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Contadores de histórias surdos na arte em movimento, no reconto, na recriação e na memória
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Publicado em 2012
In: Marianne Rossi Stumpf, Gladis Perlin. (Org.). Olhar sobre nós surdos: leituras contemporâneos. 01ed.Curibita: CRV, v. 1, p. 89-98
Carla Damasceno de Morais
Resumo

A contemplação de vídeos de contos da literatura oral produzidos 2 na língua de sinais por sujeitos surdos resulta na elaboração deste artigo onde se apresentarão reflexões sobre a desenvoltura desses sujeitos como contadores de histórias profissionais na arte em movimento 3, no reconto, na memória e na recriação. Esses contadores não estão em praça pública, eles se encontram em um estúdio, que resulta na narrativa produzida em vídeo. Os espectadores desses vídeos são surdos. Nessas produções, os sujeitos surdos celebram a língua de sinais contando histórias da literatura oral.

1. A arte de contar

A arte de contar 4 que se apresenta no oriente e no ocidente, é uma atividade subsidiada pela memória. Os contadores de histórias possuem um desembaraço alegórico, convocam imagens de sua lembrança para suas composições contextuais e verbais. Esse processo se realiza por adaptação e de acordo com o entendimento cultural e ideológico de sua comunidade. O conto contribui para a harmonia mental e emocional de uma comunidade e impede a sua desagregação.

Maria de Lourdes Patrini (2005) considera que o lugar onde as pessoas habitam, trabalham e estabelecem relações personalizadas e estáveis constitui a base identitária. Participar de uma comunidade e viver em determinado ambiente denota adotar princípios e ser reconhecido. No respectivo local de convívio, um elo criador une a população, tornando-se a marca de uma cultura reveladora de um tipo de comunicação que agrupa as pessoas por e para experiências tanto pessoais como também comunitárias..

2. O contador e o espectador na arte em movimento

A comunicação, o intercâmbio de experiências, as narrativas, a história do povo surdo são possibilitadas pela Língua de Sinais. A experiência visual identifica os sujeitos surdos, que comunicam sentimentos, pensamentos, ideias, e agrupa o povo surdo. Homi Bhabha (2005) considera que o termo povo não se refere meramente a ocorrências históricas ou a membros de um corpo político patriótico. Analisa o autor esse termo como uma complexa estratégia retórica de identificação social. Rangel (2004), Gladis Perlin e Wilson Miranda (2003) e Karin Strobel (2008) consideram os sujeitos surdos como um povo que se comunica na Língua de Sinais, possui costumes, história, tradições e interesses semelhantes.

O prazer e o entretenimento proporcionados pela arte na Língua de Sinais fortalecem do povo surdo. Sutton-Spence e Ronice Müller Quadros (2006, p. 115) salientam que durante longo período os sujeitos surdos foram bombardeados pela ideia de que somente as línguas faladas eram superiores e que as línguas sinalizadas eram inferiores. Por muito tempo, a produção poética somente era permitida na língua falada. Tomando como parâmetro a Língua de Sinais Americana (ASL), as autoras relatam que, no período anterior a 1970, não há registros poéticos na referida língua e essa realidade pode ser estendida às outras línguas de sinais.

A partir de 1970, essa realidade mudou, com a possibilidade da produção poética na língua de sinais, emergiram o “orgulho surdo”, o reconhecimento das línguas de sinais e a atividade dos poetas precursores de língua de sinais. As transformações principiadas nos Estados Unidos se disseminaram para outros países. O intercâmbio entre os sujeitos surdos que aprenderam uns com os outros, deram início à produção artística em suas próprias línguas. “Nesse contexto sócio-histórico, cultural e político, toda produção poética na língua de sinais apresenta repercussões no empoderamento do povo surdo e é uma expressão implícita do seu orgulho na sua língua”. A experiência sensorial dos sujeitos surdos se apresenta como um atributo principal de vários poemas na língua de sinais. A relevância da presença ou da ausência do som é um espaço pouco cultivado nas produções artísticas na língua de sinais. (SUTTON-SPENCE e QUADROS, 2006, p. 116-117).

As produções artísticas contempladas envolveram a leitura, a tradução da língua portuguesa e seu reconto em vídeo, na língua de sinais. Provavelmente se o conto fosse produzido na língua falada, ou seja, “da boca ao ouvido” 5, não se destinaria ao surdo espectador. A narrativa parte das mãos dos contadores de histórias e atraem a atenção de seu público. O desempenho é sedutor; as mãos, a expressão corporal e facial, encantadoras. Não se concebe em sua atuação a destituição da teatralidade, da improvisação, da espontaneidade e do carisma.

De acordo com Patrini (2005) a arte de contar requer a presença de um público para ver e ouvir o contador. Esse ato solicita o olhar de um ouvinte atento e de uma memória que aguarda ser preenchida por ritos e gestos. As reflexões da autora para um mundo pautado na fala e no som, para a atividade de contadores/as histórias ouvintes e falantes, cuja arte destina-se a quem igualmente ouve e fala, se torna importante para pensar a desenvoltura de contadores de histórias surdos que se apropriam um texto escrito, o recria sem utilizar os recursos da pronúncia das palavras, da leitura em voz alta e do som. Eles recontam narrativas da literatura oral na língua brasileira de sinais, para espectadores atentos às imagens e à história.

3. A memória

Adjacente à leitura, os contadores surdos requerem à memória, que, segundo Marilena Chauí (2005), representa a consciência da diferença temporal e da percepção interna, cujo objeto é interior ao sujeito do conhecimento, equivalente às lembranças do passado, o próprio passado do sujeito e o passado aludido ou registrado por outros em narrativas orais e escritas. A autora revela que os antigos gregos apreciavam a memória como uma divindade.

A deusa Mnemosyne era a mãe das musas protetoras das artes e da história. Ela oferecia aos poetas e adivinhos o poder de retroceder ao passado e trazê-lo à lembrança da coletividade. Além disso, ela tinha a faculdade de conceder eternidade aos mortais por meio das obras de arte. O artista ou o historiador registravam em suas obras as expressões, os gestos, as realizações e as palavras de seres humanos, para que fossem lembrados como modelo de comportamento para as próximas gerações. O ato de registrar pela obra de arte tornava os sujeitos inesquecíveis e significava que jamais morreriam. (CHAUÍ, 2005).

A memória, além de imortalizar os mortais e auxiliar a medicina, era indispensável na retórica, uma arte entre os antigos gregos e romanos reservada a convencer e a causar emoções aos espectadores por meio do uso da linguagem. Na aprendizagem dessa arte, a memória era imprescindível, tendo em vista que o bom orador era aquele que proferia longos discursos sem ler e sem recorrer a anotações. A propósito da valorização da “arte da memória” entre os antigos, Chauí narra uma lenda sobre o poeta grego Simônides de Céos, o criador da retórica, transcrita a seguir:

Conta a lenda que Simônides foi convidado pelo rei de Céos a fazer um poema em sua homenagem. O poeta dividiu o poema em duas partes:
Na primeira, louvava o rei, na segunda, os deuses Cástor e Pólux.
O rei ofereceu um banquete no qual Simônides leu o poema e pediu o pagamento.
Como resposta, o rei lhe disse que, como o poema também estava dedicado aos deuses, ele pagaria metade, que a outra metade Simônides fosse pedir a Cástor e Pólux.
Pouco depois, um mensageiro aproximou-se de Simônides dizendo-lhe que dois jovens o procuravam ao lado de fora do palácio. Simônides saiu para encontrá-los, mas não encontrou ninguém. Enquanto estava no jardim, o palácio desabou e todos morreram. Assim, Castor e Pólux, os dois jovens que fizeram Simônides sair do palácio, salvando o poeta, afinal pagaram o poema.
As famílias dos demais convidados desesperaram-se porque não conseguiam reconhecer seus mortos.
Simônides, porém, graças à “arte da memória” lembrava-se dos lugares e das roupas de cada um e pôde ajudar na identificação dos mortos. (CHAUÍ, 2005, p. 140).

A pertinência de abordar sobre a “musa da narrativa” se atribui à consideração de que, no reconto e na recriação na língua de sinais, em meio a outros recursos, a memória contribui para a atuação dos contadores de histórias surdos. Ela se traduz na perceptibilidade do caráter de cada personagem apresentado por meio desses contadores, não havendo a possibilidade de confundi-los. Identificados por um nome visual, cada personagem fica guardado na memória dos contadores como também dos espectadores que provavelmente são surdos e que conservarão na reminiscência os nomes visuais das personagens e a narrativa que, por conseguinte, poderá ser recontada também por seu espectador. É nesse movimento que Sherazade sobrevive e se manifesta tanto no sujeito que narra quanto no sujeito que torna a narrar.

4. A literatura visual

Os referenciais teóricos de Patrini (2005) e de Walter Benjamin (1994) permitem refletir que, atualmente, o sujeito contador de histórias surdo se utiliza de recursos da imagem por aparelhos eletrônicos e não pelo contato pessoal e a apresentação ao vivo. O vídeo denota que a ação ocorreu e cumpriu etapas anteriormente organizadas por seus produtores. Não há espaço para o improviso ou para que um sujeito da plateia, curiosa, pergunte ou receba conselhos. Como revela Benjamin, a elaboração final de um filme envolve imagens isoladas e sequências de imagens que são eleitas na edição, o que garante sua perfectibilidade. Durante a filmagem, inexiste um único ponto de observação, ou seja, além do narrador, há câmaras, aparelhos de iluminação, recursos humanos e outros elementos estranhos à cena. Questões que durante a contemplação não são percebidas pelo espectador.

A arte de narrar, sob a ameaça da extinção profetizada por Benjamin (1994), continua viva, porém como uma atividade diferenciada da que se referiu este autor. Os contadores de histórias surdos de contos da literatura oral não são viajantes e nem camponeses que contam as histórias que retiram da própria experiência ou da narrativa de outros e contam. Eles são contadores de histórias surdos e, provavelmente, integram a maioria dos contadores que conhece os contos – advindos da memória coletiva oral – por meio da língua escrita 6.

Os contadores e contadoras de histórias sobrevivem e provavelmente conservem o legado de Heródoto, o primeiro narrador grego, a que se refere Benjamin, porém com o acréscimo de sua profissionalização. O espectador é surdo e, para não perder a história, não fia ou tece enquanto lê 7; não pode realizar as duas coisas ao mesmo tempo, porque sua comunicação é visual.

Para Eric Schollhammer (2002), verifica-se, na virada do século, uma ampla demanda de referencialidade nas manifestações artísticas e literárias. Nos estudos da literatura, a imagem é um assunto que se destaca quando se aborda a estética atual, tendo em vista a convergência híbrida e a apropriação de artifícios e técnicas representativas dos meios visuais com o intuito de motivar efeitos sensuais afetivos.

Entendemos que os contos produzidos por surdos na língua de sinais se inserem no que o Schollhammer (2002) denomina de literatura visual, que se sobressai pela velocidade e pelo contato imediato com o público. Essas produções envolvem elementos da experiência visual, e fortalecem o questionamento sobre o que Walter Mignolo (2003, p. 306) denomina de “ideais e princípios nacionais sobre a pureza da linguagem, a homogeneidade da literatura e o caráter distinto das culturas nacionais”. As produções de vídeo na língua de sinais acentuam a possibilidade de outra língua, outra literatura, outra forma de expressão, demonstrando “que os valores nacionais depositados nas línguas e literaturas já não correspondem à experiência transnacional 8 de uma parte significativa da população”. 9

5. A leitura da imagem poética

Para Roland Barthes (1998, p. 44/49) há pelos menos três circunstâncias do prazer de ler ou três vias pelas quais a leitura pode prender a atenção do sujeito leitor: na primeira, no ato da leitura, ocorre o prazer das palavras maravilhando o leitor, denominada de leitura metafórica ou poética que não requer amplo conhecimento de linguística. Na segunda via, o fascínio impede a interrupção da leitura e mantém vivo o desejo de continuar a ler o livro que aos poucos chega ao fim. Nessa ação irrequieta e deslumbrante, habita o deleite. Na terceira, a leitura é desencadeadora do desejo de escrever. “Leio textos, figuras, cidades, rostos, gestos, cenas, etc.” O objeto que se lê é constituído exclusivamente no intuito de ler. O ato de ler é impregnado pelo desejo ou pelo desprezo. O corpo humano está presente na leitura onde as emoções estão acopladas, emaranhadas, cingidas, ou seja, onde há o encanto, a vacância, a agonia e a sensualidade.

O espectador surdo desempenha a leitura da imagem poética em uma moldura – a tela de um aparelho eletrônico. O prazer de ler as palavras sinalizadas acompanhadas das expressões faciais e corporais e o enlevo da leitura da imagem, provavelmente associa-se ao desejo de não interrompê-la. O prazer de ler provavelmente resulta no desejo de contar ou recontar na língua de sinais.

Lucia Santaella e Winfried Nöth (1997, p. 15) apresentam dois campos das imagens: no primeiro se inserem as representações visuais: desenhos, pinturas, ilustração, fotografias, cinematografia, sistema de telecomunicações de impulsos eletromagnéticos para transmissão de vídeo e áudio, holo e infográficas. Os autores consideram esses campos como artefatos materiais, signos representativos do meio ambiente visual. As visões, as imaginações, os esquemas e os modelos são representações mentais integram o segundo campo abordado por esses autores que consideram: “não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais”, portanto os dois campos não são autônomos, são atrelados desde a sua origem.

Em todo esse movimento que envolve a leitura, está envolvido o corpo:

[...] é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior. Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também às pressões do social, do institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro [...] (PAUL ZUMTHOR, 2007, p. 23).

6. A arte em movimento

Semelhante a um quadro, as mãos dos contadores de histórias desenham e pintam as palavras sinalizadas, harmonizam o texto em imagem, ordenando e produzindo sentido. O desempenho dos contadores se encontra no interior de uma moldura – a tela – um espaço com dimensões superiores e inferiores, com largura direita e esquerda, com artifícios que permitem ao leitor avançar, retroceder, pausar, intensificar o brilho, dentre outros. Os limites da tela são a moldura 10. Esse quadro e essa moldura apresentam uma arte em movimento.

Os contadores não representam diante de um público comum a cena a ser reproduzida e sim diante de profissionais envolvidos na produção. Afastados da tela, eles olham em direção à filmadora, ciente de que a não observância às dimensões prejudicará o acabamento da obra 11. Analogamente a um pintor em seu ateliê, que olha para seu quadro, o narrador surdo, em um estúdio, olha para a máquina que registra o espetáculo na língua de sinais.

Suas mãos desenham palavras, seja em retenção ou em movimentos, de um lugar para outro, em configurações de mãos, um ponto de articulação e uma orientação da palma da mão para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo. A habilidade das mãos, interligada às expressões corporais, denotam a alegria e a tristeza, o claro e o escuro, o dia e a noite, as lágrimas e o sorriso, o quente e o frio, o bem e o mal e assim por diante. O contador surdo está fixo em um lugar que, de um instante a outro, não cessa de mudar de conteúdo, de forma, de expressão, de personagens. Ele se encontra em um estúdio, onde o aparelho penetra tão intensamente o real que o que surge como realidade “pura”, sem o corpo alheio da máquina, é o efeito de um processo meramente técnico, ou seja, a imagem é filmada por uma câmara montada em um ângulo especial e junto a outras de igual espécie. (BENJAMIN, 1994, p. 186).

Com as mãos à frente do corpo, esses contadores concedem vida a cada um dos personagens, identificando-as para o espectador. A possibilidade de visualização da imagem abrange o olhar, a leitura, a iluminação da plateia sentada frente à tela em casa, na escola, na biblioteca, em um ato solitário ou compartilhado. A contemplação sugere que um par de olhos, observa, diferencia, aprecia, assimila, “vê mais onde o outro vê menos, vê preto onde outro vê branco, vê grande onde outro vê pequeno, vê grosso onde outro vê fino.” 12 A coisa ou a imagem não são percebidas inteiramente, e o que percebemos está intimamente relacionado àquilo que temos interesse em perceber, mediante nossos interesses econômicos, nossas convicções e nossas exigências psicológicas. 13

O leitor também pode ser considerado como um personagem. Independente do local que assiste ao espetáculo, ainda que não reconhecido, vê o que cada um dos parceiros não vê; seu olhar é único. Barthes (1988, p. 51) considera o leitor como personagem com capacidade de apreender a pluralidade simultânea dos sentidos em um espaço abrangente exterior às leis que invalidam a contradição. O texto é a postulação desse espaço. O leitor reúne as decodificações, remove o freio do sentido, sobrecodifica, produz, acumula linguagens, deixa-se interminável e incansavelmente atravessar por elas. Esse sujeito, além de uma personagem, é a travessia. 14

O texto apresenta espaços a completar, que demandam a ingerência de aspiração exterior, de sensibilidade e de empenho de uma energia individual para serem temporariamente preenchidos. “O texto vibra, o leitor o estabiliza, integrando‑o àquilo que é ele próprio. Então é ele que vibra, de corpo e alma.” Não existe criação da linguagem, nem estrutura nem sistemas totalmente fechados; as lacunas constituem um espaço de liberdade imaginário pelo fato de que somente podem ser preenchidos por um momento, pelos leitores. A demarcação, o preenchimento, o prazer da liberdade brotam na relação de expressão a expressão. (ZUMTHOR, 2007, p. 53).

Diante do texto, o espectador, mesmo no anonimato, assiste; repercute‑lhe uma palavra sinalizada, ambígua, obscurecida e ele, confuso, investiga um sentido efêmero e ficcional. Ao retornar posteriormente ao mesmo texto, provavelmente seu sentido se diferencie 15. Ainda no texto, compreendemos a importância das palavras sinalizadas, das expressões faciais, das composições das imagens “e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos”, denominadas por Zumthor (2007), de percepção. A partir da dela, o leitor – com elucidações ou sugestões advindas de mudanças no tempo e no espaço do texto – apodera-se do texto e lhe atribui sentido. É a partir da percepção que se desencadeia o desejo de reconstruir um texto; a ausência do desejo de fazê-lo implica que o texto não inspirou a ação.

7. Reconto e recriação na Língua de Sinais

O reconto e a recriação na língua de sinais envolve os artefatos culturais do povo surdo. Antonio Alves e Lodenir Karnopp (2002) consideram que os sujeitos surdos recontam histórias para outros sujeitos surdos e reconstroem, por meio da língua e da cultura, os sentidos veiculados pelo texto que serviu como ponto de partida para a criação de outro texto.

Fayga Ostrower (1988) sublinha o temperamento criativo do ser humano, que, no ato de perceber, interpreta, e nisso reside a ação criativa. Segundo a autora, o momento da compreensão possui relação intrínseca com a criação. Patrini (2005, p. 134) considera que a recriação admite a mudança da trajetória da história, tendo em vista o maravilhoso e a imaginação criadora. Contar e recontar contribui para o aprimoramento da nova geração sem perder de vista o tom lúdico essencial desta experiência. “O ato de contar se realiza na e através da linguagem”; o valor presente no ato de contar desencadeia o reconhecimento da sabedoria e do prestígio.

8. Considerações finais

A literatura oral produzida na língua de sinais é significativa para a celebração dessa língua que se apresenta atualmente em vias públicas, na mídia, na universidade, nas escolas de educação básica, nos restaurantes, nos bares, nos aeroportos. As tentativas de apagar a língua dos sujeitos surdos não vingaram. O motivo, quem sabe, se situe “nas forças milenares e as lembranças de uma língua cravada no corpo”. (MIGNOLO, 2003, p. 307).

Os sujeitos surdos apreciam recontar e recriar contos da literatura oral. A celebração da língua de sinais e o orgulho de ser surdo se apresentam em suas produções, seja por vídeos produzidos por meio institucional ou por uma filmadora em casa, no trabalho, na escola, na praça e posteriormente são divulgados na internet. Em qualquer uma das produções, o conto sobrevive em um povo que se comunica com os olhos, com as expressões faciais, com as mãos, por que não dizer, com o corpo.

Notas

2 Referimo-nos às seguintes produções literárias em Língua Brasileira de Sinais disponíveis em CD-ROM: Da Editora Arara Azul - Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll e A História de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, de autor desconhecido. Do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), clássicos da literatura mundial: O Gato de Botas, Rei, Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho, A Raposa e a Uvas, A Lenda do Guaraná, Branca de Neve e os Sete Anões, Cinderela, João e Maria, Os Três Porquinhos e A Bela Adormecida.
3 Masutti, (2007, p. 89) considera a língua de sinais é arte em movimento, uma coreografia circular, uma poesia cuja tensão corporal inscreve os ritmos que reaproximam os corpos das sensações da dança. Para sentir a dança, é preciso se libertar das travas dos olhos que estão engessados pelo som e pelas estereotipias culturais.
4 Essa questão foi elaborada mediante as orientações de Patrini (2005, p. 106), Bussato (2004, p. 9) e Bettelheim (1988, p. 189).
5 Termo emprestado a Zumthor (1993. p. 222).
6 Introdução de Elie Bajard em Patrini, (2005, p. 15).
7 A elaboração do parágrafo se refere à leitura do ensaio de Benjamin (1994).
8 Os estudos transimperiais, transnacionais, transcoloniais e culturais propõem um novo espaço inter e transdisciplinar de reflexão onde os estudos literários se redefiniriam assim como promoveriam discussões sobre os resultados da expansão colonial e das interconexões globais desde o fim do século 15. O autor assinala que o prefixo trans indica algo além das línguas e literaturas nacionais e dos estudos comparatistas que pressupõem as línguas e literaturas. (MIGNOLO, 2003, p. 302).
9 As citações do parágrafo são empréstimos a Mignolo (2003, p. 313-316).
10 O parágrafo foi elaborado com os referenciais de Foucault (1990, p. 11-15).
11 Barthes (1988, p. 71-78), distingue a obra e o texto: “a obra se vê [...] o texto se demonstra, se fala segundo certas regras (ou contra certas regras); a obra se segura na mão, o texto, mantém-se na linguagem: ele só existe tomado num discurso [...]; a obra é a cauda imaginária do texto [...]”.
12 James. ([19-]). Este parágrafo e o anterior foram elaborados a partir da leitura de “Las meninas”. In: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 1990.
13 Bergson (citado por DELLEUZE, 2007, p. 31).
14 Barthes (1988, p. 51) considera que “o leitor é aquela personagem que está no palco (mesmo clandestinamente) e que sozinha ouve o que cada um dos parceiros do diálogo não ouve; sua escuta é dupla (e, portanto, virtualmente múltipla).” O parágrafo foi elaborado tendo em vista o espectador surdo.
15 Zumthor (2007, p. 53-54) observa que “diante do texto, no qual o sujeito está presente, mesmo quando de forma indiscernível: nele ressoa a palavra pronunciada, imprecisa, obscurecida talvez pela dúvida que carrega em si” [...].

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