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Silvana Aguiar dos Santos
Silvana Aguiar dos Santos
Professora / Investigadora
Intérpretes de língua de sinais: O trânsito nas fronteiras culturais e linguísticas
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Publicado em 2008
3º Seminário Brasileiro de Estudos Culturais, Canoas. Anais do 3º Seminário Brasileiro de Estudos Culturais em Educação. Canoas: Editora da Ulbra. v. 1. p. 1-13
Silvana Aguiar dos Santos
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Resumo

Discuto, neste trabalho, os marcadores que constituem os intérpretes de língua de sinais (ILS) nas fronteiras culturais e lingüísticas no ato da interpretação. Este estudo é um recorte da dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação do CED/UFSC, no ano de 2006. Interpretar não é apenas passar palavras ou conceitos de uma língua para outra de forma estática e portátil. Essa tarefa exige conhecimentos lingüísticos, culturais e éticos das línguas envolvidas, tornando complexa esta empreitada. Nas últimas décadas, os ILS entram em cena no cotidiano universitário com mais freqüência, pois inúmeros são os trabalhos realizados por pesquisadores surdos no âmbito acadêmico. No ensino superior, as condições de trabalho, as relações desencadeadas entre o público surdo e ouvinte para com os próprios ILS são de fundamental importância e precisam ser discutidas, pois é neste trânsito cultural e lingüístico que esses profissionais se constituem. A partir das provocações suscitadas pelos Estudos Culturais e os Estudos Surdos podemos nos questionar, por exemplo: Quais são as negociações que os intérpretes precisam legitimar no espaço universitário e como elas movimentam e atravessam a constituição das identidades desses sujeitos? Este artigo divide-se em dois momentos, sendo que no primeiro dialogo com aspectos teóricos da interpretação e também com conceitos discutidos por Hall, Delisle e Woodsworth, Bhabha, Lima, Quadros e Perlin. No momento seguinte, discuto os efeitos que movimentam o trânsito entre a língua de sinais e o português junto com um grupo de ILS que atua no ensino superior. A análise da pesquisa consistiu em entrevistas semi-estruturadas realizadas com esse grupo que contestou as negociações culturais e lingüísticas, o pertencimento cultural e a formação profissional como peças centrais na discussão deste trabalho. A análise dessas narrativas não busca definir aspectos positivos ou negativos, bom ou ruim para área da interpretação, mas problematizar a forma com que os discursos sobre os ILS, enunciados pela academia, passam a ser legitimados e tomados como "verdade" no espaço universitário. Estes lugares e sujeitos envolvidos nesse processo de tradução cultural ocupam posições e se articulam em múltiplas identidades e discursos, instigando-nos a um mergulho profundo nos aspectos da língua, da cultura e das relações que se desencadeiam dessas mediações.

Nos últimos anos, o ensino superior tem sido marcado pela presença de pesquisadores surdos, tornando mais freqüente a presença de intérpretes de língua de sinais no cotidiano acadêmico e intermediando a comunicação entre pessoas surdas e não-surdas. As investigações sobre a língua de sinais, sobre o currículo, sobre os aspectos lingüísticos, culturais e sociais, sobre a formação dos profissionais surdos, ocupa o cenário brasileiro.

Tais pesquisas são referendadas pelos movimentos nacionais e mundiais de surdos, como a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos e associações, e a Federação Mundial de Surdos (FMS), os quais compartilham bandeiras a serem conquistadas em favor da comunidade surda. Os intérpretes de língua de sinais (ILS) pertencem cultural e lingüisticamente a este povo, às suas pautas reivindicatórias no que se concerne à formação desses profissionais. Mas, qual é o lugar que essa discussão ocupa a partir dos nossos olhares enquanto intérpretes?

Interpretar não é apenas transportar conceitos de uma língua para outra de forma estática e portátil, essa tarefa exige conhecimentos lingüísticos, culturais e éticos das línguas envolvidas, tornando complexa a empreitada. Essa preocupação é manifestada por Sarat Maharaj (1985) que traz as contribuições a respeito do processo e dos compromissos advindos da tradução cultural:

A tradução [...] não se trata de transportar fatias suculentas de sentido de um lado da barreira de uma língua para outra – como acontece com os pacotes de fast-food embrulhados nos balcões de comida para viagem. O significado não vem pronto, não é algo portátil que se pode “carregar através” do divisor. O tradutor é obrigado a construir significado da língua original e depois imaginá-lo e modelá-lo uma segunda vez nos materiais da língua com a qual ele ou ela o está transmitindo (MAHARAJ, 1985, p.31 apud HALL, 2003, p. 41).

Dessa forma, toda interpretação e tradução estão implicadas à subjetividade dos profissionais que a realizam, tema este explorado por Masutti (2007, p. 80-107). A tênue “fronteira” que baliza as línguas no ato da interpretação força o profissional intérprete a viver num movimento constante, a procurar significados que se aproximem o máximo da língua-fonte 2 e da língua-alvo, assim como trabalhar com as relações desencadeadas entre o público surdo e ouvinte, que, na maioria das vezes, desconhecem o trabalho do ILS. Problematizar esse contexto é fundamental, pois é nesse trânsito cultural e lingüístico que os intérpretes brasileiros se constituíram enquanto profissionais, uma vez que não havia cursos superiores 3 na tradução e interpretação da língua de sinais/português.

É a partir das provocações suscitadas pelos Estudos Culturais e os Estudos Surdos a respeito das políticas de identidades, dos marcadores culturais, das questões lingüísticas, das questões étnicas, das questões de gênero, das subjetividades e das diferenças que constituem os sujeitos, que este trabalho apresenta uma arena pouco visitada nas investigações acadêmicas nesta abordagem teórica: os intérpretes de língua de sinais.

Negociar o trânsito entre as fronteiras lingüísticas e culturais

Nos espaços universitários, em que a interpretação/tradução está presente (pelo trânsito de surdos e não-surdos), a negociação, a tensão e a tradução cultural são “forçadas” a acontecer freqüentemente. Antes de problematizarmos, diretamente, sobre essas questões, é indispensável dialogarmos com questões teóricas da interpretação e tradução, sendo esse diálogo o primeiro momento deste artigo. No momento seguinte, serão discutidas as negociações lingüísticas e culturais que os intérpretes precisam realizar no espaço universitário: como elas movimentam e atravessam a constituição das identidades desses sujeitos?

Apresentar uma “linha do tempo” sobre os estudos da tradução 4 e da interpretação não é foco deste artigo, mas sim dialogar com pontos importantes destas duas áreas e os significados que elas trazem para os ILS. Tradução e interpretação não são conceitos explícitos para a maioria das pessoas, e com freqüência são tomadas como sinônimos, ainda que possuam diferenças na forma de atuação e nas condições de trabalho dos profissionais que realizam tais atividades.

Jakobson apresentou em Aspectos lingüísticos da Tradução (1975, p. 64-65) três tipos de tradução (interlingual, intralingual e intersemiótica) e foi um dos primeiros teóricos da área a problematizar a complexidade do campo tradutológico. O conceito de tradução é bastante contestado. Uma das vertentes sobre este termo é apresentada por Rónai (1976) quando afirma que:

Ao definirem “tradução”, os dicionários escamoteiam prudentemente esse aspecto e limitam-se a dizer que “traduzir é passar para outra língua”. A comparação mais óbvia é fornecida pela etimologia: em latim, traducere é levar alguém pela mão para o outro lado, para outro lugar. O sujeito deste verbo é o tradutor, o objeto direto, o autor do original a quem o tradutor introduz num ambiente novo. (RÓNAI, 1976, p. 3-4).

Encontramos em Rónai (1981) apontamentos para as armadilhas que as traduções trazem, e a busca constante de tradutores nos dicionários constituiria uma delas, pois as palavras, isoladas, sem contextos culturais ou lingüísticos, instigam alguns tradutores a cometer contra-sensos, pois as palavras de uma língua de partida (a língua-fonte) não se correspondem necessariamente com palavras em outra língua, a de chegada (língua-alvo).

Freqüente em todas as línguas, as expressões idiomáticas também constituem um desafio para os ILS quando estes realizam, especialmente, interpretações simultâneas daquelas, ou seja, em tempo real. É comum um intérprete menos experiente ser tomado de surpresa com uma frase, dita em português, do tipo “e agora, quem coloca o sino no pescoço do gato?”. Para ser retransmitida em língua de sinais, essa expressão (uma metáfora) inicialmente não deve ser transposta em sentido real, necessitando que se busquem sentidos que a façam valer nessa língua. Magalhães (2007, p. 54) acrescenta ainda que as escolhas que o(a) intérprete realiza estão fortemente relacionadas ao conjunto de valores que ele(a) possui.

Uma das alternativas para interpretar a metáfora do gato poderia ser “e agora, de quem é a responsabilidade?” e, posteriormente, apresentar a frase na forma literal. Essa situação é um ponto crucial para o profissional em atuação, e mais uma vez é ratificada a idéia de que os intérpretes precisam se inteirar do conteúdo de um enunciado, e depois “tentar esquecer as palavras em que o texto está expresso, para depois procurar, na sua língua, as palavras exatas em que semelhante idéia seria naturalmente vazada” (RÓNAI, 1981, p. 58). Se tradução é o ato de viver nas fronteiras, os tradutores realizam esse movimento constantemente, e conforme Masutti, além de realizar este movimento “propiciam o encontro de culturas, de trocas simbólicas e tornam vivo e dinâmico o conhecimento por permitir a circulação de sentidos. Não existe conhecimento sem tradução” (MASUTTI, 2008, p. 1).

Guerini (2008, p. 34) afirma que até o século XII, aproximadamente, era chamado intérprete quem fazia tradução, tanto oral quanto escrita. A partir do século XII, começa-se a falar de intérprete como aquele que faz tradução oral, ou seja, interpretação, e de tradutor como aquele que faz tradução escrita. Nos Estudos Surdos, a figura do tradutor vem crescendo cada vez mais nos últimos anos, por meio de traduções como as de clássicos da literatura brasileira, do português para a língua de sinais, realizados e disponibilizados pela Editora Arara Azul em formato CD-ROM, ou ainda, mais recentemente, nos materiais produzidos pelo curso de graduação em Letras-LIBRAS na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Neste trabalho, porém, o foco é o intérprete de língua de sinais e o seu trânsito nas fronteiras culturais e lingüísticas proporcionadas pelo ato da interpretação.

Na história, tanto intérpretes de línguas orais quanto ILS, durante muito tempo, ocuparam papel secundário, pois não eram reconhecidos como profissionais. Poucos são os registros históricos que tratam a respeito dessa profissão. É interessante observar ao longo da história que, mesmo sem um status profissional enquanto intérprete, na maioria das vezes, conforme apontam DELISLE e WOODSWORTH (2003, p. 258), os intérpretes de línguas orais eram “híbridos étnicos e culturais” que serviam de intermediadores lingüísticos quando resgatados em tempos de guerra ou conflitos. O fato de buscar uma pessoa que fosse híbrida para atuar enquanto intérprete aponta para possíveis preocupações que os povos tinham em relação à necessidade do intérprete transitar entre as fronteiras das línguas que não são imbuídas apenas de traços gramaticais. Mas, e os intérpretes de língua de sinais? Quais seriam as negociações necessárias para com suas platéias, envolvidas no ato da interpretação?

Negociar com a platéia surda...

Negociar, segundo o dicionário Michaelis (1998) da língua portuguesa, visa um resultado que é um acordo, uma determinada proposição prática que recebe o assentimento das partes envolvidas, enfim, visa solucionar divergências. Na interpretação esse conceito é fundamental para sinalizar “os acordos culturais e lingüísticos” que os ILS realizam. As tensões culturais e lingüísticas enfrentadas pelos intérpretes ocorrem em meio a uma relação não muito harmoniosa entre surdos e não-surdos, necessitando de negociações constantes entre estes dois grupos, fato este que ocorre em qualquer língua.

Os intérpretes de língua de sinais, por exemplo, também são pessoas ouvintes, e às vezes pagam o ônus desta condição enfrentando certa “desconfiança" por parte das pessoas surdas, do tipo: “tudo bem, tu és interprete, mas no fundo tu és um ouvinte”. Nos afiliamos a idéia que precisa haver uma certa negociação no momento da interpretação para que a mesma não seja afetada nesse âmbito das relações, de forma que os intérpretes mantenham-se imparciais e, por outro lado, os surdos entendam que, mesmo em se tratando de ouvintes, intérpretes são pessoas que transitam fortemente nas culturas surdas, e são “ híbridos culturais e lingüísticos", muito mais próximos da produções culturais surdas, inclusive, que ouvintes que não circulem nela, não convivam com ela nem a estudem. É nesse movimento cultural que os intérpretes se constituem.

Em relação à cultura ela não é determinada ontologicamente, conforme a compreensão trazida pelos Estudos Culturais, mas sim um processo de tornar a ser, conforme afirma Hall (2003, p.44), isto é, ela é uma produção e todos nós permeados por ela estamos, em processos de formação cultural constantes.

A língua ocupa um lugar de destaque na formação individual e coletiva dos sujeitos, marcando posições de pertencimento ou não a determinado grupo. Decidir ser um intérprete no grupo de surdos significa não só aprender a língua de sinais, mas também ter fluência no português, ter postura ética, procurar cursos de atualização na área, elementos primordiais e que facilitam a entrada do profissional nos espaços em que transitam surdos, mas não necessariamente garantem seu pertencimento ao grupo.

O decreto 5626 que regulamenta a lei de LIBRAS nº 10.436/02 foi uma das conquistas importantíssimas para os intérpretes, pois dá providências a questões como a formação e a qualificação desses profissionais. Essa situação gera tensão no ensino superior e resulta da carência de programas formais de ensino na área da interpretação, pois há profissionais que passaram a atuar no ensino superior sem a devida qualificação. A própria instituição, seja pública ou privada, acaba desempenhando o papel de formar os ILS, refletindo sobre sua prática profissional. Nesse sentido, as pessoas surdas têm de lidar com os limites de atuação dos ILS e se tornam, também, partes fundamentais na formação destes. No entanto, poucos cursos são oferecidos no Brasil para a qualificação dos ILS.

A grande maioria aprimora sua prática a partir das vivencias cotidianas de atuação, em um processo de constante adequação e re-adequação da interpretação, buscando respaldo lingüístico na busca de novos sinais com os próprios clientes – os surdos, estudando qual equivalente da outra língua é mais apropriado para cada situação, compartilhando as experiências com outros intérpretes. (RUSSO; PEREIRA, 2006, p. 3).

O intérprete, em conseqüência das modalidades lingüísticas envolvidas (oral-auditiva no português e visual-espacial na língua de sinais), expõe-se diretamente ao público, diferentemente de um intérprete de línguas orais que, por exemplo, esteja em uma cabine realizando interpretação simultânea e, a partir daí, reconheça-se apenas sua voz. No caso do intérprete de LIBRAS, há uma visibilidade maior, de forma que este profissional passe muitas vezes por avaliações de competência pelo público presente, tanto de pessoas bilíngües (LIBRAS/Português) quanto de surdos. Em determinadas situações, traduzir signos e enunciar diferenças culturais de uma língua para outra, os quais nem sempre são traduzíveis, constitui-se um obstáculo a ser ultrapassado e que necessita de técnicas e estratégias de interpretação.

Não é incomum, por exemplo, a situação de intérpretes que, embora afeitos à cultura surda e fluentes em libras, apresentam no momento de exposição pública uma sensação de desconforto e nervosismo para verbalizar o texto processado em língua de sinais. Esse é um fato que deve ser considerado, porque o grau de exposição do intérprete em termos lingüísticos e culturais durante seu ato performático pode afetar profundamente a subjetividade desse indivíduo, que, ao se sentir acuado diante das demandas das platéias surdas e ouvintes, às vezes, opta por desistir da função. Muitas situações geram constrangimentos e traumas pela sensação de impossibilidade de representar a fala do outro. (MASUTTI; SANTOS, 2008, no prelo).

Ser flexível a esses embates culturais, subjetivos e lingüísticos nos convoca a refletir sobre a tradução cultural, pois esse trânsito entre as línguas envolvidas, em determinados momentos, gera contestações e vínculos de pertencimento cultural. Quando o intérprete passa a trabalhar no ensino superior, habilidades distintas lhe são exigidas, sendo que a principal delas, segundo Perlin, “é romper com uma série de artefatos coloniais, como a enunciação da cultura surda vista ainda como subalterna, ou como inexistente em algumas frações sociais” (PERLIN, 2006, p. 142). O ILS passa por um processo de desconstrução lingüística e cultural tanto em relação ao ser surdo quanto em relação a si próprio enquanto profissional. Tais desconstruções são fundamentais para delimitar o papel do intérprete enquanto profissional da área, evitando laços de dependência que podem subalternizar ambos perante o ensino superior. Nesse sentido, apresentamos na Tabela 1 a seguir menção interessante feita por um intérprete:

Tabela 1. Depoimento* de ILS

“Um exemplo banal, que é: um surdo pergunta para a gente: que dia que será a prova?
Contextualizando: eu, intérprete, trabalho numa escola ou numa universidade, traduzo as aulas, e aí o surdo me diz:
— Tu lembras que dia é a minha prova? Que matéria vai cair?
Como se eu, intérprete, tivesse que lembrar ou fosse a agenda dele. Então tem esse costume, não é depender, mas procurar um intérprete para pedir informação que é responsabilidade dele. A minha responsabilidade como intérprete é na sala de aula, ou em outro espaço que necessário, na universidade ou na escola. Mas acabou ali. Ele que tem que saber que dia que é a prova, que conteúdo vai cair, o que o professor disse, essas coisas, entendeu?
Então, tem essa confusão.”

* Depoimento concedido por um intérprete em entrevista, direto à autora deste trabalho.

Essas relações são acentuadas pela carente formação dos ILS, oriundos de espaços empíricos, ou seja, das relações de parentesco com pessoas surdas, de associações de surdos, de espaços religiosos, entre outros, os quais num primeiro momento não delimitam negociações lingüísticas ou culturais de ordem profissional. São nesses espaços que a maioria dos intérpretes adquirem a língua de sinais e, posteriormente, passam a atuar enquanto profissionais, tal caminho acaba conferindo uma marca singular na carreira desses intérpretes.

Negociar com a platéia não-surda...

Por outro lado, problematizar a forma como as negociações precisam ser realizadas com as platéias não-surdas no ensino superior é tarefa fundamental. Tais lugares e sujeitos envolvidos no processo de tradução cultural ocupam posições e articulam-se com múltiplas identidades e discursos, instigando-nos em um mergulho profundo nos aspectos da língua, da cultura e das relações que desencadeiam essas negociações.

As reivindicações dos intérpretes têm ocupado o cenário nacional, por meio de pesquisas acadêmicas, as quais focalizam diversos temas, desde a questão lingüística e de proficiência, direcionadas mais ao campo dos Estudos da Tradução, como se pode observar em Pereira (2008), bem como outras investigações, endereçadas à relação do intérprete e à presença deste no ensino superior, desafios enfrentados neste campo, como bem podemos analisar, por exemplo, nos trabalhos de Santos (2006) e Lima (2006).

Na maioria das vezes, os professores ou palestrantes desconhecem a população surda e as conseqüências que a presença de um intérprete causa na sala de aula. É comum, pela falta de informações e desconhecimento do assunto, inicialmente a presença do intérprete causar desconforto ou estranhamento para os professores. Em determinados contextos, o ILS pode passar a ser encarado como um aliado, ou, em situações extremas, um oponente que disputa espaços com o professor. Nesse sentido, a narrativa de um intérprete apresentada na Tabela 2 a seguir torna mais clara essa afirmação:

Tabela 2. Depoimento* de ILS sobre o intérprete em sala

“Muitas vezes, não é culpa do professor em si, vamos dizer. Eu já entrei em várias salas de aula em que não se tinha sido avisado para o professor nem que tinha um surdo, muito menos que ele teria um intérprete. Então eu estava sentada de costas para o professor, o professor me olhando de braços cruzados, achando que eu estava me rebelando, que fosse uma aluna que estivesse fazendo um protesto. Então será que, não, eu que tive que explicar tudo: não, eu sou intérprete ele é surdo e tal, vai ocorrer assim e tal. Eu sinto essa, essa dificuldade de interação com o professor, o professor às vezes atrapalhando o processo de interpretação, professores manipulando o intérprete, achando que o intérprete vai ajudar, se encostando, pegando na mão, passando na frente entre o intérprete e o surdo. Muitas coisas práticas até que poderiam ser resolvidas com seminários, com formação para os professores.”

* Depoimento concedido por um intérprete em entrevista, direto à autora deste trabalho.

As conseqüências dessa relação, no entanto, vão além, pois na medida em que o intérprete torna-se parceiro do professor, ambos desenvolvem um trabalho qualificado. Elaborar conceitos de conteúdos densos, como no ensino superior, requer uma parceria necessária entre intérpretes e professores, demandando a preparação da interpretação com antecedência, isto é, que os materiais e recursos sejam disponibilizados para que improvisos sejam evitados, ou melhor administrados. No ensino superior, essa situação é complexa, conforme apontam Masutti e Santos (2008):

Espera-se que intérpretes possam dar conta de elaborados campos conceituais dos mestres em pouco tempo, e que dominem as áreas de conhecimento como se fosse algo corriqueiro em suas vidas. A construção teórica passa a ser cada vez mais elaborada e ali se desenvolvem campos de experiências intocados anteriormente pelas línguas de sinais. (MASUTTI; SANTOS, 2008, no prelo)

Este triângulo que se forma na relação entre professor, surdo e intérprete exige uma série de desconstruções que permeia todo o processo, pois tanto do professor quanto do surdo, inicialmente há um olhar de desconfiança que paira sobre essas relações. Ambos questionam a fidedignidade da interpretação realizada, assim como a postura ética, a fluência lingüística do profissional e conhecimentos específicos da área. Dessa forma, o intérprete encontra-se radicalmente exposto a múltiplos discursos e significações que lhe são atribuídas, e todo esse trânsito afeta diretamente sua subjetividade e movimenta constantemente sua identidade.

Ocupar o “entre-lugar” nesses espaços requer desconstruir valores, crenças, discursos e se tornar o mais imparcial possível na interpretação, ainda que todos esses espaços, tempos e pessoas constituam subjetivamente o profissional. Por isso, os ILS estão em constante deslocamento a cada interpretação que realizam. Nesse sentido, RAJAGOPALAN (2003, p. 69) afirma que as línguas não são apenas instrumentos de comunicação, mas sim a expressão das próprias identidades. O autor assegura, ainda, que vivemos em uma época na qual as identidades precisam ser constantemente renegociadas e estão susceptíveis a mudanças, sendo o contato das pessoas com as diferentes culturas um dos exemplos dessa renegociação.

HALL (2003, p. 211) afirma que ao trabalharmos com as questões culturais, estaremos sempre em uma área de deslocamento, de tensão e de negociação. Essa área não se constitui de forma homogênea e unificada, mas sim descentralizada pelos efeitos do deslocamento cultural. Quando penso a respeito do ser ILS, me inspiro nessas afirmações para traçar algumas reflexões, pois freqüentemente, no ato da interpretação, os ILS precisam mais do que conhecer as línguas envolvidas, precisam conhecer também seus desdobramentos culturais para realizar a “passagem” da tradução, caracterizando assim a linha de raciocínio apresentada por Bhabha (2005):

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. (BHABHA, 2005, p. 27).

Esses profissionais necessitaram negociar espaços, posições, diferenças culturais e lingüísticas que permeiam as relações entre ouvintes e surdos. Um dos exemplos dessa afirmação se constitui na questão do olhar e do quanto os ILS precisam desenvolver e re-significar a experiência visual, uma vez que a modalidade da LS é visual-espacial. Masutti argumenta que “O olhar surdo exige traduções culturais, que se tornam condições da relação e do encontro com o outro” (MASUTTI, 2007, p. 11).

Considerações finais

Os desconfortos culturais experimentados pela maioria dos ILS no ato de tradução e interpretação é o foco da teoria cultural que problematiza as questões da instabilidade das identidades. Pensar nessa direção significa afirmar que os ILS estão em constante mobilidade quando posicionados nos espaços híbridos em que transitam surdos e ouvintes. É nesses espaços que se coloca em xeque a incerteza, a dúvida, a ambigüidade a respeito das identidades consideradas como prontas, imutáveis e acabadas. Algumas complicações das identidades se tornam evidentes nesse processo.

É possível ainda observar que o diálogo entre ILS não cessa neste trabalho. É notável que o encontro ILS-ILS traz uma satisfação imensurável, por saber que os mesmos compartilham de situações semelhantes e o contato entre os próprios colegas ILS contribui para a formação destes num sentido global. Essa interação é uma forma de serem ouvidos entre si, de expressarem as subjetividades envolvidas, os desabafos, as falhas, as pesquisas, as dificuldades e as produções satisfatórias do ato de interpretação.

Notas

2 Quadros (2004, p. 9) define língua-fonte como a língua que o intérprete ouve ou vê para, a partir dela, fazer a tradução e a interpretação para outra língua (a língua-alvo).
3 O primeiro curso de graduação para formar tradutores/intérpretes de língua de sinais iniciou no dia 28 de junho de 2008, na modalidade à distância, promovido pela Universidade Federal de Santa Catarina, em parceria com demais pólos no país (entre universidades e CEFETs).
4 Essa descrição encontra-se em Santos (2006, p. 44-49).

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