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Silvana Aguiar dos Santos
Silvana Aguiar dos Santos
Professora / Investigadora
Intérpretes de língua de sinais: Tensões e negociações no ensino superior
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Publicado em 2009
XII Congresso da Association pour la Recherche Interculturelle - ARIC, Florianópolis. Anais do XII Congresso da ARIC. p. 01-13
Silvana Aguiar dos Santos
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Resumo

Este trabalho insere-se no campo da Educação e dos processos inclusivos. A demanda atual de surdos que ingressam na universidade é crescente. Os espaços, sujeitos, posições e estratégias precisam ser (re) significados para estabelecer um diálogo lingüístico e cultural que rompa com as estruturas tradicionais de saber e poder do ensino superior, considerando-se a língua de sinais e produções culturais como artefatos centrais nesta discussão. O ILS é o profissional que medeia as relações culturais e lingüísticas entre grupos de surdos e não-surdos. Transitar nos espaços fronteiriços desses grupos traz ao intérprete densa responsabilidade em seu trabalho. Essa pesquisa foi desenvolvida no Brasil com um grupo de ILS que atuam no ensino superior, por meio de depoimentos que retratam as tensões e negociações nesses espaços. Nos estudos Pós-Colonialistas encontramos conceitos fundamentais para esta discussão. O tema torna-se relevante à medida que contribui para as questões sobre interpretação/tradução e, também, para a inclusão no ensino superior de pessoas surdas, que possuem culturas e línguas distintas de outros grupos.

Este texto objetiva, por um lado, problematizar as tensões e negociações enfrentadas por intérpretes de língua de sinais (ILS) no ensino superior de instituições privadas e federais brasileiras. Por outro, busca dialogar com algumas estratégias que esses ILS têm criado para “amenizar, resolver e/ou colocar em xeque” a realidade que vivenciam. Com esse intuito foram coletados depoimentos escritos, em um grupo de dez intérpretes, oriundos de diferentes regiões do país, que trabalham diretamente no ensino superior, e a intenção deste trabalho é fazer circular distintos discursos a respeito do mesmo tema, evidenciando posições de sujeitos, espaços e lugares. Buscou-se tomar os depoimentos não como verdades pré-estabelecidas, mas movimentá-los a partir de um contexto sócio-histórico em que estão inseridos. Os resultados da pesquisa apontaram duas direções: 1) questões relacionadas à formação desses profissionais tradutores/intérpretes que trabalham no ensino superior; 2) tensões e negociações enfrentadas por ILS junto à comunidade acadêmica (professores, alunos surdos e nãosurdos), como: Que contornos pedagógicos são tomados e/ou (des)construídos quando há a presença de alunos surdos em sala? Por conseqüência, como esses contornos afetam a atuação do intérprete?

A garantia de ILS no meio acadêmico é assegurada pelas leis de LIBRAS (nº 10.436/02) e de acessibilidade (nº 10.098/00), regulamentadas respectivamente pelos decretos nº 5626/05 (específico da língua de sinais) e nº 5296/04, o qual contempla de forma mais geral as questões voltadas às pessoas surdas. Tais documentos legais é que respaldam a presença de intérpretes no meio acadêmico, como forma de assegurar a inclusão das pessoas surdas.

Na prática cotidiana da atuação de ILS nas instituições de ensino, porém, questões de tensão e negociação marcam a presença desses profissionais. Algumas tensões enfrentadas pelos intérpretes em sua atuação originam-se do desconhecimento da instituição (professores, alunos surdos e não-surdos) a respeito do papel desses intérpretes. Criam-se algumas expectativas sobre as ações esperadas de um ILS, as quais não condizem com a atuação de um profissional da tradução.

Alguns teóricos como Bhabha (2005), Coracini (2003, 2005) e Masutti (2007) problematizam sobre as questões culturais, e salientam como a subjetividade do tradutor está implicada no ato tradutório, isto é, este sujeito que realiza a intermediação entre duas línguas não é alguém isolado do contexto social, econômico, político e histórico, ele é cindido e constituído por muitos discursos, vozes que atuam paralelamente em seu trabalho.

Quando um tradutor realiza escolhas lexicais para enunciar na Língua B o que foi dito na Língua A, ele (tradutor/intérprete) está envolvido num emaranhado de sentidos, experiências, identidades que tornam o ato tradutório mais um dos elementos com que ele tem de lidar. Mesmo a tradução/interpretação desempenhando um papel fundamental na sociedade, é interessante observarmos que poucos são os autores que dela tratam como cerne contribuição na formação de culturas, línguas e povos.

Ao refletirmos sobre a constituição de ILS, não é coerente afirmarmos que somente o profissional tradutor é responsável pelo ato tradutório, ele não é o único envolvido em seu trabalho. Contestar, duvidar, problematizar sobre todos os envolvidos num ato de tradução é uma tarefa relevante para entendermos este processo complexo entre língua e cultura, pois não se podem dissociar tais elementos. Uma língua não se constitui de forma isolada, tampouco uma cultura se constitui sem uma língua permeando seu contexto. Bassnett (2005, p. 36) afirma que

A língua, portanto, é o coração do corpo da cultura, e é a interação entre os dois que resulta na continuação da energia vida (life-energy). Do mesmo modo que um cirurgião, ao operar o coração, não pode negligenciar o corpo que o circunda, o tradutor correrá risco se tratar o texto isoladamente da cultura.

Em qualquer comunidade a cultura desempenha essa circulação de sentidos, mas que contornos assumem essas mesmas comunidades quando entra em cena um intérprete para intermediar tais relações, uma vez que as línguas são distintas? O enfoque lingüístico que permeou a tradução durante o século IX deixou algumas marcas neste campo, mormente voltadas a problemas teóricos de tradução, centrando suas preocupações mais nas dificuldades características da tradução (uma visão mais clássica desta disciplina) que aquelas do processo tradutório.

Com pouco enfoque e/ou raramente abrindo espaço para diálogos menos tradicionais, por volta da década de 80 os estudos da tradução começaram a se institucionalizar, tendo como célebre o texto inaugural de James Holmes 1. Este fato inaugural da questão da tradução e dos estudos da tradução como disciplina traz contribuições significativas para todos aqueles que se interessam pela área. Para os ILS, os Estudos da Tradução têm auxiliado diretamente na formação destes profissionais, instigando-os a se perceberem enquanto profissionais da área de tradução. Este é um deslocamento importante a ser analisado, pois até então os ILS oriundos de espaços não formais de ensino eram colocados numa outra posição que não a atuação profissional enquanto tradutor/intérprete.

1. ILS e a constituição no espaço intervalar das línguas

Intérpretes de língua de sinais se organizaram em sua recente história enquanto grupo de profissionais constituídos a partir de comunidades surdas e não-surdas. O espaço intervalar entre a língua de sinais e o português que os ILS experimentam em seu ato tradutório faz com que estes ocupem uma posição de proximidade frente a essas comunidades, freqüentemente. Esta passagem pelos espaços híbridos não é tranqüila, e exige do profissional tradutor um olhar acurado sobre os hibridismos culturais e lingüísticos que transcorrem desta relação, marcada por disputas em torno da língua.

ILS são profissionais que realizam a tradução de uma língua de sinais para uma língua oral e vice-versa. No Brasil, as línguas de trabalho para esses profissionais são a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e o Português, e vale ressaltar que até o ano de 2008 não havia um processo de institucionalização da formação de ILS. Sendo assim, os profissionais ILS constituíam-se enquanto “intérpretes das comunidades”, e era neste espaço empírico que os mesmos prestavam seus serviços de interpretação. A respeito dos espaços híbridos, Klein e Lunardi (2006, p. 9) afirmam que

[...] os hibridismos, as situações fronteiriças encontram-se instauradas no nosso cotidiano. Convivemos em um espaço no qual as fronteiras são constantemente deslocadas, fragilizadas e em que nossas identidades vão se configurando a partir de múltiplos repertórios. Esse cenário nos coloca diante de um território movediço, instável, onde a história se move em muitas direções, toda conclusão está atravessada pela incerteza.

Ao se conviver em espaços fronteiriços, nem sempre as relações se estabelecem de forma harmoniosa. Por que relações de “suspeita” parecem ser tão evidentes entre ILS e comunidades surdas? As comunidades surdas e não-surdas convivem com freqüentes situações de contestações culturais e lingüísticas e, em sua maioria, ILS pertencem a comunidades ouvintes. Assim, o olhar desconfiado da comunidade surda em relação aos “ouvintes que se tornaram ILS” perpassa a suposta idéia de que os ILS (ouvintes) pudessem repetir as práticas clínicas e colonialistas de épocas passadas. Foram todos os ouvintes que praticaram ações colonialistas? Isto justificaria uma suspeita para com todos aqueles que ouvem colonizados em par de igualdades?

Este mesmo movimento em torno da língua de sinais e das culturas surdas por vezes acaba se tornando uma bandeira que desconsidera e apaga da cena ouvintes afeitos à comunidade surda, e se constroem formas de narrar semelhantes àquilo que Said (1995, p. 213) afirmou quando tratou do imperialismo europeu:

Venho tentando, de um lado, enfocar aqueles aspectos de uma cultura européia em andamento, utilizados pelo imperialismo conforme se sucediam seus êxitos e, de outro lado, descrever como o europeu imperialista não queria ou não conseguia enxergar que era imperialista e, ironicamente, como o não-europeu, nas mesmas circunstâncias, enxergava o europeu apenas como imperialista.

O autor salientava nessa situação a forma com que vinha tentando entender como o grupo europeu narrava o não-europeu e vice-versa. Talvez, não haja necessidade de conjugar a surdez e a comunidade de que esta faz parte como uma comunidade imperialista, mas se torna interessante descortinar narrativas que circulam a partir do ponto de vista de intérpretes, por exemplo. As narrativas que os ILS enunciam não são as mesmas que circulam nas comunidades ouvintes e tampouco nas comunidades surdas.

Outra justificativa possível para tais atitudes são alguns discursos marcados pelo viés clínico, que buscava narrar os surdos a partir da sua deficiência, sem considerar a língua de sinais como uma diferença cultural e lingüística. Os estudos surdos firmaram-se no Brasil por volta da década de 90 como um programa que problematiza temas como diferença cultural, as identidades, que contesta as questões políticas e, sobretudo, a enunciação de um sujeito surdo que possa narrar sua história e suas experiências enquanto ser surdo.

Skliar (1998), Perlin (1998) e demais autores salientam movimentos históricos e políticos em torno desses discursos e de algumas conseqüências que estes causaram para a comunidade surda. São raros ou quase inexistentes, porém, os textos que tratam a respeito de ILS a partir do viés cultural e lingüístico produzido por autores filiados às comunidades surdas.

Isto causa certo estranhamento para intérpretes que pertencem à comunidade surda e que, entretanto, não são apresentados nas produções acadêmicas de pesquisadores que tratam do tema. As narrativas que circulam nos grupos de ILS raras vezes são percebidas pela sociedade, pois o foco das discussões e análises continua centrado nas questões surdas x questões ouvintes. Não basta apenas dicotomizar entre minoria surda e maioria ouvinte, como se estes conceitos dessem conta de redes que se estabelecem entre dois grupos, marcados pela diferença lingüística e cultural. É preciso analisar quem são “aqueles que ficam de fora” dessas redes e que continuam, em certa medida, sem serem notados.

Gesser (2006, p. 53) traz apontamentos interessantes sobre esta realidade e afirma que, “da mesma forma, também ficam invisibilizados no discurso dicotomizante entre a minoria surda e a minoria ouvinte os outros vários indivíduos, surdos e ouvintes, que se movimentam em algum ponto do continuum.” 2

A afirmação da autora a respeito do conceito de maioria ouvinte permite-nos afirmar que os grupos de ILS estão inseridos neste grupo, e que não necessariamente têm a intencionalidade de colonizar, oprimir e perpetuar o discurso patológico sobre a surdez e/ou os surdos. É possível desconstruir tais visões apresentando, também, os intérpretes enquanto grupo que deseja uma espécie de parceria/negociação junto (i) à comunidade surda, (ii) às instituições em que prestam seus trabalhos e – por que não assegurar – (iii) à “maioria ouvinte”, que geralmente desconhece as singularidades das comunidades surdas. Este movimento histórico, político e cultural entre as comunidades surdas e não-surdas cria, em alguns momentos, tensões complexas a serem negociadas. Quanto a essas tensões Bhabha (2005, p. 21) define que

os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso.

As perspectivas de que um ILS seja “o ouvinte opressor e colonizador” ou, por outro lado, o “bom samaritano” (a partir de uma perspectiva assistencialista) precisam ser desconstruídas na educação de surdos. Esforçar-se para olhar o ILS como profissional da tradução é tarefa de todos aqueles que estão envolvidos no processo, sejam estes pessoas surdas ou não-surdas, e do próprio ILS em assumir sua identidade profissional.

Até o presente momento foram problematizadas algumas questões que afetam diretamente o ILS em seu trânsito e sua constituição no intervalo entre duas línguas. Que argumentos estes profissionais respondem em relação a esse trânsito? Quais suas tensões e negociações com as comunidades envolvidas? Na análise das entrevistas destacaram-se duas grandes questões: a formação dos ILS que atuam no ensino superior e as tensões que eles enfrentam em sua atuação enquanto profissionais. Que negociações são colocadas em jogo nesta relação? É dessas questões que trataremos a seguir.

2. Dialogando com as análises do texto.

No ano de 2008 a formação de tradutores/intérpretes de línguas de sinais passa a ter um caráter institucional, a partir do oferecimento, na modalidade a distância, do curso de Bacharelado em Letras-LIBRAS pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Esta medida busca cumprir o decreto nº 5626/05, que regulamenta a Lei de Libras (nº 10.436/02), cujos artigos 17 a 21 do capítulo V tratam especificamente da formação de tradutores/intérpretes.

No entanto, mesmo garantidas em leis estas questões a respeito da formação de ILS, parece-nos (com base nos dados coletados) que este é um processo ainda em construção na prática dos ILS. No depoimento de ILS que apresentamos a seguir (ILS A) é interessante observar como os termos desconhecimento e preconceito são tratados no discurso:

ILS A
[...] Desconhecimentos do nosso papel e função, desconfianças e até preconceitos em relação ao nosso trabalho. Somos vistos, muitas vezes, como seres exóticos e/ou “bons samaritanos” por realizar o acompanhamento ao aluno surdo. Com o aluno surdo, a tensão está no fato da necessidade de construção de um relacionamento sadio durante o tempo do curso.

As formas pelas quais o ILS compreende seu papel dentro do seu grupo profissional parecem não ser as mesmas pelas quais a sociedade, a comunidade ouvinte e até mesmo a comunidade surda o compreendem, pois cotidianamente acontecem ações que caminham em outra direção.

Entre o dito e o não dito neste depoimento, que relações poderemos tecer a respeito deste desconhecimento, desta desconfiança e deste preconceito narrado pelo ILS? Qualquer grupo social, político e/ou lingüístico é implicado por relações de poder que tendem a tornar conflituosa a convivência. Este complexo jogo de poder entre as distintas comunidades cria imaginários totalizantes do que seja uma pessoa surda, um intérprete, e assim sucessivamente, e percebemos que duas formações discursivas tornam-se evidentes.

A primeira delas é a de que as instituições superiores de ensino tenham criado certo imaginário do que seria a atuação ideal de ILS (baseado num enfoque assistencialista) e, a partir dessa crença, justificar-se-iam as práticas de se visualizá-los como “bons samaritanos” de que o entrevistado ILS A narra. A segunda formação discursiva estaria associada ao fato do desconhecimento, da desconfiança, do preconceito institucional e lingüístico em relação ao trabalho do ILS, que implicam em vê-lo como um ser exótico, pois, em função da presença de maioria surda, diferentes seriam todos aqueles que desviam a norma estabelecida. A esse respeito Silva (2008, p. 22) 3 afirma que “a diferença cultural expõe o desvio, o incomum, o desejável como contraponto à norma estabelecida, forçando a abertura de espaços de negociação entre colonizador e colonizado”.

A seguir, o depoimento de um ILS B salienta pontos que vêm ao encontro da discussão realizada em torno do depoimento A, isto é, sobre como o preconceito lingüístico e a falta de formação explicariam as dificuldades enfrentadas pelos ILS no ensino superior, além de definir, a partir deste desprestígio profissional e desse preconceito, uma espécie de posição social ocupada por ILS:

ILS B
[...] fazendo uma analogia à minha trajetória, penso que ainda é o preconceito lingüístico, por atendermos uma minoria lingüística, onde são considerados como deficientes, pela falta de formação dos profissionais envolvidos dentro da instituição, [que] acaba dificultando nosso trabalho de tradução/interpretação.

Raramente acontece uma formação voltada para os profissionais (professores, coordenadores e assim por diante) que receberão alunos surdos e ILS. Esta situação de apresentação da diferença surda, das especificidades pedagógicas e didáticas que deverão circular em sala a partir da presença dos surdos, é orientada pelo próprio ILS. E quanto ao papel do ILS: quem trataria de apresentá-lo à instituição? A presença desse profissional no espaço acadêmico é “usada” para intermediar funções pedagógicas em alguns casos, e, ao mesmo tempo, ela é “apagada” e “negada” pela maioria das pessoas que compõem o ensino superior e que não o vêem enquanto profissional responsável por desempenhar uma função altamente complexa, que é a tarefa de interpretar.

Este discurso não se encontra isolado, apenas nas dificuldades que o ILS enfrenta no ensino superior, ele vem associado a uma rede de outros discursos que estão enredados em relações de poder nas quais se inserem professores, instituição e alunos surdos. De que forma a instituição e os professores fazem circular discursos a respeito dos surdos e dos ILS? Todos fazem parte do discurso que é constituído pela linguagem, uma linguagem que não enuncia um discurso dado a priori, mas derivado de outros discursos, como o discurso pedagógico. O ILS não está fora desses acontecimentos, mas ocupa uma posição que é derivada a partir da circulação desses discursos. Sobre esses discursos Veiga-Neto (2004, p. 110) afirma que “é justamente porque são contingentes que os discursos nunca podem se colocar por fora do acontecimento e, por isso, dos poderes que o acontecimento coloca em circulação”.

Esta questão a respeito da preparação institucional para recepcionar e legitimar a diferença surda é apresentada por mais dois entrevistados (ILS C e D), um que salienta ter de orientar professores em sala de aula, pois não ocorrem reuniões que façam este trabalho, outro que salienta a falta de conhecimento sobre o papel do intérprete:

ILS C
[...] Estou há dois anos interpretando e só tivemos uma reunião antes de começar o semestre com os docentes que iriam atuar com a aluna surda. Sendo que compareceram apenas três professores nessa reunião. Nos outros semestres, cogitou-se de fazer a reunião, mas infelizmente não ocorreu. Ingressou mais um aluno surdo nessa instituição nesse ano de 2008 e ainda não se realizou a reunião, sendo assim, nós orientamos os professores em sala mesmo, ou nos corredores da universidade.

ILS D
[...] falta de conhecimento por parte do professor e às vezes por parte do próprio surdo a respeito do papel do intérprete.

As relações institucionais que se estabelecem permitem com que os ILS assumam a responsabilidade de orientar professores e alunos neste dado momento histórico, e isto, em nosso ver, contribui de certa forma para não esclarecer qual o papel do ILS no ensino superior.

Um dos pontos cruciais nesta discussão é refletir sobre o acesso que esses profissionais têm em seus espaços de trabalho para dialogar, apresentar e problematizar sua função em tal lugar. Em outras palavras, perguntamo-nos: é de fato responsabilidade dos ILS realizarem este papel de intermediação, além do ato de traduzir? Em nosso ver, tal orientação não é competência do intérprete, pois o mesmo tem seu foco de trabalho na tradução/interpretação, um ato que desgasta e exige do profissional esforço cognitivo, conhecimento lingüístico e cultural das línguas envolvidas. À medida que o ILS tem de realizar um papel que não é seu, sua interpretação/tradução (foco de trabalho) passa para segundo plano, em alguns casos. De que forma estamos tratando a tradução? Para responder a essa questão adentraremos a segunda parte das análises, que trata a respeito das tensões e negociações enfrentadas pelos ILS no ensino superior.

3. ILS: Tensões e negociações no ensino superior

Refletir sobre as questões da tradução/interpretação implica problematizarmos sobre a partir de que viés estamos visualizando e pensando a tradução, isto é, a encaramos como uma atividade que ratifica o poder e a hierarquia de um povo, que contribui para a proliferação do colonialismo ou, ainda, encaramos tradução como algo que dá sobrevivência à escrita e difunde sua cultura? Se hoje temos acesso a dados culturais a respeito de diferentes povos, comunidades, sem dúvida a tradução é uma das responsáveis por este acesso cultural e lingüístico, pois ela permite adentrarmos em espaços desconhecidos e não experimentados. Mesmo ela tendo esta importância, porém, na comunidade surda, em alguns momentos, é posta sob tensão a presença dos ILS no ensino superior, conforme o depoimento a seguir:

ILS C
[...] Com o aluno surdo enfrentei algumas situações de tensão, pois o mesmo nunca teve intérprete, então ele confundia o meu papel de profissional com o de apenas uma amiga que sabe LIBRAS. Também por ser um aluno imaturo, às vezes me ameaçava a fazer “suas vontades” e se eu me recusasse, dizia que ia avisar a pessoa responsável do RH, pra me prejudicar, e eu perderia o meu emprego.

E com o professor? [...] Com os professores já tive momentos de tensões, em que eu pedi pra anotar no quadro o nome de autores que ele estava mencionando, ou referências bibliográficas, e o professor dizer que depois escreveria no quadro e não escreveu.

É provável que o aluno surdo esteja reproduzindo o discurso que a maioria da sociedade também reproduz. À medida que se desconhece o papel do ILS abrem-se múltiplas possibilidades para sua atuação, desde a tradução/interpretação até outros trabalhos que não estejam ligados a sua tarefa. Quando o ILS passa a se questionar sobre o processo de tradução e os envolvidos neste ato, há que se perguntar também quem são os demais que, junto a ele, compõem a tarefa de tradução. Em qualquer ato de tradução, o intérprete não age de modo isolado, ele está justamente no espaço “entre” das línguas, culturas e povos, que também são co-responsáveis neste processo.

Qual é a leitura que os próprios ILS fazem de si enquanto tradutores e do público para qual eles interpretam? Nota-se que a mudança discursiva no fato dos ILS assumirem-se e se olharem enquanto profissionais é um processo em construção, e a construção destas identidades é algo que está em permanente fluxo, não é acabada, havendo sempre um sentimento de incompletude, idéia defendida por Hall (2006) e, também, por Coracini em seu livro Identidade e discurso (2003).

O cotidiano da tradução/interpretação nos expõe a contextos que nos obrigam e impulsionam a tensionar fronteiras, construir e desconstruir espaços ora vistos como “sólidos” e inatingíveis, ora vistos como acessíveis. As instituições de ensino superior, os intérpretes e as comunidades surdas desafiam a necessidade de re-significar espaços que atendam às minorias lingüísticas e culturais, descolonizando conceitos e concepções concebidos a partir da homogeneidade.

Parece existir uma sobrecarga de funções para ILS, pois, para além do fazer tradutório de que estes dão conta, criam-se ainda expectativas de que os mesmos atendam trabalhos de orientação institucional, clarificando aspectos em relação à sua presença e à da pessoa surda em determinado espaço. Faz-se necessário, portanto, contestar tais expectativas e colocá-las em xeque, pois as mesmas estão idealizadas e ancoradas numa visão de ILS na perspectiva assistencial que nutriu certas práticas em dado momento histórico, o qual não contemplava o movimento que vigora atualmente. O deslocamento dessa visão de ILS, de uma concepção assistencialista para uma concepção de tradutor/intérprete a partir de uma perspectiva profissional é parte de um movimento atual e intenso nos grupos de ILS, e esse movimento tem se desdobrado especialmente nas pesquisas acadêmicas desenvolvidas na área da interpretação, que buscam problematizar conceitos teóricos com base nas práticas experimentadas pelos tradutores/intérpretes, isto é, uma espécie de estudos teóricos aplicados a tal realidade.

A partir dos anos 90, as pesquisas no Brasil a respeito da língua de sinais e da educação de surdos, sejam elas sob um enfoque lingüístico ou educacional, tornaram-se mais evidentes. No entanto lembramos que o momento atual na formação de ILS passa por um processo de institucionalização e, com esse processo, novas e antigas reivindicações vão entrando em jogo e circulando nos espaços acadêmicos e nãoacadêmicos.

Sem a pretensão de esgotar as possibilidades de discussão abordadas aqui, as quais se desdobram em vários outros campos e conexões possíveis a serem realizadas, concluímos, porém, que é preciso retomar três pontos que circularam este trabalho:

  • O primeiro ponto refere-se à necessidade de se deslocar o ser ILS da perspectiva assistencial para uma perspectiva profissional;
  • O segundo ponto, à necessidade de se assumir que estes profissionais ocupam lugares de fronteira, e assim, expõem-se e deixam-se expor a espaços híbridos das comunidades para as quais interpretam. Esse espaço não é livre de tensões, e em jogo entram distintos discursos que movimentam o ato de tradução;
  • O último ponto, à necessidade de se problematizar essas tensões e de se identificar e analisar que estratégias de negociações estão sendo apresentadas frente a essa situação de tensão, pois ILS não apenas reproduzem ou transpõem significados de uma língua para outra, eles são sujeitos constituintes do processo tradutório, e é por meio da tradução/interpretação que ocorrem aproximações e reaproximações entre comunidades.

Notas

1 HOLMES, James. The Name and Nature of Translation Studies. Texto apresentado na área dedicada à Tradução do 3º Congresso Internacional de Lingüística Aplicada, realizado em Copenhagen, Dinamarca, entre os dias 21 e 26 de agosto de 1972.
2 As figuras 4 e 5 em Gesser (2006, p. 53) ilustram de forma clara esses exemplos do discurso dicotomizante e da minoria ouvinte.
3 Cf. SILVA, Vilmar. Os intelectuais surdos e a política da diferença na educação bilíngüe. Projeto de qualificação [Doutorado em Educação] apresentado à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e qualificado no ano de 2008. Acesso fornecido pelo doutorando.

Bibliografia

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CORACINI, Maria J. Identidade e discurso. 1ª ed. Chapecó, SC: Argos, 2003.

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PERLIN, Gládis. Histórias de vida surda: identidades em questão. Dissertação (Mestrado em Educação). Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998.

MASUTTI, Mara. Tradução cultural: desconstruções logofonocêntricas em zonas de contato entre surdos e ouvintes. Tese (Doutorado em Literatura). Florianópolis, SC: Universidade Federal de Santa Catarina, 2007.

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