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Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais: história, experiência e caminhos de formação
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Publicado em 2010
Cadernos de Tradução (UFSC), v. 26, p. 207-236
Gisele Iandra Pessini Anater Matos
Gabriele Cristine Rech
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

Este artigo objetiva apresentar o Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais – TILS – a partir de reflexões atuais e de concepções que têm atravessado os tempos acerca da sua constituição como profissional. Mesmo que situemos os intérpretes de línguas orais e os de língua de sinais na mesma linha cronológica, faz-se necessário observar as significativas diferenças entre os dois, as quais são claramente observadas durante o desempenho de suas funções. Com base em Rodrigues e Burgos (2001) e nas experiências vividas pelos TILS brasileiros, apresentamos um quadro e realçamos as características que diferem o profissional que trabalha especificamente com línguas orais daquele sobre o qual objetivamos falar. Ainda que tenha que se expor, em função da modalidade lingüística da língua sinalizada, a competência do TILS parece ainda invisível, o que o afasta do almejado reconhecimento. É muito comum que seja entendido como colaborador ou facilitador da comunicação apenas, mas a sua constituição vai muito além das suas funções. Ao ter de lidar com as peculiaridades da língua de sinais precisa adquirir alguns de seus elementos fundamentais, além de ter de viver nas fronteiras das culturas de maneira exaustiva, e carregar responsabilidades que são vistas em si e na construção da sua subjetividade. Através de questionamentos direcionados aos que atuam nessa área destacamos as dificuldades encontradas com base nas suas experiências com a língua, com a prática da tradução e da interpretação, sobretudo, com a comunidade surda. Destacamos os caminhos de formação que têm percorrido com o objetivo de se constituírem como profissionais e garantirem sua visibilidade.

1. Introdução

Quem não compreende um olhar tampouco
compreenderá uma longa explicação.
Mario Quintana

Este artigo objetiva apresentar o Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais (doravante TILS) 1 a partir de reflexões atuais e das concepções que têm atravessado os tempos acerca da sua constituição como profissional. As declarações que ora apresentamos e que constituem nosso texto são resultado de questionamentos feitos a profissionais da área, os quais se dispuseram a relatar suas experiências com a Língua de Sinais Brasileira 2, com a cultura surda e com as especificidades da sua tarefa. Com base nessa metodologia, trazemos aspectos da formação e da história dos TILS, a fim de identificarmos os caminhos trilhados até a prática (dificuldades encontradas, os avanços e as suas necessidades).

De início, tomamos uma concepção geral acerca do tradutor e do processo de tradução, entendido como aquele que busca tornar compreensível aquilo que antes era ininteligível por meio de um movimento “para além de algo”, “através de”, em que o pensamento se desloca constantemente entre pontos diferenciados de partida e de chegada, num fluxo contínuo na tradução. Aproveitamos, também, outra definição recorrente, a qual concebe o TILS como mediador de conteúdos, sobretudo se ele estiver atuando em sala de aula, local em que sua tarefa é bastante específica. Nessa posição, ele é um “mensageiro” do conhecimento; é também “elo” ou “ponte” entre duas culturas, responsável pelo acesso à informação e à compreensão pela pessoa surda daquilo que é dito.

Diante dessa breve apresentação é possível perceber que a tarefa de traduzir e interpretar desenvolvida pelo profissional em questão é multifacetada. Ainda não encontramos definições claras e consensuais a seu respeito, o que torna a questão, também, bastante discutível. Com isso, igualmente, o profissional intérprete sofre com as variações de sentidos atribuídas ao seu trabalho.

Conforme destaca Pereira (2008a, p. 137),

O processo de tradução recebe muitas designações: reformulação, retextualização, conversão, transformação, e o tradutor ora é encarado como um mero reprodutor de textos, uma espécie de adaptador de voltagem entre línguas, ora alça a posição de co-autor

E essa pluralidade se reflete na constituição do próprio TILS, que se vê diante de olhares fragmentados acerca da sua atuação e da sua identidade.

Os contextos de atuação do TILS são visivelmente variados e seu compromisso abarca algumas tarefas fundamentais, principalmente porque há duas línguas em jogo, a LSB e a língua portuguesa (ou seja, línguas de diferentes modalidades). Tem-se debatido muito, no universo da tradução de língua de sinais, a respeito das especificidades que envolvem a diferença entre os atos de traduzir e de interpretar como práticas das atribuições desse profissional, que por diversas vezes é percebido de maneira equivocada pela sociedade.

Nessa perspectiva, Quadros et al. (2009, p. 19) esclarecem que:

 [a] interpretação envolve textos ‘orais’ (aqui, ‘orais’ [é entendido] como aqueles textos que estão sendo produzidos tanto no português falado, como na língua de sinais, ‘sinalizados’). Interpretação envolve tanto a da Libras sinalizada para o Português falado quanto do Português falado para a Libras sinalizada. Tradução envolve textos ‘escritos’. Pode ser da Libras escrita ou do Português escrito. [...] (O intérprete pode ler a respeito [do assunto apresentado em uma palestra, por exemplo], mas não tem como prever totalmente o que será dito pelo palestrante; somente na hora ele fará a interpretação de acordo com o que o palestrante disser). Na tradução, o tradutor pode estudar o texto a ser traduzido antes de traduzi-lo definitivamente. Ele pode fazer a tradução e arrumá-la antes de colocá-la à disposição do público.

Com base nessas definições, os mesmos autores destacam o TILS como aquele profissional que trabalha com a língua de sinais brasileira e a língua Portuguesa fazendo a tradução e/ou interpretação em basicamente três funções, em que:

  1. intermedeia a comunicação entre as pessoas surdas usuárias de Libras e as pessoas ouvintes usuárias da Língua Portuguesa em diferentes contextos;
  2. traduz os textos da Libras para a Língua Portuguesa e os textos da Língua Portuguesa para a Libras;
  3. auxilia no esclarecimento da forma escrita produzida pelos surdos em quaisquer contextos que se façam necessários (concursos, avaliações em sala de aula, documentos etc.) (p.19)

Interessa-nos, porém, ir além dessas acepções. Precisamos entender o que está em questão no ato da tradução e/ou da interpretação e que conhecimentos estão envolvidos na interação que se constrói através do traduzir e traduzir-se, de modo a contribuir para uma possível ressignificação desse profissional.
Pereira (2008) salienta algumas inquietações recorrentes entre os TILS. Para ela,

Ser intérprete é ser, intrinsecamente, um profissional atormentado por ter que estar presente e fingir-se invisível, algo ainda mais impensável para um intérprete de uma língua que é percebida prioritariamente pelo canal visual, como uma língua de sinais; e por não poder ser o ‘eu’ nem o ‘tu’ plenamente, por estar sempre em uma posição instável e escorregadia de um simbiótico locutor-interlocutor. (p.137)

Quando pensamos, portanto, nas suas tarefas, compreendemos essa posição conflituosa e peculiar. Concluímos ser fundamental observar que o seu compromisso vai além da aparente e simples função de facilitar a comunicação ao permitir o acesso à informação de uma língua-fonte para uma língua-alvo. Os TILS encontram-se constantemente submergidos em dúvidas e tensões, uma vez que

se interpõem entre línguas e culturas, como mediadores que assumem o lugar de tensão das diferentes vozes, a dos surdos, dos ouvintes e de sua própria voz. Um dos principais dilemas do intérprete de língua de sinais, ao intermediar uma relação no ato tradutório, gira em torno do conflito de representação fidedigna do conjunto dessas vozes e conseqüentemente da sua responsabilidade com a tradução. (MASUTTI, 2007, p. 144-145)

Conforme destacamos, é possível perceber uma cadeia de responsabilidades em torno desse profissional, que, ao ser atravessado pela cultura do outro, necessita construir um universo de conhecimentos que lhe permita, então, operar com as suas estratégias e executar com sucesso, ou próximo disso, os seus objetivos. Para Masutti (2007, p.99) esses saberes “[aqueles conhecimentos] emergem no ato da tradução quando o intérprete é atravessado pelos significantes da cultura surda, o que lhe possibilita a construção de uma galáxia textual operativa com efeitos relevantes.” Dessa relação, apreendemos que há um intercâmbio linguístico-cultural, pois sempre haverá tradutores da sua própria linguagem. Assim, o TILS é aquele que se apropria dos significados que precisam ser aceitos como verdadeiros. Desse modo, e de maneira geral, temos uma definição de acordo com a sua realidade como profissional.

Mesmo que de maneira genérica tentemos apresentá-lo como singular, sabemos que há diversos perfis e categorias possíveis com os quais se identifica cada TILS, uma vez que a sua atuação perpassa os mais diferentes estratos e âmbitos sociais. Isso porque, em situações de necessidade comunicativa, entre surdos e ouvintes (quando estes não são usuários de uma língua sinalizada) a presença de alguém capacitado a traduzir e/ou interpretar é imprescindível, independente da temática em questão, pois há línguas e culturas em cena.

Se perguntarmos a um profissional da tradução se todo o seu conhecimento adquirido (teórico e/ou prático) lhe dá sustento e segurança no dia-a-dia de trabalho, certamente receberemos como resposta que há muito ainda para ser aprendido. Esse é o ponto crucial que tencionamos ressaltar, sentimento que revela incompletude (não incompetência), uma vez que, nem sempre, a sua formação foi interesse das instituições de ensino. Percebemos urgência no domínio das mais diversas áreas do conhecimento por esses profissionais que têm uma trajetória baseada nas experiências iniciadas na emergência pela solução do “problema” da comunicação. Para isso, a sua formação necessita ser sólida e continuada e o seu reconhecimento assegurado.

Trabalhar com uma modalidade de língua altamente visual, negociar nas interações linguísticas com o outro, além de, naturalmente, dominar muito bem a sua língua materna (a língua portuguesa, no caso do Brasil) e universos de conhecimentos díspares, são compromissos que os cercam. Em função disso o tradutor e intérprete de língua de sinais passa a ser responsável por apreender uma língua que vem delineando trajetórias importantes, cujo reconhecimento legal e linguístico ainda precisa enfrentar o desconhecimento da sociedade na qual está inserida.

Desse modo, faz-se necessário compreender que imagens “carrega” o TILS ao refletir características e elementos da cultura surda ao compilar sua história no campo da tradução.

2. Que imagens “carrega” o tils?

A referência aos profissionais da área da tradução e interpretação de línguas orais normalmente nos remete às imagens de pessoas bem sucedidas, competentes, capacitadas e com muita experiência nas tarefas que desempenham. Porém, essas associações são feitas sem qualquer destaque a outras possibilidades de atuação, descartando seus perfis. Pereira (2008a, p. 138) salienta que, nesses casos,

a imagem mais lembrada é a dos intérpretes de conferência, em suas cabines, com seu equipamento de som, em encontros internacionais, intérpretes de línguas vocais, portanto.
No entanto, este tipo de interpretação, o mais prestigiado de todos, não é o único, existem diversas classificações quanto a sua atuação [...]

Segundo a mesma autora, diferentemente da ideia que restringe a imagem dos intérpretes de línguas orais a conferências, na realidade esses profissionais também atuam em outras situações. A autora justifica seu enunciado citando o exemplo do “intérprete acompanhante ou de trâmite” 3. Assim sendo, na concepção comum sobre o profissional, as outras facetas da sua atividade acabam sendo mascaradas de modo a limitar a sua representação a apenas uma (à interpretação em cabines).

Equívocos semelhantes acontecem em referência ao TILS, que tende a ser visto como alguém que se posiciona, com muito esforço, diante dos diferentes olhares ao ter de fazer “gestos e expressões” nada comuns, porém essenciais a uma pequena parcela de “espectadores”. Essas marcas constroem imagens muitas vezes distorcidas do profissional; chegam a rotulá-lo e ofuscam representações mais aproximadas das realidades vivenciadas por eles 4.

Talvez possamos justificar essa realidade pelo fato de a língua de sinais ser uma língua vista no outro, que precisa de movimentos do corpo, do espaço, e, sobretudo, da visão na sua produção e para sua percepção, o que leva à crença de que seja mera representação gestual universal, teatral, performática ou, ainda, simples reprodução manual de uma determinada língua falada em uma região (ex: português sinalizado). Essas concepções se direcionam para que o profissional TILS se questione quanto às características que lhes constitui, dificultando a valorização do seu trabalho por refletir problemas no desempenho da sua tarefa. Contudo, nos últimos dez anos essas visões têm se fragilizado, sobretudo pelo reconhecimento da língua de sinais como língua natural das comunidades surdas e pela crescente visibilidade dos surdos nos diversos meios sociais 5.

Ao voltarmos à reflexão acerca das especificidades do trabalho do tradutor e intérprete de língua de sinais, parece evidente perceber que o desempenho das suas funções normalmente desperta-lhe um sentimento agonístico, pelo menos de início, no que se refere ao exercício de olhar e ser olhado (fundamental para a sua formação e na sua prática) “[...] uma vez que o universo do surdo se faz no movimento do olhar, onde ele [o intérprete] se torna elemento constitutivo imprescindível. (MASUTTI, 2007, p.101). Esse movimento, natural aos surdos, tem de ser apropriado quando o tradutor e intérprete, no momento exato da interpretação (simultânea sinal-voz, especialmente), necessita assumir uma posição na qual precisa se expor fisicamente, no sentido de ser visto e ser constantemente observado e avaliado. Quando essa apropriação se efetiva, então amenizam-se as inseguranças e constituem-se as identidades. Ao ter de lidar com as peculiaridades da língua de sinais, o TILS adquire alguns de seus elementos fundamentais, além passar a viver as fronteiras das culturas de maneira exaustiva e carregar responsabilidades que são vistas em si e na construção da sua subjetividade.

Mesmo diante dessas explanações, ficam alguns questionamentos que pretendemos evidenciar a fim de suscitarmos as reflexões dos colegas e leitores: Frente às características específicas e distintas das línguas e das culturas com as quais o TILS necessita lidar, o que fazer e de que forma para que sejam apropriadas e entendidas de maneira que reflitam na eficácia do seu trabalho? O que é necessário o TILS aprimorar para que possa reconhecido como profissional competente, para que tenha garantido o seu espaço de atuação de modo a transmitir confiança ao outro? Quem deve, de fato, avaliar a “performance”, a competência tradutória e os conhecimentos de um TILS, o qual passa por momentos de dúvidas, especialmente, por estar inseguro quanto ao seu reconhecimento e à regulamentação do seu trabalho? Quem é, na verdade, o TILS ideal (se é que ele existe)? Quais dificuldades tem de enfrentar até que se aproxime da cultura surda, passando a transitar entre ela e a sua cultura de maneira natural?

Com base nesses questionamentos nos arriscamos a apresentar um pouco da realidade, das dificuldades e dos possíveis caminhos para as suas soluções. Valemo-nos do pronunciamento de alguns profissionais TILS de algumas regiões do país, os quais foram questionados acerca das especificidades da sua profissão e da trajetória delineada para a sua constituição como profissional frente ao panorama histórico que hoje se constitui com a abertura de caminhos de formação.

3. Um panorama histórico dos tils?

Aqueles que aspiram reconstruir a história dos intérpretes e tradutores, ao traçar os caminhos desde suas origens, têm um árduo trabalho frente à precariedade de fontes como documentos e demais registros sobre o tema. Mesmo assim, os profissionais envolvidos com a interpretação devem, no mínimo, estar cientes de que esta é uma atividade muito antiga que provavelmente surgiu a partir do momento em que usuários de línguas diferentes começaram a se relacionar de forma constante. Desse modo, era necessário que alguém capacitado a compreender os idiomas em questão fizesse a interpretação entre os falantes, independente da modalidade linguística em questão.

Theodor (1980) explica que a interpretação é mais antiga do que a tradução, já que esta depende da forma escrita para sua realização; em contrapartida, a inexistência de fontes escritas dificultou a tarefa de datar e documentar os trabalhos dos intérpretes. Esse registro começa a ser feito somente quando estes se dão conta de tal importância e iniciam as escrituras de diários, memórias e biografias.

Ao resgatar um pouco da história da interpretação, Rodrigues e Burgos (2001) destacam que a tarefa começou a ser reconhecida como profissão a partir da I Guerra Mundial. As autoras esclarecem, ainda, que em 1919, na Conferência da Paz, em Paris, inicia-se um trabalho semelhante ao que chamamos de “interpretações de conferências”, sendo o inglês e o francês as línguas principais da época. Os primeiros intérpretes identificados eram militares, jornalistas e diplomatas plurilíngues que faziam interpretação consecutiva 6. Já a simultânea 7 nasce oficialmente doze anos mais tarde na Assembléia da Liga das Nações, logo, na esfera da diplomacia.

A história da interpretação das línguas de sinais é bem diferente da delineada pelas línguas orais, uma vez que não tem sua gênese nos contextos militares ou diplomáticos, mas sim nas famílias, em que filhos, irmãos de surdos e seus parentes próximos iniciaram o exercício da interpretação e no transcorrer de suas vidas estiveram atuando nas mais diversas situações. Contudo, o momento exato da iniciação desses profissionais é uma incógnita. De acordo com Pereira (2008), e corroborando o que foi dito:

Historicamente não é possível rastrear o exato momento em que os intérpretes começaram a atuar, mas é plausível imaginar que desde que povos de diferentes línguas mantiveram contato houve, também, a necessidade de intérpretes. No caso das pessoas surdas, existem hipóteses de que a interpretação surgiu no meio familiar foi, aos poucos, se estendendo aos professores de crianças surdas e ao âmbito religioso. Com o passar do tempo, o fortalecimento dos movimentos sociais e políticos das comunidades surdas e o reconhecimento legal das línguas de sinais surgiu, finalmente, o ILS profissional. (p.138) 8

No Brasil, segundo Quadros (2002), no início dos anos 80 a presença dos Intérpretes de Língua de Sinais (ILS) foi identificada nos trabalhos religiosos. Muitos destes, mais tarde, começariam a “vestir a camisa” do ofício e atuar em outros espaços.

A Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), entidade que luta pelos direitos da comunidade surda brasileira, foi uma importante articuladora na luta desses intérpretes, pois promoveu dois Encontros Nacionais, nos anos de 1988 e 1992, propiciando intercâmbios entre os profissionais, discussões sobre as questões éticas que envolvem as suas ações e a aprovação do “Departamento Nacional de Intérpretes”. Com o avanço da FENEIS nas suas reivindicações, com as instalações de escritórios regionais em diversos estados do país, os intérpretes também foram se articulando e estendendo seus departamentos ligados a esses escritórios.

Apesar de a Lei 10.436 (conhecida como Lei de LIBRAS) ser um marco na história por reconhecer a língua brasileira de sinais como língua oriunda das comunidades surdas do Brasil e constituída de um sistema linguístico de fato, outras leis anteriores a ela já vinham mencionando a necessidade dos serviços de interpretação na eliminação de barreiras de comunicação a fim de garantir a acessibilidade aos surdos (Lei 10.098/00 – Capítulo VII). Entretanto, em 22 de dezembro de 2005, com a publicação do Decreto 5.626, a regulamentação da Lei de LIBRAS e do Art. 18 da Lei 10.098, um novo passo é dado em busca da valorização e profissionalização dos TILS, pois, além da obrigatoriedade da sua contratação para diferentes áreas do conhecimento e da sociedade, a sua formação passou a ser oficializada. Também outros documentos como a Norma Brasileira 15290 de 2005, apresentam o intérprete de língua de sinais como fundamental para o acesso dos surdos à informação, de modo a destacar o seu papel como profissão. De acordo com Pereira (2008), o acesso ao pensamento e as ideias no encontro entre pessoas que não compartilham a mesma língua só é possível através da intermediação feita por profissionais tradutores e intérpretes.

Mesmo que situemos os intérpretes de línguas orais e os de línguas de sinais na mesma linha cronológica, faz-se necessário observar as significativas diferenças que esses dois grupos apresentam na prática. Com base em Rodrigues e Burgos (2001) e nas experiências vividas pelos TILS, trazemos o seguinte quadro adaptado, onde evidenciamos características de acordo com as diferenças entre os trabalhos desenvolvido pelo profissional que lida com as línguas orais (TILO – Tradutor e Intérprete de Língua Oral) e o de língua de sinais (TILS).

  Intérprete de Língua Oral Intérprete de Língua de Sinais
Diferença política Atua com línguas orais (muitas vezes de prestígio). Atua com línguas de sinais (ainda muito estigmatizadas).
Clientes 9 Na maioria das vezes, seus clientes são de outros países. Na maioria das vezes, seus clientes são da mesma cidade, região ou do mesmo país.
Atuação Na maioria das vezes atua em situações oficiais e conferências. Tem um campo muito amplo, ligado a questões particulares, profissionais, sociais e educacionais de seus clientes.
Exposição Em conferências; na maior parte do tempo fica em cabines, sem exposição. Está sempre exposto quando traduz da Língua Oral para Língua de Sinais, e, em alguns casos, quando faz o inverso (sinal-voz).

Quadro 1 - Diferenças da profissão: TILO e TILS (Adaptado de Rodrigues e Burgos, 2001)

Esses contrastes evidenciam, portanto, que as atribuições se distinguem, apesar de esses profissionais terem de lidar com línguas no ato da tradução e da interpretação. O TILS tem de trabalhar com as especificidades de uma modalidade linguística no mínimo diferente, para um público específico que vive em um mesmo território onde a língua reconhecida pela maioria é a portuguesa, na sua forma oral e escrita. Além de as condições de atuação serem totalmente díspares, principalmente, em função da exposição total do intérprete de língua de sinais que o leva a trabalhar de maneira limitada, revezando sempre com outros profissionais, a fim de que os resultados das suas tarefas tenham o sucesso esperado.

É certo que uma das questões que “atormenta” esses profissionais, independente de qual seja a modalidade na qual desenvolvem suas habilidades, diz respeito à incrível e difícil tarefa de traduzir. Seja dentro ou fora de uma cabine, há sempre a impressão de que a correspondência com aquilo que está sendo dito ou lido nunca será alcançada. Segundo o intérprete de línguas orais, Magalhães Jr. (2007),

Traduzir é sempre um exercício imperfeito, em que tentamos transpor para outro universo semântico idéias e sentimentos que não são nossos. Num tal processo, o resultado será sempre alvo potencial de censura e dissenso. Na tradução, fazemos mais do que simplesmente buscar sinônimos. Somos forçados a interpretar, a intuir o sentido de passagens por vezes dúbias. Fazemos escolhas a todo momento. Elegemos. Tomamos decisões. Com isso, naturalmente, nos arriscamos ao erro. (p. 170)

Além de viver essas “aflições” o TILS frequentemente explicita um estado de co-existência ao ter de dividir o palco com palestrantes, câmeras e holofotes, de modo a concorrer com a exposição daquele que fala em uma relação de co-atuação diante de espectadores. Além da sua voz, empresta também o seu corpo, a face e o seu olhar àquele que profere o discurso. Esses elementos, literalmente, revelam todas as suas excitações. Para uns, o TILS é co-adjuvante, um “adereço”, alguém a mais; mas para os surdos é protagonista da comunicação, mesmo que aquele que está à frente do conhecimento seja um renomado cientista em mais uma de suas palestras.

Diante do que foi dito, passamos à tentativa de responder a algumas das questões apresentadas neste artigo, partindo também das reflexões de profissionais informantes que se dispuseram a colaborar com nossa breve pesquisa. A partir disso, poderemos traçar os seus perfis e entender um pouco sobre seus trajetos de formação e objetivos.

4. Experiências e caminhos de formação

De acordo com o que expusemos, fica claro que os intérpretes de línguas orais têm grande espaço de formação (se comparados aos TILS), que vão desde cursos específicos, direcionados as suas funções, à graduação e pós-graduação, de acordo com a língua escolhida ou a área de atuação. É muito comum vê-los, em grande parte, em formação continuada ou em prática constante da segunda, terceira ou demais línguas. A imersão cultural também acontece para eles. Dependendo de onde e para quem trabalham, costumam viajar o mundo e o seu reconhecimento é de grande prestígio e sofisticação. Apesar de a maioria deles permanecerem atrás de vidros, nos bastidores, não significa que têm funções fáceis ou vivem dificuldades insignificantes. Uma delas é a luta constante pela visibilidade que, normalmente, não lhes é dada quando traduzem obras escritas, filmes e/ou interpretam eventos.

Vale destacar que existem aqueles que “caem” na profissão. Isto porque sabem falar determinada língua estrangeira, passando assim, a atuar como tradutores e intérpretes. Da mesma forma acontece com o profissional de língua de sinais, porém com uma pequena diferença,

normalmente, o tradutor realiza seu trabalho a partir de uma língua estrangeira para a sua língua materna. Ocorre, no caso do ILS, o inverso: em geral, é um ouvinte que verte sua língua materna (português) para uma outra que lhe é estrangeira (língua de sinais), isto é, o estrangeiro (intérprete) verte para uma comunidade interpretativa uma língua que lhe é estrangeira. Usualmente, o ILS aprende a língua de sinais em comunidades formadas por surdos majoritariamente [...] (ROSA, 2005, p.55)

A maioria dos TILS inicia sua atuação e nem se dá conta disso, já está na prática, seja porque são filhos de surdos, têm familiares, vizinhos ou contato com eles nas suas igrejas ou no seu dia-a-dia. Essa realidade é frequentemente a mais encontrada e considerada como trajetória de formação de muitos que hoje se encontram em exercício da profissão.

É fato, portanto, que grande parte deles adquiriu ou aprendeu a língua de sinais em associações de surdos, igrejas, cursos básicos ou através da amizade e do convívio com os surdos. Seu aprimoramento, porém, tem sido feito através do empirismo, no contato e pelo uso da língua, o que os faz buscar com os surdos ou com colegas de profissão os ajustes necessários.

Gesser (2009, p. 47) destaca que no Brasil ainda não existe uma “tradição na profissão ou formação específica para esses profissionais, da mesma forma como há para intérpretes de prestígio como, por exemplo, intérpretes de língua inglesa e francesa”. 10 Segundo a autora, a proficiência dos TILS vem de situações emergenciais de comunicação em encontros entre surdos e ouvintes. Porém, não deixa de salientar a importância do trabalho do profissional nessas interações.

A necessidade de comprovar a formação para a prática e a construção da carreira tem levado instituições de ensino a realizarem cursos e exames que afirmem a sua proficiência na língua, de modo a declarar a sua aptidão como profissionais.

Nos Estados Unidos, segundo Wilcox e Wilcox (2005), os Intérpretes são um dos principais responsáveis pelo aumento da popularidade da ASL, uma vez que esses profissionais têm conquistado cada vez mais espaços. A responsabilidade que antes ficava literalmente nas mãos dos CODAs (Children of Deaf Adults
– Filhos de adultos surdos) por muitas gerações, agora é dividida com os TILS. Os autores destacam que, mesmo que essas pessoas possuam um conhecimento da língua, raramente apresentam uma qualificação específica e as informações suficientes acerca da ética profissional exigida para a sua atuação. (WILCOX & WILCOX, 2005, p.153) Desse modo, fica evidente a necessidade por uma formação direcionada a eles.

Antes que os Intérpretes fossem reconhecidos e registrados naquele país, a responsabilidade pela interpretação ficava, portanto, com os filhos de surdos, os quais, até 1964 atuavam sem ao menos serem remunerados, o que gerava grande dificuldade para contratar um profissional que fosse qualificado para lidar com uma situação de intermediação linguística.

Esse passo adiante foi importante para que os CODAs assumissem a consciência da sua real posição diante da comunidade surda. Conforme apresenta S. 11 em seu depoimento, diante da sua realidade aqui no Brasil:

Ser filho de surdo não habilita ninguém a ser intérprete de língua de sinais. As dificuldades que encontrei foram muitas: diferenciar uma conversa de uma palestra; variações lingüísticas; estrutura da língua etc.

Atualmente, programas de formação de intérpretes de língua de sinais, que venham suprir as necessidades dessas pessoas, são bastante comuns nos Estados Unidos. No Brasil, como exemplo, esse movimento iniciou com o Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES – e com a FENEIS, que se preocupavam, não somente com a avaliação dos intérpretes que já estivessem atuando, mas também com a capacitação desses profissionais através de cursos promovidos nos mais diferentes espaços e em parceria com outras instituições.

Com a necessidade de avaliar e certificar melhor os TILS, surgem alguns cursos em nível tecnológico, de graduação e pós-graduação. Podemos destacar alguns como o de “Tecnologia em Comunicação Assistiva: Tradução e Interpretação de Língua Brasileira

de Sinais” oferecido pela PUC/CAMPINAS. O crescente acesso às novas tecnologias pelos surdos reflete a necessidade de também o TILS se atualizar nessa área, de modo a atender as diversas demandas sociais. Outras duas oportunidades podem ser encontradas na “Especialização em Tradução e Interpretação de LIBRAS/Língua Portuguesa –, oferecida pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação de Surdos – NEPES –, através do Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina – CEFET-SC 12 – e na Universidade do Estado do Pará – UEPA 13, curso pensado para a qualificação desses profissionais, com intuito de atualizá-los através de uma formação reconhecida.

A Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP 14 –, através do “Curso de Tradução e Interpretação com habilitação em Libras Língua Portuguesa”, com um currículo consistente e com objetivos emergentes. Do mesmo modo, a UFSC , através do Bacharelado em Letras/LIBRAS, organizado na modalidade a distância, tem proporcionado aos que já atuam como TILS, ou desejam iniciar a carreira, o acesso ao conhecimento teórico e prático. Uma característica importante desse curso é a sua abrangência nacional, uma vez que é ofertado em 15 cidades espalhadas em todo território nacional, alcançando o número de aproximadamente 450 estudantes 15, os quais podem ampliar seus caminhos chegando ao Mestrado ou Doutorado em áreas como a da Linguística, Tradução e Literatura.

Vemos assim, uma crescente preocupação, e não podia ser de outro modo, em concretizar ideias e planos. Por isso, a realização desses cursos merece ser evidenciada, como prova de que realmente a sociedade, em seus diversos setores, a começar pelo acadêmico, tem percebido a necessidade do trabalho dos profissionais em questão. Tomamos outro exemplo, o curso do município de “MBA em LIBRAS no contexto empresarial e docência superior” 16, realizado pela Faculdade Serrana – FASEP/DF –, com o objetivo de, fundamentalmente, formar profissionais intérpretes capacitados a atuarem no contexto das organizações, das consultorias empresariais e como professores de língua de sinais brasileira para o ensino superior.

Diante novos cursos de formação, pensou-se em uma forma de também verificar se os Intérpretes são realmente proficientes na língua de sinais, a fim de contribuir também para o seu reconhecimento e sua aceitabilidade (e nesse caso, principalmente, no espaço educacional). Isto porque, conforme já evidenciamos, não basta ser usuário para ser um bom TILS, é necessário adquirir técnicas, estratégias da profissão, habilidades linguísticas em língua portuguesa e na LSB. Assim, e, também, para o cumprimento da Lei 10.436/2002 e do Decreto 5626/2005, o Ministério da Educação e Cultura – MEC
– desenvolveu o Exame PROLIBRAS 17, o qual pretende atestar o conhecimento dos profissionais que não tem formação, mas estão aptos para atuar como TILS ou professores de língua de sinais através de uma certificação de caráter temporário obtida através de provas teóricas e práticas que acontecem uma vez por ano.

Diante de todas essas possibilidades que parecem delinear um campo de formação em progresso, ainda notamos uma tradição muito forte que tem determinado a formação dos tradutores e intérpretes de língua de sinais.

4.1 Metodologia aplicada e dados da realidade

Objetivando conhecer um pouco da realidade dos TILS, aplicamos algumas perguntas aos profissionais de diversas partes do país, durante os meses de abril a junho de 2008, via e-mail e pessoalmente. Enviamos um breve questionário para alguns TILS conhecidos e outros entregamos os impressos para os que atuam no Curso Letras/LIBRAS e estiveram presentes em um encontro de formação que o Curso ofereceu na cidade de Florianópolis/SC. Vinte e seis profissionais preencheram e devolveram o formulário, dentre eles dezessete mulheres e nove homens.

No que diz respeito às perguntas, elaboramos cinco questões, abertas, de modo a resgatarmos aspectos sobre o aprendizado ou aquisição da língua de sinais, sobre os caminhos percorridos para a sua formação, também acerca das possíveis dificuldades enfrentadas, fundamentalmente com a modalidade da língua e as suas peculiaridades.

Os profissionais entrevistados foram distribuídos, numericamente, nas diferentes regiões brasileiras, como mostra o seguinte quadro:

Região Número de TILS participantes
Norte 1
Nordeste 2
Sul 17
Sudeste 5
Centro-Oeste 2

Quadro 2 - Profissionais que responderam aos questionamentos por Região.

Entre os informantes, não identificamos nenhum que ainda não seja graduado, ou não esteja cursando algum curso superior, isto porque, conforme já explicitamos, a maioria dos TILS atua em sala de aula e por isso buscam uma formação que tem se concentrado, basicamente, na área da educação.

É importante salientar que há uma variação significativa de idade entre os informantes registrados no Quadro 2. Há profissionais muito jovens, com menos de vinte anos de idade e outros com uma experiência maior de atuação e com idade mais avançada. Também identificamos alguns com conhecimento de vida maior, porém, com experiência profissional em fase inicial na área.

Uma das questões que apresentamos a eles enfatizou o aspecto da formação, tendo como objetivo inicial averiguar quais instrumentos são ou foram utilizados para a capacitação nas diferentes regiões do território nacional. Pudemos verificar que cursos como os de pedagogia, especialização em educação especial, educação de surdos e cursos de línguas de sinais apareceram como base formadora do conhecimento de muitos que hoje atuam como TILS. A seguinte pergunta formulada: “Possui formação/capacitação como ILS? De que tipo?”, levou-os a descrever um panorama da falta de formação específica. Algumas confusões entre o “ser” intérprete e o “ser” professor bilíngue também permearam a questão. Como respostas alguns destacaram o seguinte:

Pós-graduação em LIBRAS e ensino do surdo pela UNIBEM – SC. (M.)
Pós-graduação em LIBRAS [...] também possuo curso de 400h. [...] (R.M.)
Fazendo formação (Licenciatura) em LIBRAS (s.n.)

Se pensarmos na profissão como um quadro pintado-a-mão, que oscila entre a perfeição e os vacilos, como se lhes faltasse a “firmeza” na sua formação, entenderemos que o empirismo não está somente emoldurando essa atuação, mas também tecendo todo esse trabalho, uma vez que o pano de fundo, a tela da obra, já é feita de forma “artesanal”. Ou seja, o intérprete, em fase de aquisição da língua de sinais, já tem esse processo internalizado com base, essencialmente, na sua experiência. Essa conclusão comprova o que destacamos nas palavras iniciais deste trabalho.

Seguindo a mesma linha de reflexão, sobre como aprendeu a língua de sinais, um dos profissionais, com vinte e oito anos de experiência, respondeu da seguinte maneira:

Na associação de surdos (SSRS) e [em] eventos da comunidade surda do RS; a partir de 1980, com os objetivos de me comunicar cada vez melhor com eles. Nunca fiz curso formal. Naquele tempo não se falava em LIBRAS nem em aprender os “gestos dos surdos-mudos” (R.)

As palavras de R. mostram o quão recente é o aprendizado “formal” da língua de sinais no Brasil. Um ponto a se considerar é que o reconhecimento da LSB é o grande fato de interferência histórica na maneira de acesso à língua de sinais e aos conhecimentos que a envolvem. Conforme já salientamos, hoje, em pleno século XXI, há outros caminhos em processo de construção que levam à formação direcionada na área. As práticas de acesso à língua estão em constantes mudanças, porém, ainda, o contato com os surdos é uma das melhores maneiras de desenvolver e aprimorar os conhecimentos linguísticos e o desempenho na língua de sinais. O gráfico abaixo, construído com base nos questionários, comprova o que dissemos:

Fig. 1 – Gráfico do aprendizado e/ou da aquisição da língua de sinais.

É possível verificar que a maior parcela dos entrevistados atribui o seu conhecimento linguístico ao convívio com os surdos, o que podemos chamar de “imersão cultural”, ainda que essa aproximação envolva outros aspectos culturais diferentes da língua de formas diversas para cada TILS.

Porém, isso não significa dizer que o conhecimento de tradução e de interpretação tenha sido adquirido dessa maneira. Fica evidente o pouco conhecimento formal ou sua ausência nas falas dos nossos interlocutores.

Ainda, em relação à mesma pergunta, e para reafirmar o que temos registrado, uma TILS filha de surdos destacou:

A formação que possuo se baseia em encontros, simpósios, seminários e convivência com pessoas surdas. (S.)

Suas colocações nos remetem aos primeiros intérpretes de língua de sinais que começaram a atuar em outros espaços que não o familiar, onde, conforme salienta S., o uso da sigla “LIBRAS” ainda nem era de domínio público.

Tradutores e intérpretes de ASL – American Sign Language – também percorreram uma trajetória semelhante à dos brasileiros antes de serem reconhecidos como profissionais e até estabelecerem um código de ética da profissão através do “Registro dos Intérpretes para Surdos” – RID-EUA. De acordo com Wilcox e Wilcox (2005, p.154-155),

em geral, as pessoas que desejassem se tornar intérpretes adquiriam seu conhecimento da língua tornando-se amigos de pessoas surdas ou freqüentando uns poucos cursos de ‘língua de sinais’. Se elas tivessem sorte, poderiam adquirir também algum treinamento em interpretação participando de workshops oferecidos pelo RID ou pelas faculdades locais.

Outra informante, R., também filha de surdos (portanto CODA) que atua profissionalmente há doze anos, quando questionada a respeito da sua formação enfatizou ter feito um curso de capacitação pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), por intermédio da FENEIS, em 2004. Mesmo ela convivendo com a língua de sinais desde os primeiros meses de vida e transitando entre esta e a língua portuguesa, e, provavelmente, atuando como intérprete em alguns momentos para auxiliar na comunicação de seus pais, somente no ano de 2004 teve acesso a uma oportunidade de capacitação. Essa atitude, provavelmente, deveu-se à necessidade de se registrar e se constituir como profissional em meio às exigências do mercado de trabalho e ao crescente, porém, ainda tímido, destaque que a língua vinha conquistando na sociedade, seja na comunidade surda ou fora dela. Também a demanda dos mais diferentes espaços sociais tem excedido à disponibilidade de pessoas habilitadas a traduzir e interpretar, e, desse modo, pessoas como R. têm feito esse trabalho e, percebendo a identificação com os papéis desenvolvidos como profissional, também têm buscado conhecimento e qualificação, uma vez que conhecem a natureza, as experiências e os costumes das pessoas que utilizam a língua de sinais.

5. Considerações finais

Conforme apresentamos, a formação dos TILS e sua história têm sido baseadas, em grande parte, no empirismo e amparadas na auto-reflexão ou nas trocas entre eles. Foi, por muito tempo, se constituindo de feedbacks dos surdos presentes nos momentos da realização do trabalho da interpretação. A intérprete L. relata sobre as suas ações e estratégias em favor do progresso da sua atividade, e diz:

Sempre antes e depois das traduções procuro refletir sobre o que pretendo fazer ou já fiz e o que realmente deu certo ou não e como posso tentar aprimorar minhas técnicas. Quando possível, procuro expor minhas dúvidas e inquietações aos surdos ou aos colegas intérpretes para que contribuam com minhas reflexões e consequente evolução no trabalho.

Na medida em que os TILS buscam as capacitações e os cursos disponíveis, essas inquietações tendem a se minimizar e a serem substituídas por outras novas interrogações pertinentes a sua atuação, às concepções que os cercam e, fundamentalmente, a sua formação.

Com isso, outros pontos tomam os espaços de discussão. Aproveitamos para citar a crítica informal de um profissional da área da Filosofia (que sequer atua como TILS ou tem alguma familiaridade com a realidade desse profissional) a respeito da disciplina “Ética”, oferecida em um determinado curso. Segundo ele, aqueles que vivem as experiências da interpretação sabem que as questões éticas são muito específicas a essa área de atuação. Isso significa dizer que a ética da profissão do TILS necessita ser pensada, antes de resultar em regras de bom senso para a sua atuação.

Queremos mostrar com isso que estamos num período ímpar em toda a trajetória dos TILS no Brasil, saindo dos bastidores do amadorismo em direção à formação efetiva e rumo à verdadeira regulamentação da profissão. Instrumentos essenciais para esse processo, em nossa visão, devem ser as Associações de Tradutores Intérpretes de Língua de Sinais que encontram-se espalhadas por todo território nacional e que hoje totalizam um número de 15 instituições, as quais continuam se mobilizando junto à Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores, Intérpretes e Guiaintérpretes de língua de Sinais – FEBRAPILS 18.

Esses movimentos têm como objetivo defender e consolidar os direitos e os deveres dos TILS, valorizar a profissão, participar das discussões e trazer para si as formações e oportunidades de capacitação que antes estavam concentradas apenas nas mãos das entidades ligadas aos movimentos surdos. Somente com iniciativas como essa a inquietação expressa na opinião do seguinte profissio-

nal deverá ser atenuada. C. diz: “às vezes sinto-me perdida sem ter muito em que me basear, já que nossa profissão não é regulamentada, não existe um conselho etc. angústia é um sentimento bastante presente em minha vida.” (C.)

Apesar dessas dificuldades, vale destacar o que R, profissional com grande experiência, nos diz. Segundo ele

o ILS é uma “estrela invisível”... isto é, deve ser discreto e firme diante dos olhares dos outros (ouvintes), mas uma estrela clara e segura diante dos surdos (ou daqueles que necessitam da sua imagem). É uma complicada dicotomia, porém é assim mesmo que funciona. Ele precisa estar seguro da sua performance e passar a língua... não pode se perturbar com os olhares dos ouvintes. Não é nada fácil. (R.)

A dupla ética e profissionalismo, portanto, deve ser o alicerce e o caminho do desempenho do Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais, minimizando assim as suas dificuldades e inseguranças. A atenção ao desenvolvimento desses profissionais pelas instituições que discutam a sua prática através da ampliação dos cursos já existente e de novas oportunidades de aperfeiçoamento e de formação continuada são, atualmente, algumas das soluções mais esperadas para que o TILS tenha seu reconhecimento garantido.

Notas

1 Segundo Quadros (2002), o termo intérprete é utilizado para aquele que interpreta de uma língua fonte para uma língua alvo o que foi dito e tradutor, para aquele que traduz um texto escrito de uma língua para outra. Neste artigo, utilizamos “TILS”; vimos considerando o profissional que atua nessas funções como tradutor e intérprete de LIBRAS, uma vez que lida com as diferentes modalidades em diferentes situações (sinal-voz, voz-sinal, escrita e oral). Desse modo, têm duas funções de destaque.
2 A Língua de Sinais Brasileira é conhecida também como LIBRAS. Em artigos acadêmicos, científicos, de maneira geral, é referida como LSB, sigla que obedece a um padrão mundial a qual iremos adotar em nosso texto.
3 Segundo a autora, essa situação acontece quando os intérpretes “acompanham uma pessoa ou um grupo de pessoas ou grupos pequenos em interações, geralmente dialógicas tais como, reuniões, entrevistas, consultas, etc”(PEREIRA, 2008, p.139)
4 Há algumas concepções que envolvem o TILS bastante comuns, principalmente se no meio em que atua há leigos, pessoas que desconhecem a língua de sinais e o trabalho desenvolvido por ele. Percebemos marcas das visões caritativa ou assistencial e criativa, que se constituíram fortemente dentro da história da relação entre surdos com aqueles que hoje trabalham como tradutores e intérpretes para o acesso á informação.
5 O TILS começa a ganhar respeito e visibilidade, porém, com ressalvas, uma vez que isso tem acontecido em espaços restritos como o acadêmico e das demais instituições educacionais, em cumprimento à legislação vigente (Lei de LIBRAS, nº 10.436, de 24 de abril de 2002; e Decreto 5.626 de 22 de dezembro de 2005).
6 “Na consecutiva, a pessoa que tem a palavra faz pausas periódicas em sua fala, a fim de permitir que o intérprete faça o traslado da língua original (língua-fonte ou língua de partida) à língua dos ouvintes (língua-meta ou língua de chegada)” (MAGALHÃES Jr., 2007, p. 43). Esse é o caso do profissional que trabalha exclusivamente com línguas orais, porém, se pensarmos no TILS, também é assim que acontece. Muda, contudo, a modalidade da língua de chegada (isso quando a fonte é uma língua oral). Em situações em que o TILS tem de fazer a “voz” do surdo, então a língua fonte será a língua de sinais.
7 “Nessa modalidade, o intérprete vai repetindo na língua de chegada cada palavra ou ideia apresentada [...] na língua de partida.” (Id. Ibid., p.44). Nessa forma de interpretação, portanto, não há pausas, o discurso flui e o profissional tem de fazer a sua função
8 A autora apresenta a sigla “ILS” para identificar o Intérprete de Língua de Sinais, também reconhecido como Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais – TILS
– devido também ao trabalho realizado com a tradução de textos escritos que são para a língua de sinais e vice-versa.
9 A relação entre surdos e TILS é um pouco diferente daquela firmada, normalmente, entre os intérpretes de línguas orais. Uma vez que, a partir de uma visão cultural e social, muitos TILS encontram-se entre as culturas (a surda e a ouvinte) e constituem-se híbridos dessas duas; desse modo o contato entre eles e a comunidade surda é algo que ultrapassa as barreiras dos negócios. Sabemos que há os que preferem manter apenas uma relação profissional de trabalho com os surdos, porém, preferimos deixar essa discussão para uma futura outra oportunidade, já que não é nosso foco neste trabalho.
10 Gesser (2009) ressalta, porém, que iniciativas têm sido estudadas e colocadas em prática, como vem acontecendo na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC -, que em 2008 iniciou o curso de graduação de LETRAS/LIBRAS Bacharelado, a fim de formar tradutores e intérpretes de LIBRAS/Português. Em parceria com mais 14 instituições, o curso tem acontecido na modalidade a distância. Em 2009, já foi possível iniciar também uma turma presencial com os mesmos objetivos, na UFSC.
11 Mantemos a identidade dos informantes em sigilo apresentando apenas as iniciais dos nomes como forma de identificar as suas falas e diferenciá-las.
12 Atual IF-SC (www.cefetsc.edu.br).
18 A FEBRAPILS foi fundada em 22 de agosto de 2008, em Brasília/DF. Maiores detalhes em http://www.febrapils.org/index.htm.

Bibliografia

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MAGALHÃES Jr., E. M. Sua Majestade o Intérprete: O fascinante mundo da interpretação simultânea. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

MASUTTI, M. L. Intérpretes de língua de sinais: processos de subjetivação. Tese de Doutorado: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006.

PEREIRA, M.C.P. Interpretação interlíngue: As especificidades da interpretação de língua de sinais. Cadernos de Tradução XXI, Vol. 1, p. 135-156. Florianópolis: UFSC, PGET, 2008a.

________. Testes de proficiência lingüística em língua de sinais: As posibilidades para os Intérpretes de LIBRAS. Dissertação de Mestrado: Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, 2008b.

QUADROS, R. M. de. O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa. Brasília: MEC/SEE, 2002.

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SANTOS, S. A. dos. Intérpretes de Língua Brasileira de Sinais: Um estudo sobre as Identidades. Dissertação de Mestrado: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006.

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WILCOX, S. & WILCOX, P. P. Aprender a ver. Rio de Janeiro: Editora Arara Azul, 2005.

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