja língua de instrução adotada é a língua portuguesa. Em algumas dessas escolas há intérpretes de língua de sinais, e a Educação Especial fornece suporte pedagógico aos alunos. Também há algumas escolas com educação bilíngüe, especialmente no sul do país. (Skliar/Quadros 2005).
3 Mais informações podem ser obtidas no site www.libras.ufsc.br.

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