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A constituição da língua brasileira de sinais: considerações sobre a missão protestante com surdos
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Publicado em 2014
Revista Sures, v. 3, p.1-15
César Augusto de Assis Silva
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Resumo

Recentemente, no Brasil, a língua brasileira de sinais (libras) foi reconhecida em termos jurídico. O objetivo deste artigo é demonstrar um aspecto do complexo processo histórico de constituição dessa língua: o papel de atividades missionárias protestantes com surdos (luteranas e batistas). Além disso, demonstro como nesse mesmo processo a surdez também passou a ser afirmada em termos de particularidade cultural.

Introdução

Em 2002, a língua brasileira de sinais (libras) foi reconhecida como meio legal de expressão e comunicação oriundo das comunidades surdas brasileiras (lei federal 10.436/2002). A partir de então, foi regulada uma série de procedimentos para garantir a sua institucionalização. De antemão, é importante considerar que a libras, como geralmente é chamada, apesar de não ser de natureza oral-auditiva, mas visual-gestual, estudos linguísticos ratificam o seu pleno estatuto de língua, tal como as línguas orais (Ferreira Brito, 1991, Quadros, 1997).

O objetivo deste artigo é analisar um aspecto do complexo processo de constituição dessa língua: o papel do protestantismo histórico, em especial, luteranos e batistas. Como tem sido amplamente debatido na bibliografia sobre estudos de religião, apesar de o Brasil manter-se como país majoritariamente católico, desde as últimas décadas do século XX o crescimento e atuação pública de protestantes têm sido vetores fortes na dinâmica da sociedade brasileira. O papel de tais agentes na emergência da libras como questão pública confirma esse fenômeno.

Influenciado pelas reflexões de Montero (2006) e Almeida (2002, 2006) sobre o papel das missões cristãs no mundo contemporâneo, o norte desta investigação é a análise de tais agências como produtoras de uma determinada relação de alteridade. No caso específico, trata-se de analisar a invenção da surdez afirmada como particularidade linguística e cultural. No processo mesmo de constituição da missão protestante para evangelização de surdos, determinadas categorias da etnicidade – como “língua”, “cultura”, “identidade”, “povo”, “comunidade” e “história” – foram vertidas para a surdez. Nesse mesmo processo, os sinais – equivalentes em língua sinais às palavras em língua oral – foram sendo produzidos como uma língua autônoma. Outro aspecto a ressaltar no engendramento desta surdez, é o trânsito incessante entre missão protestante com surdos e a produção acadêmico-científica que legitima essa mesma concepção de surdez.

1. Igreja Evangélica Luterana: a afirmação da particularidade linguística

A evangelização de surdos foi redefinida na passagem dos anos 1970 e 1980, processo fundamental para a constituição da surdez como particularidade linguística. Destaca-se a atuação da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, em Porto Alegre, sobretudo seu vínculo com a Escola Especial Concórdia – Centro Educacional para Deficientes Auditivos, fundada em 1966. No início dos anos 1980, luteranos publicaram o livro Linguagem de Sinais do Brasil (Hoemann, Oates & Hoemann, 1983), que neste artigo tomo por objeto, quando afirmaram, de modo pioneiro, o pleno estatuto de língua da comunicação atribuída aos surdos, a qual, naquele momento, nomearam como Linguagem de Sinais do Brasil.

Essa instituição está vinculada à educação formal para deficientes auditivos no Brasil. De acordo com Warth & Warth (1983: 93), do ano de fundação da Escola Especial Concórdia, em 1966, até 1980, seguindo o cânone vigente, ela teve por filosofia pedagógica o oralismo, isto é, o foco fundamental foi o ensino da oralidade, a leitura labial e o aproveitamento de resíduos auditivos, não sendo recomendado o uso de sinais. Contudo, com a vinda de missionários norte-americanos para essa escola, a partir de 1980, emergiu uma concepção diferenciada de educação de surdos, vinculada ao que ganhou o nome de comunicação total, que não se confunde com a política pedagógica anterior devido à valorização da linguagem de sinais, conforme afirma o Reverendo George Kraus, presidente da associação Amigos Luteranos dos Surdos (Mill Neck, Nova York):

A sugestão para um manual de Linguagem de Sinais do sul do Brasil foi feita na primavera de 1980 na Escola Especial Concórdia, uma Escola Luterana para os surdos em Porto Alegre. Como presidente dos Amigos Luteranos dos Surdos, dirigi um seminário naquela ocasião sobre o emprego da Linguagem de Sinais nos Estados Unidos tanto na comunidade adulta de surdos como nas escolas para deficientes auditivos. Durante debates com os professores e alunos da escola, descobri que não havia manual sobre a Linguagem de Sinais do sul do Brasil. A professora Naomi Warth, fundadora e coordenadora do ensino religioso da Escola Especial Concórdia, sugeriu que a organização que represento elaborasse um manual (Kraus apud Hoemann, Oates & Hoemann, 1983: 7).

Dr. Harry Hoemann, professor de psicologia da Bowling Green State University, foi eleito coordenador do projeto e Shirley Hoemann foi nomeada diretora. A publicação Linguagem de Sinais do Brasil foi financiada pelas organizações luteranas norte-americanas Amigos Luteranos dos Surdos, Mill Neck Foundation e Mill Neck Manor, e contou também com a colaboração da Sociedade dos Surdos do Rio Grande do Sul. O produto final foram três mil cópias impressas destinadas à distribuição gratuita.

Embora tenha sido idealizada, planejada, coordenada, produzida, editada, publicada e distribuída por luteranos, outra peculiaridade dessa obra é que, juntamente com Harry e Shirley Hoemann, assina a edição do livro o padre católico redentorista Eugênio Oates, autor do dicionário de sinais dos anos 1960, Linguagem das mãos (Oates, 1988). Alguns capítulos que compõem o volume são de autoria de religiosos e educadores, luteranos e católicos. Como se afirma no prefácio: “o resultado é um conjunto heterogêneo de perspectivas, refletindo os pontos de vistas de surdos e ouvintes, profissionais e não profissionais, seculares e religiosos, homens e mulheres, americanos do norte e do sul” (Hoemann, Oates & Hoemann, 1983: 11). É precisamente nesse encontro misto que se produz uma concepção bastante particular de surdez por parte de luteranos.

Vinculados à Igreja Católica, participam majoritariamente padres e freiras que atuavam na educação e catequese de deficientes auditivos nas escolas especiais católicas de tradição oralista. O mesmo pode ser dito dos autores luteranos, pois estão vinculados à Escola Especial Concórdia. Mas uma diferença se acentua, já que os autores luteranos não possuem apenas formação religiosa, como majoritariamente são caracterizados os católicos, mas também formação acadêmica em universidades brasileiras e norte-americanas, o que forjou uma produção discursiva diferenciada sobre a surdez. Isso é evidente nos capítulos luteranos da publicação, que trazem argumentos do campo da linguística, pedagogia e psicologia, além de, evidentemente, teologia, embasando de modo pioneiro e de maneira científica a afirmação do estatuto de língua da Linguagem de Sinais do Brasil. A partir de então, essa apropriação da linguística conformou em grande medida os projetos missionários protestantes dirigidos à surdez.

Como exemplo de trajetória acadêmica de luteranos, Harry Hoemann é professor de psicologia na Bowling Green State University (Ohio, EUA) e já nos anos 1980 contava com diversas publicações sobre a American Sign Language. Beatriz Raymann é formada pelo Central Institute for the Deaf em St. Louis (Missouri, EUA), e também em letras e pós-graduada em linguística. Gládis Rehfeldt é linguista, mestre em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutora em linguística aplicada pela PUCRS. Martin Warth é formado em teologia pelo Seminário Concórdia, em filosofia pela UFRGS, mestre e doutor pelo Concordia Seminary. Por fim, Naomi Warth, fundadora e professora da Escola Especial Concórdia, foi formada pelo Central Institute for the Deaf e Mill Neck Manor School for the Deaf (EUA) e Nurenberg (Alemanha) (Hoemann, Oates & Hoemann, 1983: 5-6).

O modo como a publicação citada está estruturada, em cinco partes, revela em grande medida a dimensão plural dos objetivos de luteranos. Na primeira parte, denominada “Estrutura da Linguagem de Sinais e seu uso pelos surdos”, os autores explicitam processos gramaticais da língua tomada como objeto. Na segunda e terceira partes, argumentam sobre a aplicação, respectivamente, religiosa e educacional da Linguagem de Sinais do Brasil. Na quarta parte, apresentam glosas em português de conversas entre surdos em Linguagem de Sinais do Brasil, gravadas em vídeo. Por fim, na quinta parte, apresentam um léxico de 330 sinais, deduzidos a partir das gravações realizadas.

Com efeito, o contexto luterano pode ser compreendido como um dos pontos de emergência de uma reflexão propriamente linguística sobre o que naquele momento deixou de ser denominado apenas como mímicas, gestos ou linguagem das mãos, categorias utilizadas anteriormente pelo padre Eugênio Oates nos anos 1960, e passou a ser a Linguagem de Sinais do Brasil. O uso do termo linguagem por luteranos para nomear a forma de comunicação que tomam por objeto não parece implicar a afirmação de que esta seria uma língua menor do que as línguas orais. Ela é a produção espelhada do que os luteranos norte-americanos já conheciam por American Sign Language. Os autores explicitam ao longo do livro que acreditam ser essa uma língua bastante diversificada, com muitos dialetos, sendo o léxico apresentado no fim do livro referido como o dialeto porto-alegrense.

Para o editor do livro, Harry Hoemann, essa língua deve ser vista como uma herança cultural das comunidades de surdos:

Onde quer que pessoas surdas tiveram a oportunidade de se associar em clubes, igrejas e nas casas uma das outras, elas desenvolveram uma herança cultural rica e um meio de comunicação visual complexo conhecido como Linguagem de Sinais. O Brasil é um dos países em que as pessoas surdas gozam dessa liberdade de movimento, e a Linguagem de Sinais do Brasil é uma das importantes Linguagem de sinais no mundo hoje (Ibid.: 19).

Nos trabalhos de luteranos, a Linguagem de Sinais do Brasil já é entendida como uma língua, pois estão influenciados por autores norte-americanos fundamentais para a constituição da American Sign Language, tais como Stokoe (1960), Klima & Beluggi (1979), entre outros, como pode ser visto na bibliografia de seus artigos. Afirma Hoemann:

Como resultado de seus estudos, linguistas estão convencidos que Linguagens de Sinais são línguas no sentido pleno do termo. Pessoas surdas que usam uma Linguagem de Sinais são capazes de desempenhar todas as funções sociais normais de comunicação que são associadas com o uso de uma língua (Ibid.: 22).

Luteranos lançam as bases para uma economia discursiva na qual a surdez é afirmada como particularidade linguística e cultural. Em consonância com essa visão, criticam a concepção de deficiência vinculada à surdez, já que, para Hoemann, ela deveria ser entendida como diferença, como enseja a citada ideia de herança cultural:

Se tão somente as pessoas ouvintes considerassem a surdez uma diferença ao invés de uma deficiência, se apenas deixassem as pessoas surdas ser surdas, se apenas encorajassem as pessoas surdas a desenvolver os recursos necessários quando a visão substitui a audição, o mundo seria bem diferente para as pessoas surdas (Ibid.: 23)

Intelectuais luteranos engendram nessa publicação uma crítica à filosofia pedagógica do oralismo, expressa sobretudo em termos teológicos pelo agenciamento da oposição entre amor eros e agape. Explicam Martim e Naomi Warth:

Há dois tipos de amor que aqui queremos mencionar: o “agape” e o “eros”. O amor “eros” busca na outra pessoa a função que o satisfaz. Quando cessa a função o “eros” diminui e se apaga. Mas o amor “agape” se entrega para servir a outra pessoa, valorizando a sua dignidade, especialmente porque Jesus Cristo lhe deu uma dignidade alheia (Warth & Warth, 1983: 76).

E continuam, traduzindo tal concepção teológica para a surdez:

É possível ver um amor “eros” na ânsia de enquadrar o surdo na sociedade ouvinte, onde a função normal é entender a linguagem falada. Nesse caso, a surdez seria encarada como uma disfunção a ser superada. A função que interessa a esse tipo de amor “eros” é ser ouvinte ou, no mínimo, aparentar ser ouvinte ou não destoar como não ouvinte. O amor “agape” aceita o surdo como pessoa de elevada dignidade e se entrega a ele de tal forma que está disposto a aprender a sua linguagem de sinais, valorizando o esforço que o surdo precisa fazer para se adaptar ao mundo dos ouvintes. O amor “agape” não discrimina pela função, mas valoriza a pessoa por sua dignidade conferida por Deus. Desta forma o amor “agape” do cristão aceita a diferença da surdez e busca os melhores meios da comunicação total para servir o surdo na sua comunicação com a sociedade e com Deus (Ibid.).

Desse modo, luteranos estão comprometidos com o desenho da filosofia pedagógica aplicada à surdez que ganhou o nome de comunicação total, algo que superou o oralismo. Nela, o educador deve utilizar diversos meios de comunicação para a educação do surdo: escrita, desenho, teatro, mímica e a Linguagem de Sinais do Brasil. O fundamento dessa política pedagógica é, em grande medida, teológico. A oposição entre amor eros e agape se combina com a máxima de Paulo de Tarso, na qual afirma como necessário “ser fraco para com os fracos” 2, e, seguindo esse modelo, é necessário que pais e professores de surdos “sejam surdos para com os surdos”. Para Warth & Warth, o próprio Cristo teria sido um precursor da comunicação total:

Jesus Cristo também nos deu o exemplo. Mesmo sendo verdadeiro Deus, não hesitou em tornar-se verdadeiro homem e falar a linguagem dos homens da época para comunicar a mais importante mensagem do amor de Deus aos homens. Para falar com os homens Ele falou a linguagem deles, usou exemplos do mundo deles, falou em parábolas e história deles. Usou também a comunicação total, pois usou linguagem falada, usou linguagem pictórica nas parábolas e usou mesmo a linguagem dos sinais com o surdo que encontrou e curou (Marcos 7:34) (Ibid.).

O livro Linguagem de Sinais do Brasil foi distribuído para secretárias de educação, escolas, bibliotecas, associações, igrejas e qualquer pessoa que solicitasse. Certamente, ela contribuiu para a consolidação da comunicação total como filosofia pedagógica da educação especial relativa à surdez, embora seja necessário considerar que esse processo também se disseminou por outros meios.

A comunicação total implicou um tratamento muito diferente, do ponto de vista pedagógico, dos sinais como meio de expressão e comunicação. No oralismo a sinalização foi alvo de proibição. Nas práticas luteranas, no entanto, a Linguagem de Sinais do Brasil torna-se veículo legítimo para a educação da comunidade de surdos. Por causa dessa mudança no estatuto social e simbólico desse meio de comunicação e expressão, o meio luterano tornou-se um local fundamental para a elaboração prática do intérprete de linguagem de sinais, agente fundamental do processo que se desenha.

De acordo com relatos de informantes, é precisamente nesse contexto, o início dos anos 1980, que jovens ouvintes estudantes de teologia do Seminário Concórdia – escola teológica luterana – passaram a se interessar pelo que ganhou o nome de missão com surdos. A experiência desses jovens com a comunicação total levou à emergência do intérprete de linguagem de sinais. Inspirados na máxima paulina, procuraram “ser surdos para com surdos”. Nos cultos luteranos dessa escola, esses jovens ouvintes passaram a interpretar para a linguagem de sinais tudo o que se passava em termos orais.

É precisamente desse meio que emergem o pastor e pedagogo que ocupou posições fundamentais nos anos 1980 como intérprete, Ricardo Sander. Em sua trajetória, exerceu influência com sua performance de interpretação em igrejas, escolas especiais e regulares e universidades. Esteve também associado à Comissão pela Luta dos Direitos do Deficiente Auditivo nos anos 1980 e ocupou posições na Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos. Foi fundador e presidente da Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores Intérpretes e Guias-intérpretes de Língua de Sinais, de 2008 a 2011.

É do meio luterano que também emergem intelectuais importantes para a constituição de um campo intelectual relativo à surdez, entre eles Ronice Quadros (UFSC), Lodenir Karnopp (UFRGS), Otmar Teske (Ulbra), Madalena Klein (UFPL) e Marianne Stumpf (UFSC), por isso as constantes conexões de agentes provenientes dessa instituição religiosa e pesquisas que passaram a ser desenvolvidas no âmbito universitário, destacando-se a UFRGS, PUCRS, Ulbra e UFSC. Assim, luteranos iniciaram o quadro que se tornou comum entre protestantes na questão da surdez: uma intensa circulação entre atividade missionária, produção científica, movimento social e atuação no mercado (como intérpretes, professores de libras e consultores).

Apesar desses desdobramentos, é necessário considerar que a Igreja Evangélica Luterana do Brasil é uma instituição de pouca expressão no campo religioso brasileiro. Constitui protestantismo de imigração, de baixo proselitismo, com concentração nas áreas de colonização alemã na região Sul e no Espírito Santo (Jacob, Waniez & Hees, 2003). Sua capacidade de exercer influência em outras denominações protestantes é limitada; não veio dela a ampla disseminação da evangelização de surdos no campo religioso brasileiro. Mas o mesmo não pode ser dito em relação à denominação batista.

2. Missão batista: os surdos como um “povo não alcançado”

Segundo relatos de informantes, data do final dos anos 1970 a vinda de missionários com surdos norte-americanos batistas – entre eles o casal Peterson e Caroline Decker – para a região de Campinas (SP). Posteriormente, a prática batista de evangelização de surdos se disseminou em uma rede, primeiramente para cidades das regiões Sul e Sudeste, e depois para outras regiões, embora Campinas não fosse o único núcleo irradiador de tal prática naquele contexto. Como a denominação batista organiza-se em congregações locais autônomas, essas estabelecem contatos independentes, fazendo com que novas conexões, inclusive internacionais, espraiassem esse projeto. Destaca-se ainda a ampla atuação do pastor gaúcho Marco Arriens, formador de intérpretes desde os anos 1980, em diversos estados brasileiros, para além do meio batista e religioso.

O Ministério com Surdos da Junta das Missões Nacionais (JMN) da Convenção Batista Brasileira é uma instância fundamental de divulgação e padronização dessa atividade missionária nas congregações batista. Tal agência realizou uma apropriação da produção acadêmico-científica relativa à surdez/língua de sinais e a amalgamou em um discurso missiológico culturalista. Para demonstrar esse processo, serão consideradas neste texto as duas edições da publicação batista O clamor do silêncio, com a intenção analisar como se deu, nessa atividade missionária, o engendramento da surdez como particularidade linguística e cultural, processo concomitante à passagem da comunicação total ao bilinguismo.

O que motivou a publicação de O clamor do silêncio foi um encontro realizado em Petrópolis (RJ), em 1990, no qual batistas definiram o objetivo fundamental para o ministério com surdos: “Alcançar o surdo, capacitando-o para o relacionamento com Cristo como Salvador e Senhor, promovendo a integração entre o surdo, a família, a igreja e a sociedade” (JMN, 1991: 7). Ao longo dos anos 1990 e 1991, uma comissão de missionários com surdos, alguns com “atuação profissional na área” (Ibid.) e fundadores de ministérios em sua congregação, trabalhou sob a coordenação da Junta das Missões Nacionais, na realização dessa publicação.

Em grande medida o objetivo de O clamor do silêncio foi sistematizar as práticas missionárias com surdos dispersas em diversas congregações batistas e produzir um manual que orientasse a fundação de novos ministérios com surdos. Na publicação, argumenta-se que os surdos conformam um grupo não alcançado que está no meio urbano e que, portanto, cabe aos missionários desenharem estratégias específicas para que eles possam “ouvir” a mensagem cristã. O manual procura descrever as principais características desse grupo e os requisitos técnicos e espirituais para a formação da equipe que deve fundar o ministério em questão.

De acordo com o manual, esse grupo teria características culturais próprias. O glossário que acompanha a publicação afirma que a cultura do surdo é “a forma especial que o surdo tem de ver o mundo devido à falta de um dos órgãos do sentido” (Ibid.: 58). Entre as características do “surdo”, concluem que no geral ele é muito franco e objetivo; tem vocabulário mais reduzido; procura vantagens pessoais de forma bem objetiva; responde a amizades fortes e sinceras; é muito interessado no mundo dos ouvintes; usa os olhos como sentido compensador e dá ótimo artesão, desenhista, programador de computação etc.(Ibid.: 14).

Além disso, boa parte do manual é dedicada à sistematização da interpretação do missionário, que ocupa a posição de verter língua oral para língua de sinais e vice-versa. Além de ter uma vida espiritual reta, o intérprete deve dominar o Livro de sinais bíblicos (JMN, 1991), que traz um léxico específico de sinais vinculados à religião. O clamor expressa uma normatividade referente à performance de interpretação. Essa deve ser realizada no palco, com dois metros quadrados de espaço; o intérprete deve se posicionar em pé; deve estar vestido adequadamente, utilizando a própria cor da roupa como pano de fundo para as mãos (se ele tiver pele negra ou morena deve usar roupa clara; se branca, deve usar roupa escura, garantindo o contraste); deve saber antecipadamente quais músicas serão tocadas, quais passagens bíblicas serão lidas, qual será o mote da pregação; deve ter clareza e grande capacidade de expressão corporal; ser seguro, tranquilo, autoconfiante; usar adequadamente a língua, pois ela também é objeto da adoração; tomar devido cuidado com aparência, roupa, cabelo, acessórios; entre outras recomendações que visam disciplinar o corpo do intérprete no palco.

Outro dado relevante a ser considerado é que O clamor afirma a performance da interpretação no contexto da comunicação total, termo utilizado várias vezes ao longo da publicação. Por isso, uma série de referências é feita à comunicação oral em português com surdos, pois os sinais não deveriam ser utilizados com exclusividade, eram mais um elemento entre outros. Quando considera aspectos técnicos para a formação do intérprete, o manual afirma ser necessário ter boa caligrafia, participar de cursos de língua de sinais, alfabeto manual, comunicação total, teatro, expressão corporal e facial e conhecer os resíduos auditivos e o seu aproveitamento no trabalho com o surdo (Ibid.: 19). Interpretar também exige

falar normalmente, articulando bem as palavras, porém evitando exagero nos movimentos labiais e faciais. Não vocalizar as sílabas e as palavras e nunca desfigurar as palavras. Caso não entendam, utilizar a dactologia (escrever a palavra com o alfabeto manual) como apoio (Ibid.: 27).

Além de um aquecimento com o braço, recomenda-se também um aquecimento com exercícios fonoarticulatórios para ajudar com os fonemas. No fim do manual (Anexo 4), há uma lista desses exercícios com o lábio, maxilar e língua (Ibid.: 48). O manual também afirma ser necessário “evitar barba ou bigode, [pois] isso só dificulta a leitura labial por parte do surdo. As mulheres devem usar um batom suave para dar vida e destacar os lábios” (Ibid.: 28). Nessa edição de 1991, abundam passagens com referências ao uso dos lábios na interpretação, ou seja, a sinalização é, em grande medida, realizada atrelada à expressão oral e leitura labial.

Além disso, a publicação revela que o processo de constituição do ministério com surdos está dado pela atuação da pessoa que ocupa a posição de intérprete, o missionário (papéis imbricados no meio batista). Cabe a ele conscientizar a igreja e os pastores da problemática da surdez e da urgência missionária que ela coloca, assim como buscar surdos no mundo, nos pontos de encontro, nas associações, nas escolas especiais e ampliar progressivamente um catálogo de endereços de surdos. Para além do domínio religioso, cabe também ao missionário orientar as próprias famílias dos surdos sobre a especificidade linguística e cultural desse grupo.

O clamor do silêncio, publicado em 1991, passou por atualização e revisão e foi republicado em 2002. Essa reedição foi realizada por Marília Moraes Manhães, pedagoga, pós-graduada em psicopedagogia, intérprete com bastante notoriedade e circulação, atualmente coordenadora do Ministério com surdos da Junta das Missões Nacionais. Também já estava presente na comissão que integrou a produção da primeira edição da publicação.

Diferentemente da primeira edição, a segunda explicita os fundamentos linguístico da libras (esta passa a ser a categoria utilizada para nomear a língua de sinais), demonstrando os elementos que desempenham funções de fonemas na produção de sinais: i) configuração de mão; ii) ponto de articulação no corpo; iii) movimento; e iv) orientação da palma, em uma referência não explícita à fonologia de Stokoe (1960). Esse é mais um indício da apropriação da produção científica sobre língua de sinais para a conformação da missão batista com surdos.

Certamente a modificação mais substantiva na edição de 2002 é que todas as referências à categoria “comunicação total”, bem como ao uso da oralidade, da leitura labial, da articulação e do aproveitamento de resíduos auditivos foram retirados. Amparando-se na bibliografia sobre educação de surdos, essa edição incorporou a história canônica da surdez, afirmando que esta comporta quatro fases: oralismo, comunicação total, bimodalismo e bilinguismo. O oralismo por não aceitar a língua de sinais, é afirmado como prejudicial à comunidade surda. O uso do bimodalismo (duas línguas ao mesmo tempo) pela comunicação total torna-se uma prática deformadora das línguas, dificultando os seus aprendizados. Por fim, o bilinguismo é afirmado como a forma adequada de utilizar as línguas em questão e educar os surdos, pois língua de sinais e oral são adquiridas como independentes(s.d.:19).

Nessa publicação a libras emerge como a língua por excelência dos surdos, a qual deve ser utilizada para a evangelização desse grupo não alcançado, evidenciando, assim, uma alteração normativa da comunicação total para o bilinguismo a se processar sobretudo na performance da interpretação. Qualquer recurso à língua oral deixou de ser feito, pois os sinais tornaram-se definitivamente os componentes de uma língua autônoma, separada da língua oral. Essa edição 2002 de O clamo do silêncio também está amparada em publicações científicas de linguistas e pedagogos que produzem essa passagem da comunicação total para o bilinguismo, como Carlos Skliar (1998), Ronice Quadros (1997) e Lucinda Ferreira Brito (1991). Assim, esse projeto missionário está em relação de plena continuidade com a surdez que ganhou normatividade jurídica em 2002.

Importante considerar que a atividade missionária batista com surdos progressivamente se vinculou à lógica da missão transcultural, com efeito surdos passaram a ser vistos como um “povo não alcançado”, com “língua” e “cultura”, algo que tangencia o meio evangélico atualmente. De acordo com esse modelo de missão aplicado, sobretudo, aos povos indígenas, para que um “povo” seja considerado alcançado pela mensagem cristã são necessárias a tradução da Bíblia para a língua nativa e a conversão de autóctones, que devem levar adiante a missão (Almeida, 2006). Diferentemente de outros povos não alcançados, o “povo surdo” ocupa um segmento na própria congregação local. Como a língua de sinais não possui escrita, a formação de intérpretes vem suprir a função da tradução do cristianismo para surdos.

Considerações finais

O processo de constituição da libras, bem como da concepção de “cultura surda”, foi algo bastante complexo. Apesar de ele ter sido mais amplo, até se traduzir em normatividade jurídica, procurei nesse texto ater-me exclusivamente ao papel de agências protestantes nesse processo.

A incorporação da comunicação total e a crítica ao oralismo nos projetos luteranos e batistas garantiram aos sinais o estatuto de meio legítimo de comunicação, ainda que em uso conjunto com a oralidade. Contudo, é somente a partir da normatividade que o bilinguismo implica, o uso separado das línguas de sinais e oral, é que os sinais passaram a ser vistos como algo que deve ser utilizado independentemente da língua oral, o que implica uma mudança a ser processada sobretudo na performance corporal do intérprete, o missionário com surdos.

Certamente, o papel fundamental das instituições religiosas protestantes é a formação de um grande número de ouvintes fluentes nessa língua, além de afirmarem sistematicamente a surdez em termos de “cultura”, algo sem paralelo com demais instituições sociais. Nesse processo, são agentes com trajetória religiosa protestante que passara a desempenhar o papel de mediação como intérpretes, intelectuais, ativistas políticos e profissionais vinculados à libras. O que contribuiu definitivamente para a consolidação dessa língua em termos nacionais, bem como o engendramento do discurso que afirma a surdez como particularidade cultural.

Notas

2 “Quando estou entre os fracos na fé, eu me torno fraco também a fim de ganhá-los para Cristo. Assim eu me torno tudo para todos a fim de poder, de qualquer maneira possível, salvar alguns” (I Coríntios 9:22, Bíblia Sagrada, 2001).

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