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Ronice Müller de Quadros
Ronice Müller de Quadros
Professora e Investigadora
Políticas Lingüísticas e a Educação de Surdos no Brasil
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Publicado em 2007
V Congresso Internacional e XI Seminário Nacional do INES, 2006, Rio de Janeiro. Anais do Congresso: Surdez, família, linguagem e educação. Rio de Janeiro: INES,2007. v.1. p.94-102
Ronice Müller de Quadros
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Resumo

Este trabalho apresenta alguns significados atribuídos pelos surdos à língua de sinais. No contexto brasileiro, caracterizaram-se práticas e políticas lingüísticas que se basearam em imposição da língua falada objetivando a assimilação da língua portuguesa padrão como modelo de sucesso escolar. A política lingüística brasileira ainda é pautada na crença de que o país seja monolíngüe, favorecendo a língua portuguesa em detrimento das tantas outras línguas existentes no nosso país (Quadros, 2005), apesar de haver mudanças decorrentes do Decreto 5626 de 2005 considerando a língua brasileira de sinais. Desconstruir esse processo significa passar por um processo de reflexão, de (des-) estruturação, formação de profissionais, criação de novos espaços de trabalho e, em especial, inversão da lógica das relações. É preciso reconhecer o que representam as línguas para os próprios surdos. O espaço de negociação instaura-se no reconhecimento do outro. E mais importante ainda, os surdos sendo participantes ativos da significação e atribuição de espaços para as línguas na educação dos próprios surdos. Apesar de ser eu ouvinte, este artigo é uma tentativa de trazer perspectivas e reflexões dos próprios surdos sobre os significados da língua de sinais no contexto educacional.

A língua de sinais

A língua de sinais é a minha língua, afinal de contas, a mão é sua ou é minha? (Gelda Maria de Andrade, Depoimento concedido à TV Minas, 1996)

Desde antes da proibição do uso da língua de sinais em sala de aula à permissão do seu uso, os surdos usam e abusam da língua de sinais brasileira em diferentes espaços da sociedade. Essa língua se constituiu na “comunidade surda brasileira”, principalmente dos grandes centros urbanos, no encontro surdo-surdo 2.

Considerando que a cultura surda mostra uma nostalgia curiosa em relação a uma “comunidade imaginária” e que é barbaramente ou profundamente transformada, senão destruída no contato com a cultura hegemônica, ela age como reguladora da formação da identidade surda, que se reaviva novamente no encontro surdo-surdo. Este encontro é um elemento chave para o modo de produção cultural ou de identidade, pois implica num impacto na “vida interior”, e lembra da centralidade da cultura na construção da subjetividade do sujeito surdo e na construção da identidade como pessoa e como agente pessoal. (Miranda, 2001) 3

Os surdos brasileiros resistiram à tirania do poder que tentou silenciar as mãos dos surdos, mas que, felizmente, fracassou neste empreendimento autoritário. Os surdos adquiriram a língua de sinais pela janela, como diz Basso (2003), mas a adquiriram e perpetuam por meio do seu uso com outros surdos, valores, idéias e concepções de mundo.

As línguas de sinais de vários países foram preservadas e passadas de geração em geração por meio das associações de surdos e famílias de surdos. No Brasil, as associações de surdos sempre mantiveram intercâmbios por meio de redes possibilitando contatos entre surdos do país inteiro 4. As festas, os jogos, os campeonatos, as sedes organizadas por surdos são formas de interação social e lingüística que não aparecem nas escolas de surdos (muito menos nas escolas regulares) por representarem movimentos de resistência a um sistema que poda, que determina, que lesa a formação da comunidade surda brasileira.

Que significados os surdos atribuem a sua própria língua? Com base em trechos de conversas com surdos sobre a língua de sinais, apresento algumas possíveis reflexões sobre esta pergunta 5.

Eu me sinto melhor usando a língua de sinais. Acho que é mais fácil, leve e suave. Eu gosto de conversar na língua de sinais, não preciso fazer esforço, pois a conversa flui. Os sinais saem sem eu pensar, muito melhor. Posso falar de tudo na língua de sinais. Eu aprendo sobre as coisas da vida, sexo, trabalho, estudos, tudo na língua de sinais. Eu gosto de encontrar com outros surdos só para conversar, pois consigo relaxar. Eu prefiro usar sinais, mais fácil, melhor. [S. 2000].

Nesta passagem, percebe-se que a língua de sinais apresenta a possibilidade efetiva de troca com o outro. Além disso, é uma língua que possibilita aos surdos falar sobre o mundo, sobre significados de forma mais completa e acessível, uma vez que se organiza visualmente. Também se percebe o quanto é prazeroso o uso desta língua conforme enfatizado no trecho a seguir:

A língua de sinais é a língua em que eu me comunico, diferente da língua falada. Por meio dos sinais consigo pensar sobre as coisas da vida, é uma língua que faz eu pensar. Eu quero que todas as crianças surdas tenham a chance de aprender a língua de sinais desde pequenas com outros surdos, porque é uma língua que faz parte do mundo dos surdos, do povo surdo. A língua de sinais possibilita organizar as idéias de um jeito próprio dos surdos que é diferente do ouvinte. [G. 2004].

Neste trecho, observa-se a contextualização da língua na cultura surda 6 enquanto elemento constituidor da identidade surda.

Essa cultura é multifacetada, mas apresenta características que são específicas, ela é visual, ela traduz-se de forma visual. As formas de organizar o pensamento e a linguagem transcendem as formas ouvintes. Elas são de outra ordem, uma ordem com base visual e por isso têm características que podem ser ininteligíveis aos ouvintes. Ela se manifesta mediante a coletividade que se constitui a partir dos próprios surdos. A escola a muito tem representado o lugar em que os surdos não possuem os seus espaços, pois baniu a língua de sinais e jamais permitiu a consolidação dos grupos surdos e de suas produções culturais. Assim, a coletividade surda garantiu-se através de movimentos de resistência com a fundação de organizações administradas essencialmente por surdos. Em muitas dessas organizações, ouvintes não são permitidos no corpo administrativos. O que acontece aqui é o clamor pela coletividade surda com a constituição de suas regras e de seus princípios e um confronto de poderes. Nesse espaço com fronteiras delimitadas por surdos é que se constitui a cultura surda. Em alguns casos, até admite-se a existência dessa cultura, mas enquanto cultura subalterna ou minoritária, jamais como cultura diferente. (Quadros, 2003:86).

Da mesma forma, tais questões reaparecem na narrativa daqueles surdos que falam explicitamente das posições de poder de surdos e ouvintes, sobre cultura surda, sobre identidade surda e a escola de surdos. Seguindo Bhabha (2003:20-21), estas precisam ser colocadas além das discussões que já vem sendo travadas no campo dos estudos surdos. “Além”, aqui, significa distância espacial, marca um progresso, promete um futuro ou o limite – estar além é habitar um espaço intermédio – residir no além é, ainda, ser parte de um tempo revisionário, “pois é na emergência dos interstícios – a sobreposição e o deslocamento de domínios da diferença – que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação, o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados”.

Ainda seguindo as formulações de Bhabha, de que modo se formam sujeitos nos “entre-lugares”, nos excedentes da soma das “partes” da diferença? De que modo chegam a ser formuladas estratégias de representação ou aquisição de poder no interior das pretensões concorrentes de comunidades em que, apesar das histórias comuns de provação e discriminação, o intercâmbio de valores, significados e prioridades pode nem sempre ser colaborativo e dialógico, podendo ser profundamente antagônico, conflituoso e até incomensurável?”. O autor segue suas reflexões que se aplicam as falas dos surdos quanto à invenção da surdez embebida na cultura, mas apenas nas relações culturais apropriadas entre os próprios surdos, mas nas relações com os seus outros surdos, deficientes auditivos e ouvintes. “A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição, (...) mas sim uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica”. Instaura-se neste momento, um processo de negociação com menos ou mais embates entre as diferenças.

Nesse sentido, não buscando formular uma cultura enquanto uma essência do ser surdo, este trabalho traz o termo “cultura surda” como instrumento para analisar as nuances que se manifestam entre os surdos com os próprios surdos e nas escolas na relação com os seus alunos surdos e colegas ouvintes. Estes surdos neste tempo apresentam uma visão e uma construção cultural imersas em determinadas condições políticas. Assim, “a passagem intersticial entre identificações fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta” (Bhabha, 2003:22). Nas relações com os ouvintes, manifestam-se estratégias de resistência que se expressam nas falas dos surdos. Além disso, nessas relações, o estranhamento deve ser considerado, pois os surdos não poderiam retornar a sua vida sem perceber que tinham aprendido ou reproduzido idéias e modos dos ouvintes que inconscientemente adotaram.

Perlin (1998) 7 analisa alguns pontos a respeito da identidade surda calcando seus ensaios na questão do ser igual, da proximidade enquanto necessidade da pessoa surda. A autora usa a expressão “óculos surdos”, diga-se de passagem, uma expressão especialmente visual, uma expressão “surda”. A autora prossegue suas reflexões da seguinte forma:

É uma identidade subordinada com o semelhante surdo, como muitos surdos narram. Ela se parece a um imã para a questão de identidades cruzadas. Esse fato é citado pelos surdos e particularmente sinalizado por uma mulher surda de 25 anos: aquilo no momento de meu encontro com os outros surdos era o igual que eu queria, tinha a comunicação que eu queria. Aquilo que identificavam eles identificava a mim também e fazia ser eu mesma, igual. O encontro surdo-surdo é essencial para a construção da identidade surda, é como abrir o baú que guarda os adornos que faltam ao personagem. (Perlin, 1998:54)

Nesse contexto, a língua de sinais é trazida como elemento constituidor dos surdos na relação com outros surdos e na produção de significados a respeito de si, do seu grupo, dos outros e de outros grupos. O encontro surdo-surdo representa, pois, a possibilidade de troca de significados que na língua de sinais, nas políticas, na marcação das diferenças carregam a marca da cultural. Assim, o outro igual é aquele que usa a mesma língua e que consegue trilhar alguns caminhos comuns que possibilitam o entendimento sem esforços de outra ordem. O processamento mental é rápido e eficiente, além de abrir possibilidades de troca efetiva e o compartilhar, o significar, o fazer sentido. Os caminhos comuns passam por formas surdas de pensar e significar as coisas, as idéias e os pensamentos necessariamente na língua de sinais.

Ao se referirem à língua de sinais, há uma tendência de compará-la ao português. Nos trechos já destacados, sempre foram feitos comentários expressando de forma explícita ou implícita uma relação com o português. A língua de sinais é melhor, é mais fácil e assim por diante. Esses trechos foram retirados de surdos letrados no português, assim o seu estatuto bilíngüe lhes permite comparar uma língua com a outra. Além disso, existe uma relação de poder instituída entre as línguas que reforçam a dicotomia língua de sinais e língua portuguesa, neste caso sendo a língua de sinais o primeiro elemento, visto como o melhor e a língua portuguesa vista negativamente. Posteriormente voltaremos a discutir os significados atribuídos a língua portuguesa nesta perspectiva.

Ladd (2003) situa o momento atual como pós-colonial em que os surdos passam a ser aqueles que respondem pelas línguas de sinais.

Como muitas pessoas surdas sabem, há um gênio particular nas línguas (e nos próprios surdos), que por si só, diferente de qualquer língua falada, sofisticou uma comunicação internacional a qual não se baseia em qualquer língua nacional. Quando o seu trabalho entra neste terreno, você começa a encontrar talvez o ponto tolerável da cultura surda – que é um povo. As pessoas surdas precisam saber, por muito tempo quiseram saber, como esta crença é construída, e o que as partes podem constituir. Quanto mais se sabe sobre isso, melhor nós podemos entender a nós mesmos, articular nossas crenças e, quanto mais nós ensinamos eles, melhor, não somente as crianças surdas e seus merecidos pais. Nós precisamos saber quais são as características gramaticais desse fenômeno lingüístico global, mas também, precisamos explorar o que é único de cada cultura de nossas culturas surdas e como elas operam dialetalmente com outras línguas. Isso é importante, pois nós encontramos um ponto pós-colonial em que estudando e publicando sobre a cultura surda não é somente o próximo passo, mas também possivelmente o final do divisor de águas acadêmico para este movimento específico de liberação. Ladd (2003:7)

Neste momento, também no Brasil, muitos surdos se apropriam da própria língua e fazem um movimento intenso para garantir seus direitos de acesso a ela. Os próprios surdos tomam a frente dos movimentos para reconhecimento legal. Os surdos reivindicam a presença de intérpretes de língua de sinais em diferentes espaços, incluindo os espaços de negociação com os ouvintes para pensarem e definirem aspectos relacionados com a vida dos surdos. Dessa forma, a autoria surda passa a ser representada em algumas instâncias delineando o período pós-colonialista em relação aos surdos brasileiros. Isso se traduz na presença dos surdos no Ministério da Educação, na restrição do ensino da língua de sinais aos instrutores necessariamente surdos, na articulação dos movimentos surdos, na legislação.

Ladd recoloca as prioridades em relação aos estudos das línguas de sinais a partir da perspectiva surda. Os surdos querem entender suas origens, buscar explicações de como se constituiu a sua língua. Como afirma Ladd (2003:14), se entendemos que um povo se torna des-colonializado quando estabelece seus próprios interesses, planeja seu próprio futuro, precisamos nos perguntar quais são as prioridades que estamos apresentando para as nossas investigações. Os surdos querem saber da própria língua no sentido de desvendar a sua constituição no passado e no presente.

Se os lingüistas perguntassem aos surdos como eles gostariam de ver os recursos alocados em pesquisas, a maioria responderia que gostariam de vê-lo alocado ‘na história das línguas de sinais’, bem como, ‘nas diferenças regionais’. Por alguma razão, que não é fácil de ser sintetizada, as pessoas surdas têm a sensação de esses serem tópicos de importância vital. Nós entendemos até o momento que aspectos sintáticos e morfológicos têm requerido prioridade no processo de re-estabelecimento das línguas de sinais em direções que podem ser de uso prático para a educação e a interpretação. Mas, eu espero que eu tenha demonstrado aqui que estas prioridades estão mudando agora. (Ladd, 2003:13)

Na entrevista que fiz a uma candidata surda ao mestrado em lingüística, perguntei por que ela estava interessada em estudar a origem dos sinais brasileiros por meio de registros existentes de um conjunto de itens lexicais e por meio de diferentes gerações de surdos. A candidata me respondeu:

É importante guardar a história da língua de sinais brasileira. Eu não quero que ela se perca, mas quero que entendamos como ela se constituiu. Precisamos guardar a história da língua de sinais para poder ensiná-la aos nossos alunos surdos. Eles precisam conhecer como a nossa língua de constituiu. Antes ela era diferente e foi se transformando no que é agora. Os surdos mais velhos têm sinais diferentes e eles estão morrendo. Se não nos preocuparmos em ver agora como eles faziam os sinais, depois será muito mais difícil. Precisamos aproveitar os que estão vivos para nos contar como fazem ou faziam os sinais que mudaram. É importante isso. Eu quero estudar isso para não perder a história da nossa língua. [A. 2005]

A língua de sinais apresenta um valor inestimável para os surdos e para aqueles que crescem na comunidade surda. É uma língua que permite adentrar e participar de um grupo, o grupo de surdos. Isso ultrapassa fronteiras nacionais, como afirma Ladd. Os olhares dos surdos se cruzam independentemente da sua nacionalidade possibilitando o contato, mesmo com línguas de sinais diferentes. A língua de sinais para os surdos é a possibilidade de adentrar e significar o mundo.

As línguas e os espaços de negociação na educação de surdos: uma questão de políticas lingüísticas

Agora sei que a minha língua é a língua de sinais. Agora sei também que o português me convém. Eu quero ensinar português para os meus alunos surdos, pois eles precisam desta língua para ter mais poder de negociação com os ouvintes. [G. 2004] (Nota da autora: professora surda discutindo sobre estratégias de como ensinar a língua portuguesa para os seus alunos surdos).

As políticas lingüísticas ainda acreditam no caráter instrumental da língua de sinais brasileira na educação de surdos. As línguas que fazem parte da vida dos surdos na sociedade apresentam papéis e representações diferenciadas caracterizando uma forma bilíngüe de ser (Quadros, 2005). O fato dos surdos adquirirem a língua de sinais como uma língua nativa fora do berço familiar com o povo surdo, demanda à escola um papel que outrora fora desconhecido. Já se reconhece que a língua de sinais é a primeira língua, que a língua portuguesa é uma segunda língua, já se sabe da riqueza cultural que o povo surdo traz com suas experiências sociais, culturais e científicas. Neste momento póscolonialista, a situação bilíngüe dos surdos está posta, no entanto, os espaços de negociação ainda precisam ser instaurados. As políticas lingüísticas ainda mantém uma hierarquia vertical entre o português e as demais línguas no Brasil, apesar de algumas iniciativas no sentido de reconhecimento das “diversidades” lingüísticas do país.

Estamos diante de um processo simbólico de negociação política: a língua de sinais brasileira e a língua portuguesa no espaço educacional em que o surdo está inserido. Os espaços políticos que cada língua representa para uns e para outros não são os mesmos. Os viéses são ambivalentes constituindo o que Bhabha (2003) refere como os entre-lugares por meio de relações intersticiais. Não estamos mais diante de argumentações oposicionais, mas de entre-meios, de fissuras, de objeções, de representações simbólicas que formam uma trama que vira um drama para a vida dos surdos brasileiros. Daí podemos partir para as negociações nos embates sobre as políticas lingüísticas. “Negociações” somente são possíveis quando o outro deixa de ser convidado e passa a ser integrante da rodada. Enquanto convidado, a sua posição sempre é subalterna a de quem o convidou. Assim, os espaços de negociação tornam-se possíveis quando o outro passa a ser um eu no espaço compartilhado sendo ao mesmo tempo o outro diante do outro eu traduzindo-se nas alteridades que convivem umas com as outras. Assim, segundo Bhabha (2003), a negociação toma forma no lugar da negação. Os surdos não precisam mais negar a língua portuguesa, assim como os ouvintes não precisam mais negar a língua de sinais brasileira. Instaura-se a negociação, um campo que vai além, abrindo espaços, lugares e objetivos híbridos. Não significa dizer que a educação de surdos terá as duas línguas, mas que as duas línguas estarão em espaços de negociação que não se traduzem em um ou outro lugar, mas em entre-lugares, em territórios de ambos. As relações, portanto, são de ordem muito mais complexa e, por isso, a negociação política torna-se invariavelmente necessária.

Para esse fim deveríamos lembrar que é o “inter” – o fio cortante da tradução e da negociação, o entre-lugar – que carrega o fardo do significado da cultura. Ele permite que se comecem a vislumbrar as histórias nacionais, antinacionalistas, do “povo”. E, ao explorar esse Terceiro Espaço, temos a possibilidade de evitar a política da polaridade e emergir como os outros de nós mesmos. (Bhabha, 2003: 69).

Notas

2 Perlin (1998) descreve o significado do encontro surdo-surdo por meio do seguinte depoimento: “É uma identidade subordinada com o semelhante surdo, como muitos surdos narram. Ela se parece a um imã para a questão de identidades cruzadas. Esse fato é citado pelos surdos e particularmente sinalizado por uma mulher surda de 25 anos: aquilo no momento de meu encontro com os outros surdos era o igual que eu queria, tinha a comunicação que eu queria. Aquilo que identificavam eles identificava a mim também e fazia ser eu mesma, igual. O encontro surdo-surdo é essencial para a construção da identidade surda, é como abrir o baú que guarda os adornos que faltam ao personagem”. (Perlin, 1998:54)
3 Grifo meu.
4 Redes estas que foram fortalecidas por meio das festas de aniversário das associações de surdos, dos jogos, das competições esportivas. Os surdos sempre se organizaram em verdadeiras caravanas para se deslocarem até à instituição que sediava e sedia o ato cultural, esportivo e social. Por meio destes contatos, os amigos e líderes se encontravam e encontram para trocarem idéias e contarem as novidades. Atualmente, estas redes estão potencializadas por meio do uso de celulares e Internet.
5 Foram realizadas registradas conversas com vários surdos e transcritos aqui apenas trechos considerados pertinentes para o objetivo deste artigo. Entre estes surdos, dois fazem parte de família de surdos [E. e I.] e os demais são surdos de família ouvinte que estão na comunidade surda. Os depoimentos estão registrados em português em forma de citação se opondo às citações de trechos de autores que estão em itálico.
6 Entende-se cultura surda como a identidade cultural de um grupo de surdos que se define enquanto grupo diferente de outros grupos. A cultura é esse padrão de organização, essas formas características de energia humana que podem ser descobertas como reveladoras de si mesmas – “dentro de identidades e correspondências inesperadas”, assim como em “descontinuidades de tipos inesperados” – dentro ou subjacente a todas as demais práticas sociais. A análise de cultura é, portanto, “a tentativa de descobrir a natureza da organização que forma o complexo desses relacionamentos” (Hall, 2003:136). Como diz Perlin (1998:54), os surdos são surdos em relação à experiência visual e longe da experiência auditiva.
7 Gladis Perlin é uma mulher surda, professora da UFSC, que desenvolve pesquisas no campo das identidades surdas e sobre as pedagogias dos surdos.

Bibliografia

BASSO, I. Educação de pessoas surdas: novos olhares sobre velhas questões. Dissertação de Mestrado em Educação. Universidade Federal de Santa Catarina. 2003.

BHABHA, H. K. O local da cultura. Editora UFMG: Belo Horizonte. 2003.

DERRIDA, J. DE LA GRAMATOLOGÍA [De la Grammatologie. Collection Critique, Paris, Minuit, 1967] In http://personales.ciudad.com.ar/Derrida/textos.htm Acessado em 10 de outubro de 2005.

HALL, S. 2003. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Editora UFMG: Belo Horizonte. 2003.

LADD, P. Time to locate the big picture? In Cross-linguistic perspective in sign language research. Selected papers from TISLR 2000. 2003.

MIRANDA, W. Comunidade dos surdos: olhares sobre os contatos culturais. Dissertação de Mestrado. UFRGS. Porto Alegre. 2001.

PERLIN, G. Identidades surdas. In SKLIAR, C. (org.). Um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Ed. Mediação, 1998.

QUADROS, R. M. O contexto escolar do aluno surdo e o papel das línguas. Na Revista Espaço. INES. 1998.

QUADROS, R. M. de. Situando as diferenças implicadas na educação de surdos: inclusão/exclusão. Revista Ponto de Vista. No.5. 81-112. NUP. Florianópolis. 2003.

QUADROS, R. M. De. O bi do bilingüismo na educação de surdos. Em Surdez e bilingüismo. Eulalia Fernandes (org.). Editora Mediação: Porto Alegre. 2005.

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