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As congregações em Língua de Sinais das Testemunhas de Jeová: A Universalidade do Governo do Reino de Deus e a Particularidade das Línguas
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Publicado em 2011
Debates do NER, Porto Alegre, ano 12, n. 20 p. 121-143
César Augusto de Assis Silva
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

A língua brasileira de sinais (libras) foi reconhecida juridicamente em 2002. No processo que levou ao engendramento da surdez como particularidade linguística, algumas instituições religiosas foram importantes. Entre estas, destaca-se as Testemunhas de Jeová. O objetivo deste artigo é analisar o projeto específico de evangelização em língua de sinais. A sua atuação se caracteriza pela fundação de congregações particulares dessa língua, com uma larga produção de vídeos e o treino sistemático da oratória. Contudo, em consonância com sua teologia, tal projeto não leva à afirmação de particularismo identitários políticos na surdez, não havendo em seus rituais uma marcação de diferenças entre surdos e ouvintes. Seu projeto trata sobretudo de traduzir suas práticas para essa língua e a transformação de sujeitos surdos em filhos escolhidos de Jeová.

Em 2002, a língua brasileira de sinais (libras) foi reconhecida como meio legal de expressão e comunicação 2. Em paralelo a esse processo político-jurídico, constituiu-se também a afirmação de que surdos, por serem usuários de tal língua, seriam dotados também de cultura particular, algo presente em formulações acadêmico-científicas de linguistas, fonoaudiólogos, psicólogos e pedagogos (Quadros, 1997; Skliar, 1998; Moura. 2000, Capovilla; Raphael, 2001), em reivindicações do movimento social surdo 3 e também no modo como instituições religiosas cristãs têm desenhado projetos missionários específicos para a evangelização do que concebem como um grupo particular.

Desde os anos 1980, determinadas igrejas cristãs – sobretudo Igreja Católica, Igreja Evangélica Luterana do Brasil, Igreja Batista e Testemunhas de Jeová – tornaram-se locais fundamentais para formulação da surdez como particularidade linguística. Tais instituições desempenharam papel chave nos processos associativos de pessoas surdas, na produção da organização do léxico em sinais em formato de dicionários 4, no aprendizado de tal língua (tanto por surdos como por ouvintes), na formação de professores e intérpretes de língua de sinais, na constituição de lideranças surdas e de oradores públicos nessa língua.

O projeto evangelístico das Testemunhas de Jeová aplicado à surdez, objeto deste artigo, diferencia-se bastante da maioria das outras instituições religiosas que atuam nessa questão. Como exemplo, congregações protestantes que evangelizam surdos garantem a sua inserção em cultos pela presença do intérprete de língua de sinais, que verte para tal língua o dito em língua oral. Testemunhas de Jeová, de outro modo, preferencialmente não utilizam intérpretes em suas reuniões. A presença do intérprete até pode ocorrer eventualmente e, de acordo com relatos, até muito recentemente ocorria com bastante frequência. Contudo, no processo de evangelização de surdos nas congregações das Testemunhas de Jeová, a prática da interpretação é substituída por outra mais apropriada ao modo como essa instituição operacionaliza a universalização do cristianismo em todo globo terrestre, a saber, por meio da fundação de novas congregações.

A partir das congregações dessa instituição são fundadas outras congregações específicas em língua de sinais, ou seja, congregações em que todos os membros utilizam essa língua em seus rituais, independente de ouvirem ou não e da posição que ocupam na hierarquia da instituição, tornando-se desnecessária a interpretação. De acordo com dados da instituição (de agosto de 2009), ao todo somam 310 congregações desse tipo em todo o Brasil. Para o desenho dessa atividade evangelística específica, foi fundamental a produção de suas principais publicações em língua de sinais, publicadas por meio de vídeos.

O objetivo deste artigo é analisar o projeto de evangelização em língua de sinais das Testemunhas de Jeová, instituição relativamente pouco pesquisada no interior das ciências sociais brasileiras que se ocupa da religião 5. Trata-se de compreender uma característica, de certo modo, paradoxal no fenômeno em análise. Apesar de as Testemunhas de Jeová terem solidificado um projeto que leva a um extremo a produção da surdez como particularidade linguística – uma vez que fundam congregações em língua de sinais, além de terem uma larga produção em vídeos e formarem oradores públicos nessa língua –, tal empreendimento não é acompanhado por afirmações de particularismos identitários e culturais vinculados à surdez – práticas que permeiam a atuação de católicos e protestantes. Tal fato se justifica pelo modo como tal instituição é dotada de uma teologia que nega particularismos identitários de quaisquer espécie (civis, nacionais e políticos), pois seus membros formam idealmente uma associação inteira de irmãos no mundo, devendo obediência a um governo teocrático da instituição, o denominado corpo governante tido como o provedor espiritual da instituição.

O artigo está dividido em três partes. Primeiramente, será explicitado um quadro da teologia e algumas práticas da instituição para a compreensão de algumas das condições sociais que permitiram a emergência das congregações em língua de sinais. Na segunda parte, será demonstrando como essa instituição engendrou um contexto bilíngue exemplar, no qual língua de sinais e oral são tratadas de modo equivalente. Por fim, na terceira parte, será explicitado como essa instituição, em seus rituais, não marca diferenças entre surdos e ouvintes, pois, em suas práticas, marcação fundamental é ser testemunha de Jeová e, portanto, nação escolhida (eleitos) e não criaturas do mundo.

A Teologia Milenarista das Testemunhas de Jeová

Essa instituição surgiu em 1872, na Pensilvânia (EUA), no contexto do avivamento religioso norte-americano, fundada por Charles Taze Russell (1853-1916). Ao longo de sua história, a instituição já adotou diversos nomes, sendo hoje oficialmente a Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, embora comumente se autodenomine e seja também conhecida por Testemunhas de Jeová. A trajetória religiosa de seu fundador, um presbiteriano convertido ao adventismo, revela algumas das características da instituição, já que ela combina uma ascese de inspiração puritana com um sectarismo talvez mais marcado que o da Igreja Adventista. Em sua narrativa oficial, foi introduzida no Brasil em 1923.

De um ponto de vista teológico e ritual, é possível perceber algumas semelhanças entre práticas protestantes e de testemunhas de Jeová, a saber, a valoração do contato individual com as escrituras, o salvacionismo, o proselitismo conversionista, a clareza entre ser ou não convertido, a bibliocracia, o anticatolicismo, a crítica a qualquer ritual sacramental-mágico, a adesão individual voluntária à congregação por parte de adultos batizados e regenerados, entre outros elementos que revelam certa herança de origem reformada. Apesar disso, esses elementos não implicam jamais a sua indicialização à categoria protestante por cientistas sociais da religião (Mariano, 1999; Almeida, 2002). No IBGE 2000, foi classificada no grupo de Neocristãos – juntamente com a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmons) e Legião da Boa Vontade –, somando ela ao todo 1.104.879 adeptos (Jacob et al, 2003).

Não raro, no interior do campo religioso cristão, as Testemunhas de Jeová recebem a acusação de seita. Como não faz parte de sua teologia a afirmação da unidade da trindade, crença partilhada por protestantes e católicos, é comum que estes últimos afirmem que essa não é sequer uma instituição cristã. Muitas vezes, a acusação de seita extrapola o meio institucional religioso. Como exemplo, Giumbelli (2002, p. 194-202) demonstra como, historicamente, na França, essa instituição religiosa esteve envolvida em batalhas judiciais para a definição de seu estatuto de seita ou religião. O fato de se oporem à defesa da nação por meio de armas, recusarem participar de eleições e não autorizarem a transfusão de sangue em crianças foram razões para a sua classificação desfavorável como seita em determinados processos. Anteriormente, certa vigilância também se fez presente no Brasil, de acordo com Castro (2007), entre os anos de 1940 e 1947, em meio aos governos de Dutra e Vargas, a Segunda Guerra e o início da Guerra Fria, a instituição teve suas publicações confiscadas, seus membros presos e seus registros proscritos no país, sendo acusados de maneira contraditória de propagandear, com suas práticas contrárias a valorações cívicas, o nazismo, o fascismo, o comunismo e o anarquismo.

A acusação de que essa instituição é uma seita está pautada em grande medida na imensa especificidade teológica e prática e de seu posicionamento bastante sectário em relação a outras instituições cristãs. É constitutivo de sua dissonância em relação a outras igrejas cristãs a particularidade de seu léxico para fazer referência a temas e questões religiosas. Seus membros referem-se a Deus pelo que afirmam ser o Seu verdadeiro nome, Jeová, além de, preferencialmente, não utilizarem a categoria igreja, nem como categoria geral para referir-se à instituição, nem para a unidade local que a congregação representa. Para o primeiro caso, utilizam a categoria instituição religiosa, para o segundo referem-se ao salão do Reino ou simplesmente salão. De modo semelhante, denominam os seus encontros semanais de reuniões e seus membros possuem uma identidade religiosa bem marcada, afirmando serem testemunhas de Jeová. Entre outras especificidades que delimitam as suas fronteiras com outras igrejas cristãs, não afirmam que Cristo foi crucificado, mas que foi morto e preso em uma estaca de tortura, com as mãos unidas.

Há uma hierarquia bastante valorizada conformando a totalidade da instituição, abarcando tanto seres sagrados como pessoas no plano terreno. Essa hierarquia vai desde Jeová, que ocupa a primeira posição, passando por Jesus ocupante da segunda, até a última, ocupada por estudantes, pessoas que estão sendo iniciadas nas doutrinas da instituição. A posição superior da hierarquia da instituição, ocupada por pessoas do plano terreno, denominase corpo governante, formada por ungidos, isto é, escolhidos por Deus, que fazem parte dos 144 mil que, acredita-se, terão vida celestial após a morte. A posição superior na unidade da congregação é a de ancião. Além disso, todos os membros devem completa obediência à hierarquia da instituição e as designações para a ocupação das posições provêm de superiores 6.

É necessário considerar também o seu milenarismo. Tal como em outras vertentes do cristianismo, o mundo é visto como um local de constante degradação, tendo a queda sido iniciada com o pecado original e a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Para as Testemunhas de Jeová, essa degradação somente cessará com o retorno de Cristo em espírito. É quando se iniciará o Armagedom, que colocará fim a esse sistema de coisas, que não implica o fim do plano terrestre, mas a sua regeneração. Uma grande multidão, compostas pelas outras ovelhas de Jeová, será salva, formada por justos (conhecedores da verdade e que nela vivem) e injustos (pessoas que desconhecem a verdade, mas que serão salvas pela misericórdia de Jeová), multidão esta que construirá, juntamente com Cristo e por meio do trabalho, o paraíso ao longo de mil anos. Os iníquos 7 serão eliminados eternamente. A partir de então, começará o governo milenar de Cristo, quando Satanás permanecerá encarcerado. Além disso, nesse período, o que denominam pequeno rebanho, composto por 144 mil ungidos (salvos escolhidos por Deus), subirá ao céu, para governar o paraíso terrestre com Cristo. Passados esses mil anos, ao final do qual estará consolidado o paraíso, Cristo entregará novamente a Terra para Jeová. A partir de então, os bons viverão para sempre e os maus estarão mortos para sempre. Não haverá mais doenças, miséria, guerras, velhice, morte, deficiências, nação e nem governos humanos.

É necessário considerar que a teologia das Testemunhas de Jeová combina a teoria da predestinação calvinista com a teoria da salvação arminiana 8. Como para essa instituição o fim desse sistema de coisas está muito próximo, há uma grande urgência em fazer com que mais indivíduos conheçam a verdade para que possam se arrepender de seus pecados. Assim, cabe a todas as testemunhas de Jeová proclamarem as boas novas, impulsionando a pregação metódica de casa em casa e a fundação de congregações no mundo todo 9.

É central em tal instituição a leitura, o estudo sistemático individual, a discussão pública na congregação e a divulgação de suas publicações. Entre estas, destaca-se A Sentinela – Anunciando o Reino de Jeová, publicada desde 1879 e que seus membros afirmam ser o maior periódico religioso do mundo. Possui uma tiragem quinzenal de 28 milhões de cópias, sendo traduzida para 180 idiomas e distribuída em 236 países (TJ, 2010). Possuem uma tradução específica da Bíblia, além de diversos livros, revistas e vídeos doutrinários produzidos pelo corpo governante.

Realizam estudos bíblicos guiados por temas de suas publicações. Entre estas, o periódico A Sentinela é de um didatismo ímpar. Seus artigos são acompanhados de uma lista de questões a serem respondidas, funcionando como um guia de leitura. Para facilitar o entendimento do texto, cada parágrafo traz indicado em seu começo o número da questão relativa a ele a ser respondida. Como as publicações da instituição constituem o meio por excelência de homogeneização e controle mundial da prática de seus membros e, também, como todas são produzidas em inglês pelo corpo governante, a tradução linguística de seus materiais ocupa papel central em seu projeto de universalização do cristianismo, pois pretendem que elas cheguem igualmente aos 236 países onde a instituição está presente.

O Lar de Betel 10 de Nova York é a sede mundial, de onde provêm todas as publicações e normas, bem como local em que reside o corpo governante. Alguns outros países podem centralizar, de maneira subordinada à Nova York, a reprodução de suas publicações, como é o caso do Lar de Betel do Brasil, localizado em Cesário Lange-SP, onde se traduz suas publicações do inglês para o português e deste para a língua de sinais. É o local também de produção gráfica, gravação de áudio e vídeo, expedição de materiais para toda a América do Sul, setor de relações públicas, departamento legal, setor para informações para hospitais acerca das alternativas para o não uso do sangue, além do setor que gerencia a construção de Salões do Reino em todo o Brasil.

São mundialmente conhecidas pela prática de evangelização de casa em casa. Muitos de seus membros dedicam-se a essa atividade chamada de trabalho de campo. Geralmente, cada congregação possui um mapa de sua localidade, em um quadro de vidro preso à parede do salão, esquadrinhado por bairros, vilas, ruas, partes de rua, casas, para que grupos determinados realizem a evangelização de maneira absolutamente organizada.

Dada a centralidade que a evangelização de casa em casa possui nessa instituição, visando garantir a plena eficiência dessa prática, quando uma congregação aumenta de maneira significativa o seu número de membros, ela passa por uma divisão, surgindo dela outra congregação. Essa divisão se processa de acordo com o mapa territorial em que o evangelismo é realizado. Como exemplo, se a congregação do bairro X reúne membros das vilas Z e Y, com o crescimento, ela se divide em duas congregações que recebem o nome das respectivas vilas. Em decorrência da divisão fundadora, horários diferentes garantem que o mesmo espaço seja partilhado para assistências, anciãos, hierarquias e caixas independentes, que constituem as respectivas congregações, cujos territórios para o evangelismo passam a ser devidamente demarcados em mapas diferentes. Identifiquei casos de salões do Reino com até cinco congregações.

Há outros elementos bem marcados que as caracterizam. Seus membros são mundialmente referidos por sua posição contrária à transfusão de sangue. Para elas, a vida está no sangue, sendo este, portanto, sagrado, e o seu uso é visto como uma violação das leis de Deus. Além disso, seus membros são contrários à valorização de organizações políticas e civismos: não cantam hino nacional, não juram bandeira, não prestam serviço militar, não votam e não seguem carreiras políticas. Como Jeová é apenas um e somente um o seu povo, acham incorreto a divisão entre nações, pois elas devem obediência somente ao governo universal do Reino de Deus. São politicamente neutros, não participam de movimentos sociais e nem se envolvem em controvérsias sociais, pois acreditam que estas somente serão solucionadas com a segunda volta de Cristo e o seu reinado milenar, quando a paz e harmonia serão instituídas eternamente. Além disso, não comemoram aniversários, páscoa, natal e festejos juninos. A única data que celebram anualmente é a Comemoração da morte de Cristo ou Refeição noturna do Senhor, quando realizam a comunhão. Nesta ocasião, apenas os que professam ser ungidos podem beber o vinho e comer o pão, que representam o corpo e o sangue de Cristo 11.

Suas práticas implicam, em grande medida, uma constante e reiterada separação do mundo, que é visto como impuro. Essa separação é performatizada em uma valoração estética específica que se expressa de diversas maneiras na conduta de seus membros e nas próprias unidades da instituição que, em verdade, devem espelhar a própria pureza e santidade tidas como de Jeová. Seus ensinamentos pregam, como está expresso na publicação O que Deus requer de nós (TJ, 1996), que, além da pureza mental, espiritual e moral, seus membros devem purificar-se fisicamente por meio da higiene e de um metódico cuidado de si. Essa valorização estética que leva a uma aparência asseada de seus membros pode ser percebida no modo como os membros costumam vestir-se de social para as reuniões no salão e na condução de assuntos religiosos, como a evangelização de casa em casa.

Essa estética das testemunhas de Jeová no cuidado com a higiene, vestimentas e organização de ambientes domésticos também é visível nas fotos de membros que ilustram as suas publicações. Estas demonstram as testemunhas de Jeová em seus estudos domésticos, reuniões e visitações evangelizadoras de casa em casa sempre bem vestidas, arrumadas, com um semblante alegre e sereno, em ambientes limpos e organizados.

Além disso, o próprio salão do Reino performatiza em grande medida uma estética da escolha divina, em que a limpeza e a ordem são estruturantes. O local em que fica o púlpito geralmente é acarpetado, compostos por móveis bem conservados e sofás confortáveis de cores bem destacadas (azul, vermelho, entre outras). Os assentos para a assembleia geralmente são almofadados e também confortáveis e conservados. Pode haver pinturas bem realistas, quase fotografias, representando o passado bíblico, decorando o fundo do palco. A conservação da pintura das paredes costuma ser impecável, bem como a limpeza dos pisos. Quando possível, na porta de entrada de cada salão do Reino, há um jardim metodicamente cuidado.

A sua sede, o Lar de Betel, ocupando uma área de 146 mil m², é a expressão máxima desse cuidado extremo com a ordem. É constituído por uma grande área externa comum, composta por um extenso gramado impecavelmente aparado, assim como árvores e arbustos metodicamente modelados de maneira uniforme. As ruas internas são limpas e circundadas com cercas de madeira pintadas de branco. Há placas sinalizando os caminhos que levam às partes que compõem o local. Além disso, a arquitetura do próprio prédio inspira a ordem e a obediência. A construção é bastante ampla – já que mil pessoas, os betelitas, residem nela – e circunda o pátio principal (um amplo gramado). As janelas são grandes, quadradas e uniformes, lembrando uma rigorosa arquitetura militar. As cores que decoram os ambientes internos são tons escuros e pastéis, e objetos decorativos são utilizados, mas o mínimo necessário. Assim, todo o ambiente do Lar de Betel parece estar vestido de social.

Os locais em que realizam assembleias e congressos expressam também um grande zelo pela ordem e limpeza. Nesses encontros, no caso de congregações em língua de sinais, geralmente são exibidas em um telão fotos de refeitórios e de portas de banheiros tiradas em eventos semelhantes de anos anteriores para demonstrar o quanto houve higiene e organização naquela ocasião, o que deveria repetir-se no evento atual. É comum que os membros narrem com orgulho que, quando realizavam encontros em estádios de futebol, reunindo dezenas de milhares de pessoas, as testemunhas de Jeová entregavam o estádio completamente limpo.

Essa ordem metódica também se expressa pelo menos em duas outras questões, o modo como se relacionam com o tempo e a língua. A pontualidade é bastante respeitada pelos seus membros: não há atrasos sequer de minutos para começar ou terminar qualquer atividade. No Lar de Betel, betelitas realizam atividades coletivas praticamente cronometradas de modo mecânico, seguindo rigorosamente horários estipulados. Nos salões do Reino, como geralmente o espaço é dividido com diversas outras congregações, há estrita observância na duração de cada atividade. O mesmo pode ser dito em relação à atividade de evangelização de casa em casa, já que, de acordo com a posição na hierarquia da instituição, há determinada quantidade de horas a ser cumprida. Essa estética também se expressa no modo como concebem a língua de seus membros. Eles devem ter uma conversa pura, pautada pela verdade: não contam piadas tidas como obscenas, nem histórias impuras. Além disso, em suas reuniões, praticam a oratória para a realização de pregações e discurso público, treinamento sistematizado pela publicação Beneficie-se da Escola do Ministério Teocrático (TJ, 2001).

De acordo com a teologia das Testemunhas de Jeová, os seus membros precisam destacar-se por sua ordem e pureza para além do ambiente propriamente religioso. No trabalho, elas devem ser exemplo de honestidade, pontualidade, obediência, retidão de caráter e excelência no profissionalismo. Cada membro deve espelhar em si a sua condição de ser testemunha de Jeová. É menos pelo que dizem e mais pelo que fazem que devem exprimir a sua condição de escolhidos e, desse modo, levar a todos a verdade do reino de Deus.

A Congregação em Língua de Sinais

De acordo com relatos de informantes, os trabalhos de congregação e evangelização voltados para a surdez iniciaram-se no início dos anos 1980. A primeira congregação em linguagem de sinais 12 foi fundada em 1982, em Niterói – RJ. Em São Paulo, a primeira foi fundada no bairro da Liberdade, em 1987. Apesar de essas congregações terem sido criadas ainda nos anos 1980, a performance da interpretação em língua de sinais em congregações comuns (com ouvintes) foi dominante ao longo dos anos 1990, tendo a prática de formação de congregações em língua de sinais se fortalecido sobretudo no século XXI.

Em caráter temporário, é comum que a congregação que esteja iniciando a sua atividade de evangelização em língua de sinais possua intérpretes. Contudo, na medida em que ela obtém um número razoável de pessoas fluentes nessa língua, a interpretação é superada. A intenção é possibilitar que o veículo fundamental de comunicação na congregação seja a língua de sinais e que seus membros possam ocupar-se unicamente do evangelismo de casa em casa utilizando tal língua.

O modo como esse projeto evangelístico em língua de sinais se expande está diretamente vinculado ao modo como essa instituição se dissemina, por meio da lógica da divisão de congregações. A congregação em língua de sinais emerge a partir de outras. Ela é fundada a partir de uma divisão da congregação nos moldes como se realiza quando do aumento da congregação. Ou seja, anciãos, membros e devidas hierarquias, assim como o caixa e seus respectivos controles, também são divididos, tornando-se uma nova congregação absolutamente subordinada ao Lar de Betel, usuária de língua de sinais.

Dada a centralidade de suas publicações em suas práticas, traduzem-nas para diversas línguas. Desse modo, as línguas de sinais de diferentes países têm sido incluídas em seu projeto de universalização do cristianismo 13. A tradução de seus materiais para a língua brasileira de sinais também se
consolidou em um processo. Em 1996, passaram a produzir os dramas 14; em 2000, as publicações Os Cânticos e a série O Verdadeiro Conhecimento; em 2004, o periódico quinzenal A Sentinela. Desde então, possuem uma crescente produção nessa língua, estando em processo a tradução total da bíblia. Por enquanto, traduziram os evangelhos de João, Marcos, Mateus e Lucas (2009) e os livros de Romanos, Atos e 1 Coríntios (2010).

O ritual das reuniões das congregações em língua de sinais precisa ser considerado, pois constitui um dado fundamental para esta análise. As reuniões são absolutamente padronizadas, o que permite uma descrição etnográfica muito próxima de sua realização empírica. Em verdade, as reuniões em língua de sinais são exatamente como as de língua oral, apenas utilizam outras tecnologias. Consideremos a sua estrutura.

A reunião inicia-se com a (1) saudação de um ancião. Após isso, o servo ministerial – auxiliar dos anciãos – que opera um aparelho de DVD coloca um vídeo que contêm o (2) cântico espiritual. Este cântico é transmitido na televisão que ocupa o canto esquerdo do palco e consiste em uma música silenciosa em língua de sinais. O tema da música sempre está vinculado ao discurso público que será realizado na sequência e é escolhido pelo orador dessa preleção. Toda a assistência, em pé, canta conjuntamente e silenciosamente com as mãos, copiando os sinais desse cântico. Após isso, passa-se para a (3) oração inicial, realizada por um ancião.

Inicia-se então a primeira parte da reunião, composta pelo (4) discurso público, geralmente realizado por um ancião de outra congregação. Como material de apoio, costuma-se utilizar também um DVD ou o data show. Geralmente, são ensinadas as principais doutrinas e o tom do discurso costuma ser apocalíptico, mostrando os sinais de que o fim desse sistema está próximo.

Após o discurso público, é realizado mais um (5) cântico espiritual, normalmente vinculado ao (6) estudo da publicação A Sentinela, iniciado na sequência, constituindo a segunda parte da reunião. Nessa revista, estão predeterminadas as datas e os artigos que serão discutidos, de modo que as testemunhas de Jeová de todo o mundo estudam os mesmos textos no mesmo período. Os membros da congregação em língua de sinais possuem também os textos de A Sentinela em língua de sinais. Todos os membros costumam vir com as questões dos textos estudadas e respondidas, para possibilitar um maior aproveitamento no estudo. Os vídeos da publicação seguem o mesmo padrão do texto escrito, há indicações numeradas no canto superior esquerdo do vídeo de quais questões devem ser respondidas com o conteúdo que está sendo sinalizado.

Um ancião preside esse estudo e um servo ministerial controla o aparelho de DVD, dando os necessários pause e play do vídeo do texto de A Sentinela em língua de sinais 15, transmitido também na televisão. Inicia-se o estudo com a questão a ser respondida e, na sequência, é transmitido no vídeo o parágrafo que contém a resposta. Após isso, estando o texto pausado, o ancião que está presidindo o estudo comenta o exposto e recoloca a questão para a assistência. Esse é o momento em que todos os membros participam. Vários, que sabem a resposta, levantam a mão e, desse modo, o ancião decide quem responderá, indicando ao outro servo ministerial presente no palco, que opera uma câmera gravadora, para que ele focalize a pessoa escolhida, de modo que sua resposta seja transmitida na mesma televisão que está sendo transmitindo o texto, para que todos possam vê-la 16. Todos respondem, sem exceção, em língua de sinais. Para algumas questões, o ancião coleta respostas de mais de um membro. Após a resposta, geralmente, o ancião faz algum comentário e volta-se novamente para o texto, até que todas as perguntas estejam respondidas pela assistência e todo o texto compreendido. Após isso, o próprio vídeo propõe uma recapitulação de tudo o que foi discutido, por meio de novas questões a serem respondidas, o que se realiza de maneira mais breve.

Esse aparato tecnológico composto por um aparelho de DVD, uma câmera gravadora e uma televisão, o que exige que pelo menos três pessoas executem tarefas – um preletor que preside, um câmera man que focaliza os membros para as respostas e um operador de vídeo que executa as operações – permite que todos possam ver o que está sendo sinalizado por quem responde a questão em pauta. Com a ajuda da tecnologia visa-se, em grande medida, reproduzir de maneira metódica a disciplina que rege as congregações ordinárias em língua oral 17.

Após o estudo de A Sentinela, encerra-se com a (7) oração final feita por um ancião. Terminada a reunião, todos conversam e trocam experiência no salão, sempre em língua de sinais, como foi em toda a reunião. Como todos utilizam língua de sinais na congregação, sequer torna-se uma questão o fato dos presentes possuírem ou não surdez. Em termos gerais, essa é a estrutura da reunião da congregação em língua de sinais das testemunhas de Jeová.

Nas assembleias e congressos anuais que realizam, reunindo diversas congregações em língua de sinais, a performance é bastante semelhante. Aproximadamente mil pessoas reúnem-se em um local apropriado para assistências numerosas. Nesses eventos, realizam batismos, discursos públicos, apresentações de teatro e ocorre o lançamento anual do drama. Assim como nas congregações, tudo se passa em língua de sinais, inclusive as preleções, de modo que não é possível saber de antemão quem ouve ou não, já que esse não é um dado relevante durante o ritual. Apesar da assistência numerosa, o que impera é o silêncio, apenas quebrado por barulho de crianças.

Embora geralmente a metade da assistência seja ouvinte – há uma contagem na entrada do evento, dado posteriormente divulgado –, é notável como não fazem recurso algum à língua oral ou qualquer forma de som no recinto da reunião religiosa. Nos refeitórios, essa normatividade é relativizada. Como rigorosamente não há intérpretes, a utilização de sons para comunicar não seria eficaz para metade do público. Desse modo, a ordem e a disciplina vigentes nesses eventos prescindem de qualquer marcação que não seja visual. Como exemplo, nos intervalos que possuem tempo determinado para acabar, o público é avisado de que as atividades vão recomeçar por meio de um cronômetro que marca o tempo no telão. Sem aviso oral-auditivo de qualquer espécie, no tempo preciso, o público dirige-se e posiciona-se sentado para o começo das atividades.

Dada a centralidade que a evangelização de casa em casa assume nessa instituição, ela tende a empreender um trabalho específico de mapeamento de residências em que há surdos. Realizam o que denominam rastreamento. Seus membros costumam ir a diversas residências, estabelecimentos comerciais, postos de saúde, Secretarias da Educação e levantam o máximo de informações sobre a localização de residências em que há surdos na região da congregação. Nem sempre se identificam como testemunhas de Jeová, muitas vezes afirmam apenas pertencer a uma instituição que presta auxílio aos surdos. Além disso, membros de outras congregações, ao saberem de residências onde há surdos, também informam aos membros da congregação em língua de sinais. Desse modo, paulatinamente, realizam um esquadrinhamento rigoroso da região, residência por residência, em busca de surdos 18.

É comum que membros que evangelizam de casa em casa e aplicam estudos bíblicos domiciliares narrem casos de surdos que não sabiam língua de sinais e eram pouco ou nada alfabetizados em português. Nesse caso, os estudos bíblicos orientados por suas publicações acabam por prover tanto a língua de sinais como o português. Tal como é comum no caso de protestantes, a prática religiosa fomenta uma fluência nessas línguas, pois essa é uma instituição que provê um rigoroso estudo de suas publicações, com recomendações de leituras diárias. Além disso, nos encontros reali zados durante a semana, há treinos sistemáticos para a apresentação pública e para a evangelização de casa em casa em língua de sinais. Destacam-se como bons oradores, sobretudo, os homens que dominam os dogmas da instituição e também a língua de sinais pública necessária para as preleções. A carreira no segmento de língua de sinais dessa instituição, a priori, está igualmente aberta para surdos ou ouvintes, não sendo esta uma marcação relevante. Por conta disso, essa é uma instituição formadora de oradores públicos nessa língua.

Como as Testemunhas de Jeová posicionam-se em contraposição a outras igrejas cristãs no campo religioso e, também, como historicamente os sinais têm sido bastante experimentado nas atividades missionárias de católicos e protestantes, o dicionário Linguagem de sinais (TJ, 1992) também postula uma sinalização específica para alguns sinais de cunho religioso. Como exemplo, dada a crença de que, após a morte, o corpo, ou ficará eternamente na sepultura, ou ressuscitará com a segunda volta de Cristo, para as testemunhas de Jeová a alma é o próprio corpo em sua materialidade. Por conta disso, o sinal que dão para a palavra “alma” é o mesmo que católicos e protestantes dão para a palavra “carne” (idem:171), de modo que, em sua língua de sinais, alma é carne. De maneira semelhante, como para elas não há inferno, a tradução dessa palavra recebe o sinal de “sepultura” (idem: 209). A palavra em português “cristão” tem por tradução o sinal de TJ (idem:190) e o sinal que católicos e protestantes atribuem a palavras do português “Bíblia” ou “crente” torna-se “salão do Reino” (idem:233) em suas práticas.

Além disso, como o léxico da instituição é bastante específico, há uma série de sinais que rigorosamente não são utilizados por católicos e protestantes. Contudo, alguns sinais apresentados por seu dicionário, por vezes são abandonados, e outros exteriores à instituição são incorporados. Como exemplo, é o caso de “Amém”, que era sinalizado pela digitação das letras A, M, E, e M. Posteriormente foi incorporado o sinal de “Amém” de protestantes (realizado com a mão direita agarrando a mão esquerda fechada). O mesmo pode ser dito do sinal para “satanás” ou “diabo”, que era o sinal de “dragão” (idem, 236) – pois é o dragão que simboliza o satanás nas ilustrações das Testemunhas de Jeová – mas que, atualmente, é sinalizado com o sinal de “chifre” 19.

Diferenças não Marcadas entre Irmãos da Nação Escolhida

Nos rituais dessa instituição realizados em língua de sinais, a saber, reuniões, estudos bíblicos, congressos, assembleias, dramas (filmes bíblicos), entre outros, não há marcação alguma de diferenças entre ouvintes e surdos (ou deficientes auditivos). É muito rara nos discursos públicos qualquer referência ao fato de alguém se diferenciar pela audição. Como todos sinalizam, não é possível saber de antemão a condição audiológica de preletores e membros.

De outro modo, há uma marcação fundamental estruturando as suas práticas, o fato de serem testemunhas de Jeová e, desse modo, integram uma nação universal de irmãos regenerados, diferenciando-se das pessoas do mundo. Essa é a principal performatização que conforma a prática dos membros dessa instituição, expressando-se sobretudo, como foi demonstrado, em uma estética de ordem e pureza espiritual, moral, mental e física, tendo a testemunha de Jeová, seguindo o exemplo de Cristo, uma conduta reta em todos os domínios da vida, inclusive na atuação profissional. Assim, os filhos escolhidos de Jeová devem espelhar em si a pureza e a santidade que os distanciam das criaturas do mundo.

Diferentemente do que foi identificado em paróquias católicas e congregações protestantes que evangelizam surdos, nas congregações das Testemunhas de Jeová não é valorizada a passagem bíblica da cura milagrosa do surdo-mudo operada por Cristo 20. Como as reuniões são realizadas em estrita consonância de conteúdo com as reuniões de todo o globo terrestre, as referências à surdez ou ao milagre da cura do surdo-mudo nelas apenas surgem quando estão postas para todas as congregações, ou seja, ocasionalmente.

Além disso, uma série de categorias propriamente étnicas, atualmente utilizadas na surdez, não é marcada nessa instituição, diferentemente também do que ocorre em congregações protestantes e paróquias católicas. Não há qualquer referência nesses rituais a categorias como cultura surda, comunidade surda e povo surdo. Em seus discurso e publicações, as categorias nação e povo são utilizadas para marcar a universalidade das testemunhas de Jeová, como nação e povo escolhidos, e não como entidades particulares que devem ser evangelizadas, como elas são para católicos e protestantes na questão da surdez. Ademais, tampouco há qualquer discurso propriamente político, afirmando e exaltando particularidades e direitos do grupo em questão.

Se é bem verdade que no ritual não se marca diferença entre surdos e ouvintes de maneira sistemática, é necessário considerar também que isso não abarca a totalidade das interações que são travadas no interior das congregações em língua de sinais. O processo de rastreamento, o estabelecimento dos primeiros contatos nas residências e o estudo individual com surdos, certamente faz em com que os publicadores, sobretudo os que se definem como ouvintes, realizem afirmações generalizantes sobre os traços particulares dos surdos, e, nesse ponto, opera-se algo muito semelhante com as relações estabelecidas nas congregações protestantes. Como exemplo, foram identificadas marcações de diferenças referidas aos surdos: a dificuldade com o português, o isolamento na família, a falta de pontualidade e diferentes concepções de tempo, o comportamento nervoso de alguns, a ausência de moralidade sexual, entre outros elementos. Nesse jogo de espelhos, essas características que são arbitrárias, situacionais e contrastivas, podem ser indicializadas à categoria cultura surda. Contudo, nesse caso, isso não é visto como fundamental no discurso teológico da instituição. O importante é que os estudantes, quer sejam pessoas com surdez ou não, o mais rápido possível incorporem a verdade fundamental da Bíblia e, nesse processo, passem a performatizar a certeza da escolha divina, separando-se das pessoas do mundo. Rigorosamente, as testemunhas de Jeová do mundo todo devem portar os mesmos sinais da salvação: a aparência asseada, a higiene, a pontualidade, a retidão de conduta, o estudo sistemático, a obediência à hierarquia, a moralidade sexual, uma conduta profissional exemplar, a honestidade e o comprometimento.

Desse modo, ela performatizam em seus rituais o porvir da salvação no paraíso terrestre. Tudo se passa como se os governos dos homens, representados pelas nações, já tivessem sucumbido perante o governo teocrático que emana do centro de sua instituição. Não há nessa instituição marcação política de forma alguma, reinando soberana a universalidade da condição de irmãos obedientes ao corpo governante. As diferenças de língua e raça (fenótipo) podem permanecer, mas elas não devem gerar qualquer forma de controvérsia ou falta de entendimento mútuo.

Essa é a especificidade constitutiva da atuação de Testemunhas de Jeová na surdez. Por um lado, é a instituição religiosa que possui uma larga produção de vídeos em língua de sinais, fundando congregações específicas e reunindo multidões em eventos onde essa é a língua exclusiva para preleção, discussão, estudo bíblico, teatros e filmes bíblicos. Contudo, em consonância com sua teologia, tal produção não implica a afirmação de particularismo identitário e político na surdez, não tendo as categorias povo surdo, comunidade surda e cultura surda funções em seu projeto missionário, ao contrário do que formulam protestantes e católicos. Ademais, essa instituição , indiretamente, acabou por produzir uma população de usuários dessa língua, pessoas que não ouvem associadas pelo seu rastreamento metódico de casa em casa, assim como pessoas que ouvem, as quais aprenderam tal língua nesse projeto missionário específico.

Por meio de minha etnografia, tenho identificado que muitas pessoas com trajetória religiosa de testemunhas de Jeová têm atuado como professores e intérpretes de língua de sinais em um mercado recentemente formado após o reconhecimento jurídico de tal língua. Tal passagem de um ambiente religioso para outros laicos, por vezes gera alguns dilemas para as testemunhas de Jeová em sua atuação. A especificidade de tais profissionais é que sua prática é interditada em alguns pontos devido à teologia da instituição, como exemplo, não interpretam para língua de sinais o hino nacional, nem falas de políticos vinculados a partidos políticos, assim como mantêm distância das controvérsias sociais que mobilizam a surdez. Desse modo, permanecem fiéis ao dogma da neutralidade política que as caracterizam.

Em suas publicações e também em quadros que decoram alguns de seus ambientes, as ilustrações que representam o paraíso terrestre espelham em grande medida esse ideal de universalização do Governo do Reino de Deus. Esses desenhos costumam ser bem realistas, geralmente são pinturas realizadas sobre fotografias. Nelas, há uma diversidade humana bem marcada espelhando pessoas provenientes de diferentes locais do globo, como, por exemplo, pessoas negras, pardas, brancas, loiras, orientais; trajando vestimentas que denotam também diversidade nacional, como, por exemplo, pessoas portando chapéus mexicanos e vietnamitas, roupões japoneses e africanos, véus femininos, etc. Ademais, outras espelham a diversidade de profissões, como médicos, esportistas, professores, cozinheiros, entre outras. Essas pinturas representam a vida no paraíso com pessoas realizando alguma atividade coletiva, sobretudo ceando com fartura, felizes e serenas, em meio a uma natureza exuberante, com gramados, árvores, riachos e cachoeiras, cercadas de animais, inclusive alguns ferozes, como leões e ursos, mas que podem ser abraçados até por crianças, pois estão mansos na eternidade do paraíso.

Notas

2 Lei Federal 10.436 de 24/04/2002, regulamentada pelo Decreto Federal 5626 de 22/12/2005. Tal lei foi proposta pela senadora evangélica Benedita da Silva (PT-RJ), em 1996.
3 Movimento político liderado pela Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS), fundada em 1987, com sede no Rio de Janeiro e presente em nove capitais brasileiras.
4 Como exemplo de dicionários religiosos: católicos publicaram primeiramente Linguagem das mãos (Oates, [1969] 1988); Luteranos publicaram Linguagem de sinais do Brasil (Hoemann et al, 1983); Batistas publicaram Comunicação com as mãos e o Clamor do Silêncio (respectivamente, Igreja Batista, 1987; JMN, 1991); Testemunhas de Jeová publicaram Linguagem de Sinais (TJ, 1992)
5 São poucas as pesquisas em ciências sociais da religião sobre essa instituição religiosa. Os dados apresentados neste capítulo estão pautados sobretudo pela análise de suas publicações (TJ, 1992; 1996; 2001; 2010) e pesquisas de campo nas congregações. Alguns dados também foram retirados de Faillace (1990), Bornholdt (2004) e Castro (2007).
6 De acordo com Almeida (2010), a hierarquia da instituição segue a seguinte ordem: Jeová, Jesus, Anjos, Demais criaturas espirituais, Corpo governante, Demais ungidos ou Escravo Fiel e Discreto, Superintendente de Distrito, Superintendente de Circuito, Ancião, Betelitas, Servos Ministeriais, Pioneiros Especiais (missionários), Pioneiros Regu lares, Pioneiros Auxiliares, Publicadores Batizados, Publicadores Não batizados e, por fim, Estudantes. No interior dessas posições, é possível ainda haver hierarquias específicas e especializações diversas.
7 São aqueles que pecaram deliberada e conscientemente e não se arrependeram de seus pecados.
8 No protestantismo, a teoria da predestinação opõe-se à teoria da salvação arminiana. No primeiro caso, a salvação ocorre por vontade divina; no segundo, ela ocorre pela consciência de culpa e por um ato voluntário de aceitação do perdão divino (Mendonça; Velasques, 1990).
9 As Testemunhas de Jeová possuem 105.298 congregações em 236 países (TJ, 2010).
10 Do hebraico Behth-’Él, que signifi ca a casa de Deus.
11 Tal celebração ocorre de acordo com o calendário judaico, no dia 14 de nisã.
12 Essa era a categoria utilizada, linguagem de sinais, tal como o nome de seu dicionário de 1992. Em sua reedição de 2008, o nome passou a ser língua de sinais.
13 Em seu site, possuem publicações em 53 línguas de sinais. Disponível em: http://www.jw.org/index.html?option=QrYQFVTrFRYYNrT. Acesso em 12 de nov. 2011.
14 Dramas são filmes bíblicos produzidos no Lar de Betel do Brasil em que todos os personagens utilizam língua de sinais. Para os ouvintes, o drama é produzido somente com áudio em português.
15 De outro modo, na reunião em língua oral, o servo ministerial ou outro membro batizado designado lê os trechos de A Sentinela no microfone (Almeida, 2010).
16 Na reunião em língua oral, ao invés de focalizar com a câmera a pessoa que irá participar, outro membro leva o microfone até essa pessoa (Almeida, 2010).
17 Antes utilizavam o que chamavam de espelho: um membro ficava no palco copiando os sinais de quem respondia a questão, de modo que todos pudessem ver.
18 Na congregação em língua de sinais da Vila Carrão, em São Paulo, onde foi feita a pesquisa de campo para esta análise, havia na parede do salão um mapa da região em que todas as residências com surdos receberam tachinhas marcadoras. Desse modo, contabilizaram 296 surdos no bairro, sendo que dois eram publicadores batizados.
19 Identifiquei também que a especificidade do léxico utilizado por membros dessa instituição não se limita exclusivamente a temas religiosos.
20 Presente no evangelho de Marcos (7.31-37).

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