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Zilda Maria Gesueli
Zilda Maria Gesueli
Professora
A Criança Surda e o Conhecimento Construído na Interlocução em Língua de Sinais
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Publicado em 1998
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
Zilda Maria Gesueli
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Resumo

Este trabalho discute o papel da Língua de Sinais na educação do surdo e focaliza os processos dialógicos que tomam lugar, através desta língua, durante a construção de conhecimento na sala de aula. Com base nas proposições teóricas de L. Vygotsky, M. Bakhtin e autores contemporâneos relacionados à abordagem sociocultural e semiótica do processo humano, assumo que somente através da linguagem, na relação social, o sujeito pode significar o mundo. Então, as experiências de linguagem têm um papel fundamental na construção do conhecimento e, de maneira geral, no processo de subjetividade. Visto que a Língua de Sinais é o caminho natural pelo qual as crianças surdas podem desenvolver processos dialógicos efetivos, torna-se necessário oferecer-lhes oportunidade de aquisição da Língua de Sinais o mais cedo possível, para desenvolver uma condição bilíngüe e alcançar o aprendizado escolar de acordo com essa condição. De maneira a contribuir para a discussão sobre a possibilidade de organizar o trabalho pedagógico em tal direção, meu campo de pesquisa esteve voltado para uma classe de seis crianças surdas pré-escolares (pertencentes a famílias ouvintes) que estavam em aquisição da LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), o que foi possível pela interação regular com um instrutor surdo. Durante o trabalho com essa classe, desempenhei um duplo papel, como professora e como pesquisadora. As situações de sala de aula foram videogravadas durante três semestres. A idade dos alunos estava na faixa de 5 a 6 anos, no início da pesquisa. Meu objetivo foi analisar os processos dialógicos ocorridos na sala de aula e caracterizar a participação da Língua de Sinais na construção do conhecimento, em atividades com narrativas. O foco esteve centrado nas interlocuções em sinais enquanto as crianças elaboravam (contando e recontando) narrativas e lendo ou escrevendo textos narrativos. A análise mostrou que essas crianças ficaram muito envolvidas com a narrativa, assumindo papel vi de narrador ou co-narrador, e demonstrando um processo rico e complexo de composição de texto (sinalizado), com colagens de diferentes estórias e com diferentes ecos de discurso alheio. Com referência às produções dos alunos sobre leitura e escrita de estórias, as observações indicam que suas interações com textos escritos (em português) se realizam através da língua de sinais, que funda o processo de interpretação e media as elaborações sobre o sistema de escrita. Mostro a importância da interlocução em sinais para o desenvolvimento de um trabalho educacional com a criança surda mais efetivo. Finalizo apontando brevemente alguns problemas relacionados às dificuldades de projetos institucionais que pretendem uma proposta bilíngüe (preocupados, principalmente, com o treinamento de professores ouvintes bilíngües, com a forma de atuação de instrutores surdos e educadores e com as relações com a comunidade surda) e às experiências futuras de escolarização dessas crianças, cujas famílias têm que escolher entre escola regular e especial; uma difícil escolha, dado que nenhuma dessas duas perspectivas é, ainda, satisfatória.

Apresentação

O tema focalizado neste estudo vem de indagações ligadas à área da surdez, uma vez que esta tem feito parte do meu cotidiano há vários anos. Minha pesquisa teve início durante a graduação em Lingüística, quando eu já atuava com crianças surdas e, desde então, tenho convivido com inúmeros questionamentos que procuro ir solucionando através do trabalho educacional e da investigação sobre a sala de aula.

Inicialmente, meu enfoque esteve voltado para a aquisição de linguagem oral da criança surda, pois eu trabalhava de acordo com uma proposta oralista. Porém, a partir das reflexões realizadas no curso de graduação sobre a visão sociointeracionista, pude perceber que o trabalho enfatizava o papel da linguagem apenas enquanto código e mero instrumento comunicativo. Naquele momento, também já deparava com resultados muito pouco satisfatórios no que se referia a essa orientação na busca de promover o processo de aquisição de linguagem.

Em seguida, ao ingressar no mestrado, novamente na área da Lingüística, minhas preocupações e meus questionamentos já entravam em conflito com as idéias oralistas. Uma vez que as crianças apresentavam grande dificuldade de oralização, por que não pensar em um trabalho de alfabetização que não tivesse necessariamente que passar pela oralidade? Preocupava-me, então, o processo de aquisição da linguagem escrita dessas crianças.

Esse foi o tema central da minha dissertação de mestrado, na qual procurei descrever e refletir sobre o processo de alfabetização de crianças surdas, cuja fala não estava desenvolvida, contrariando assim as expectativas do oralismo, de que é necessário “oralizar” a criança antes de colocá-la em contato com a escrita. A pesquisa mostrou que elas são capazes de pensar sobre a escrita, levantando suas hipóteses, produzindo e interpretando textos. As análises sugeriram, adicionalmente, que, através da escrita, o surdo pode chegar à fala.

Dando continuidade àquele trabalho e percebendo cada vez mais a necessidade do uso de sinais na sala de aula, cheguei ao doutorado bem mais afastada do processo de aquisição da linguagem oral pela criança surda e muito interessada tanto na discussão da importância da língua de sinais no seu processo de ensino-aprendizagem quanto na observação das mudanças que o uso dessa língua provocaria no cotidiano de sala de aula.

Presenciar as interlocuções em sinais na sala de aula com os alunos fazendo uso da língua, o que não acontecia anteriormente, pareceu-me muito gratificante. Apesar de não ser fluente em língua de sinais, pude contar com a presença de um instrutor surdo oferecendo subsídio para tal desafio.

Direcionei, então, minha pesquisa para uma análise dos modos pelos quais os processos dialógicos, constituídos pelo uso da língua de sinais, marcam a construção de conhecimentos da criança surda. E dado o envolvimento dos sujeitos da pesquisa com um trabalho de alfabetização, especifiquei o objetivo em termos de uma análise da interlocução em língua de sinais em momentos de elaboração narrativa, tanto na recontagem quanto nas atividades de leitura-escritura de estórias infantis.

O presente trabalho está organizado da seguinte forma: o primeiro capítulo apresenta considerações a respeito das relações entre cognição e linguagem, enfocando o papel desta no processo de desenvolvimento e aprendizagem, principalmente no que concerne à criança surda. Estarei tomando como referencial a teoria histórico-cultural e levando em conta também alguns aspectos da teoria de Bakhtin, no que se refere à linguagem e à construção da subjetividade. O segundo capítulo contém um breve histórico de minha trajetória no âmbito da atuação como professora; meu propósito, nessa retomada, é caracterizar e problematizar as diferentes correntes educacionais assumidas pela instituição onde venho trabalhando, as quais têm marcado os trabalhos na educação de surdos de modo geral, em nossa realidade. O terceiro capítulo apresenta as considerações metodológicas, com a descrição dos principais aspectos do estudo de campo. Nos dois capítulos posteriores, é exposta a análise dos dados, enfocando as elaborações que as crianças fazem através do uso da língua de sinais, em momentos de trabalho com narrativas e em atividades de leitura-escritura. Finalizo o trabalho com essa breve síntese das análises e com a discussão de alguns pontos que permanecem ainda em aberto, isto é, a partir do estudo feito, exponho algumas reflexões a respeito da atuação educacional com a criança surda.

Minha única certeza, por enquanto, está na importância da língua de sinais para o processo de desenvolvimento da criança surda, devendo ser esta a sua primeira língua e devendo o trabalho pedagógico consolidar e refinar sua condição bilíngüe.

Inicialmente, em conseqüência da pesquisa realizada no mestrado, meu interesse esteve voltado para o processo de construção da escrita. Contudo, com a entrada do instrutor na sala de aula as ocorrências dialógicas mostraram-se muito significativas.

Constituía-se para mim um dado totalmente novo: a efetiva construção da narrativa no espaço escolar, sendo possível observar marcas discursivas dos diferentes interlocutores no processo dialógico de cada aluno. O trabalho interpretativo parecia ocorrer de fato, e era muito interessante observar como o discurso de outrem fazia-se presente no dizer (em sinais) dos alunos. A partir de constatações desse tipo, não resisti em desviar levemente meu olhar para essas construções, sem perder de vista as produções de leitura e escritura.

Dada a importância da narrativa para o processo de construção da escrita e estando as crianças em fase inicial de alfabetização, meu interesse centrou-se na observação dos processos dialógicos que instanciam a construção de conhecimento; como indicado, propus-me a examinar as elaborações das crianças durante atividades de narrar e de ler-escrever textos narrativos.

Para contextualizar as preocupações que orientaram este trabalho, farei, no capítulo a seguir, uma reflexão sobre a importância da linguagem no processo de construção de conhecimento e da própria identidade do sujeito, tendo como fundamentação teórica a abordagem histórico-cultural em Psicologia, mais especificamente a visão de L.S. Vygotsky.

CAPÍTULO I

As Relações Sociais e a Linguagem no Desenvolvimento da Criança Surda

Recorrendo aos fundamentos da teoria histórico-cultural, estarei olhando para a criança surda enquanto sujeito interativo, que se constitui nas relações sociais. Meu interesse está na análise de ocorrências interativas, ou seja, no jogo intersubjetivo e não apenas na ação da criança. Esse interesse também não implica examinar apenas a atuação de outros diante da criança, sendo necessário enfatizar que, conforme lembra Góes (1991), “o plano intersubjetivo não é o plano do ‘outro’, mas o da relação do sujeito com o outro” (pg.19).

Vygotsky (1981, 1984, 1989a, 1989b, 1993)1 concebe o homem como um ser sociocultural, afirmando que seu desenvolvimento se dá inicialmente no plano intersubjetivo (das relações sociais) e depois no plano intrasubjetivo (envolvendo o processo de internalização). No desenvolvimento assim concebido, a linguagem terá um papel fundamental, como mediadora das interações e da significação do mundo.

Portanto, para Vygotsky, a relação do homem com o mundo não é direta, mas mediada, e as ocorrências de mediação primeiramente vão emergir através de outrem e depois vão orientar-se ao próprio sujeito. Por isso, “a dimensão significativa da mediação semiótica é também afirmada quanto à relação do homem consigo próprio” (Góes, 1994, pg.95) e esta relação não é direta mas mediada pelo signo.

O signo é, então, abordado como mediador que desempenha um papel de “instrumento psicológico”, tendo significados construídos e reelaborados na história da cultura e que serão responsáveis pelas transformações das funções elementares em funções superiores.

Na visão de Vygotsky, em termos filogenéticos, o homem só passou da condição de ser biológico para ser sócio-histórico a partir da linguagem (além do preparo e do uso de instrumentos). Do mesmo modo, no âmbito ontogenético, a linguagem preserva esse status teórico de destaque, tendo um papel fundamental no processo de desenvolvimento e aprendizagem, o que distingue essa visão da apresentada por outras teorias psicológicas. Em Wertsch (1988), podemos encontrar o apontamento de que Vygotsky, durante a última década de sua vida, dedicou-se intensamente à noção de mediação, chegando a afirmar, em 1933, que este era o tema central da Psicologia.

Segundo Wertsch (1988), são três os temas que constituem o núcleo da estrutura teórica de Vygotsky: 1) a crença no método genético, entendido enquanto histórico, 2) a tese de que os processos psicológicos superiores têm sua origem em processos sociais e 3) o argumento de que os processos mentais são formados pelo uso e pela internalização de instrumentos e signos que atuam como mediadores. Estes temas estão interligados e só poderão ser compreendidos a partir de sua interrelação; na verdade, “o terceiro tema, a mediação de signos e instrumentos, é analiticamente superior aos outros dois (...) mesmo porque muitos dos aspectos importantes dos outros dois temas podem ser entendidos somente através do conceito de mediação” (Wertsch, 1988, pg.33).

Dessa forma, a noção de mediação é essencial para compreendermos o fundamento sócio-histórico do funcionamento psicológico porque a relação do sujeito com o mundo e com o outro não é direta, mas mediada, e os sistemas simbólicos constituem os elementos intermediários para essa interação. Portanto, a interação social e os processos mentais dependem das formas de mediação (como a linguagem) para que de fato se realizem.

Para Vygotsky (1988), o desenvolvimento infantil acontece inicialmente a partir dos processos interpsíquicos, da interação da criança com os adultos, que seriam os mediadores externos do contato da criança com o mundo. E à medida que as crianças crescem, os processos partilhados com os adultos tornam-se internalizados, isto é, as respostas mediadoras ao mundo transformam-se em um processo intrapsíquico. Na mesma obra, o autor afirma que “é através desta interiorização dos meios de operação das informações, meios estes historicamente determinados e culturalmente organizados, que a natureza social das pessoas tornou-se igualmente sua natureza psicológica” (pg.27).

Nessa proposição, quando falamos em indivíduo que interage com seu meio e absorve de maneira particular a cultura e os valores desse meio, estamos admitindo, necessariamente, o processo de internalização, que irá ocorrer no contexto das interações sociais, a partir da atividade mediada. “O processo de desenvolvimento de funções psicológicas superiores e de novas formas de atividade mental não ocorre como um processo passivo e individual, e sim como um processo ativo/interativo - apropriação - no interior das relações sociais. A mediação social das atividades da criança permite a construção partilhada de instrumentos e de processos de significação que irão, por sua vez, mediar as operações abstratas do pensamento” (Nogueira, 1995, pg.16).

A grande contribuição da teoria de Vygotsky foi a tese da mediação semiótica, que traz um novo olhar da Psicologia para a linguagem; não meramente como instrumento de comunicação, mas, usando um qualificativo atual, como “constitutiva” do sujeito, conforme se pode depreender das análises que apresenta, em sua última obra, sobre pensamento e linguagem (Vygotsky, 1993). Então, para ele, “a palavra não é uma possibilidade a mais de realização semiótica, é a possibilidade central” (Góes, 1996, pg.33).

Cabe lembrar que essa contribuição se situa no campo da Psicologia e que o objeto de investigação de Vygotsky era a formação da consciência e das funções superiores. Em sua interpretação, o significado da palavra pode ser tomado como a unidade de estudo desses processos. Muito importantes, também, são as discussões sobre pensamento e linguagem que esse teórico apresenta para mostrar que ambos não são elementos isolados e independentes mas que se encontram intimamente relacionados. E o vínculo entre pensamento e linguagem não se caracteriza como uma coisa mas como um processo, “um movimento contínuo de vaivém do pensamento para a palavra, e vice-versa” (Vygotsky, 1993, pg.108).

É o significado da palavra que constitui a unidade do pensamento verbal, representando assim um “amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da ‘palavra’, seu componente indispensável” (Vygotsky, 1993, pg.104).

O autor parece deixar claro que pensamento e linguagem se encontram na palavra, “constituindo a chave para a compreensão da consciência humana” (Vygotsky, 1993, pg.132). A palavra desempenha um papel fundamental na evolução histórica da consciência como um todo, pois ela é “o microcosmo da consciência humana” (Vygotsky, 1993, pg.132).

Sabemos que houve transformações no pensamento de Vygotsky em relação à linguagem, ou seja, inicialmente, esta era vista como instrumento, estímulo auxiliar, estímulo-meio, noções essas que se baseavam, em parte, na reflexologia da época (Góes, 1994). Em seguida, as idéias de estímulo-resposta e recurso semiótico auxiliar vão sendo substituídas pela noção de mediação. Assim, “as mudanças ficam marcadas em proposições que tomam a linguagem como instância de significação, na relação do homem com outros homens e com as coisas, isto é, com a cultura” (Góes, 1994, pg.95).

Desse modo, a noção de linguagem como instrumento comunicativo ou cognitivo não dá conta da tese da mediação semiótica e, como já mencionado anteriormente, uma visão mais ampla é sugerida por Vygotsky com o objetivo de indicar o papel da palavra na formação da consciência. Essas diferentes proposições são também focalizadas por Behares (1997a) e Smolka (1995), com a indicação de um deslocamento da linguagem para um lugar teórico de centralidade, principalmente nos últimos textos sobre pensamento e linguagem (Vygotsky, 1993).

Partindo deste quadro teórico a respeito da linguagem, como encarar o processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança surda? Se a linguagem exerce um papel mediador na relação com o mundo e fundante na construção da subjetividade, como se dará a construção das funções psicológicas superiores, uma vez que as nossas crianças fazem (ou podem fazer) uso predominante de uma língua não utilizada por muitos de seus “outros sociais”?

Esses questionamentos representam uma pequena parte das inúmeras dúvidas e questões que ainda temos em relação à educação da criança surda.

Apontando o papel da linguagem no processo de interação e na própria formação da consciência, Vygotsky nos leva a crer que a criança surda encontra-se por demais prejudicada, em função das insuficientes oportunidades oferecidas pelo grupo social e, em termos da experiência escolar, em função do fato de que professor e aluno não partilham a mesma linguagem. (Análises críticas das implicações dos problemas dialógicos nas interações professor ouvinte-aluno surdo podem ser encontradas em Góes, 1996; Lacerda, 1996; e Souza, 1996a).

Não podemos negar que o desenvolvimento da criança surda estará, com certeza, comprometido, dependendo, entre outras coisas, da condução que se der às suas experiências de linguagem. E nos textos apresentados em “Fundamentos de Defectologia” (Vygotsky, 1989a), encontraremos mudanças em sua maneira de pensar o desenvolvimento da criança surda, que vêm em conseqüência do seu contato com esses sujeitos em situações de aprendizagem.

Inicialmente, no texto produzido em 1925 (“Princípios de educação social para crianças surdas”), o autor apresenta-se favorável à oralização como sendo básica para que o surdo possa abandonar a “mímica” (denominação então corrente para a língua de sinais), uma vez que esta se apresenta como um recurso mais fácil para ele. Ao mesmo tempo, Vygotsky parecia contrário às técnicas de oralização utilizadas na época, considerando-as como geradoras de uma “fala morta” (idéia que aparece, também, no texto sobre a pré-história da escrita - Vygotsky, 1984).

No texto produzido em 1931 intitulado “O coletivo como fator no desenvolvimento da criança anormal” (Vygotsky, 1989a) o autor propõe o que denomina de poliglossia, ou seja, a utilização de múltiplos recursos para que o surdo tenha acesso à linguagem. A mudança de análise consiste no fato de que a oralização parece não mais prevalecer como objetivo central.

Entre os múltiplos recursos apontados, o autor salienta a importância da “mímica” e da linguagem escrita no processo de desenvolvimento da criança surda. A “mímica” não se constitui como um inimigo mas como um aliado no acesso à linguagem falada e aos conhecimentos sistematizados. “A mímica é uma linguagem verdadeira em toda riqueza de sua importância funcional e a pronúncia oral das palavras formadas artificialmente está desprovida de sua riqueza vital e é somente uma cópia sem vida da linguagem viva” (Vygotsky, 1989a pg.190).

Ainda nos textos sobre “Fundamentos da Defectologia”, as discussões sobre a educação especial enfatizam que o relevante para uma proposta pedagógica são as potencialidades da criança e não o que lhe falta, ou sua deficiência. A preocupação é com o funcionamento emergente, numa visão prospectiva. A educação deve ser a mesma, no que se refere a metas e objetivos, tanto para as crianças consideradas normais como para as que possuem alguma deficiência.

Em razão dessa visão crítica de deficiência e educação especial, a criança passa a ser encarada não como um indivíduo com possibilidades a menos, mas com possibilidades diferentes, abandonando-se o caráter clínico e propondo-se uma educação voltada para a inserção social mais efetiva.

A clínica, preocupada em medir e classificar, leva a um trabalho estático, lento e com baixas expectativas em relação à criança. A proposta educacional organizada a partir dessa visão clínica acaba não levando em conta a dinâmica implicada no desenvolvimento da criança que apresenta alguma dificuldade.

Para Vygotsky, não existe uma psicologia específica para os casos de deficiência; existem particularidades que deverão ser estudadas na investigação do desenvolvimento e levadas em conta no processo educacional das crianças. Também das idéias do autor, depreende-se que o professor que trabalha com crianças com alguma deficiência deverá estar planejando e atuando sempre sobre a “zona de desenvolvimento proximal” de seus alunos, isto é, propiciando um contexto de construções em que as funções que se encontram emergentes (ou que estão para se tornar desenvolvimento efetivo num futuro próximo) tornem-se consolidadas.

A noção de plasticidade, aplicável a qualquer ser humano, fundamenta essas teses sobre os processos de indivíduos com alguma deficiência. O organismo pode suprir a falta de certas funções buscando novos caminhos de adaptação, ou seja, o organismo é flexível a ponto de buscar mecanismos compensatórios. Transpondo essa proposição do âmbito orgânico para o âmbito dos processos sociopsicológicos, o autor sugere que as possibilidades de compensação dependem da inserção na atividade coletiva e das oportunidades de um desenvolvimento semiótico, mesmo que propiciado por caminhos não típicos (como é o caso da linguagem de sinais dos surdos).

Os processos compensatórios, no caso de deficiências sensoriais, não correspondem à simples substituição de um órgão do sentido por outro (no caso da surdez, pela visão), mas é a partir da linguagem que ocorre a compensação, pelas relações inter-individuais na atividade coletiva. A questão não é meramente sensorial e, em relação ao surdo, podemos dizer que ele irá construir significado a partir de uma linguagem essencialmente visual, que se constitui em um meio eficiente para uma leitura de mundo. Por isso, é provável que o seu recorte seja outro devido ao fato de fazer uso de diferentes recursos.

Essa plasticidade do funcionamento humano nos leva a crer que as leis de desenvolvimento são praticamente as mesmas, tanto para as crianças que possuem alguma deficiência como para as que não possuem. O que nos mostra que a presença de algum déficit não significa uma patologia mas a necessidade de condições peculiares para seu desenvolvimento. “Para o pedagogo é muito importante conhecer a peculiaridade do caminho pelo qual ele deve conduzir a criança. A lei da transformação do ‘menos’ da deficiência para o ‘mais’ da compensação proporciona a chave para chegar a essa peculiaridade” (Vygotsky, 1989a pg.7).

Nesta perspectiva, a educação especial, assim como a educação do surdo, deve ser vista como uma questão social, pois o indivíduo, ao nascer, é inserido nas relações sociais que se darão na linguagem. Daí a dificuldade das crianças surdas (que, em sua maioria, são de lares de ouvintes), uma vez que a língua falada depende da audição.

Torna-se crucial, portanto, que o surdo tenha acesso a experiências com uma língua de sinais, para que haja condições de interação, ou seja, de expansão das relações interpessoais e, conseqüentemente, de favorecimento para a construção da subjetividade.

Esta visão nos aponta para o fato de que as dificuldades que a criança surda possa ter no decorrer do seu processo de desenvolvimento não parecem inerentes à surdez, mas relativas às condições que o meio e o grupo social oferecem.

Temos, então, um deslocamento da teoria, que recusa a análise do sujeito individual e põe a ênfase no meio social, para a compreensão das limitações ou potenciais para o desenvolvimento.

Segundo Góes (1996), esse deslocamento conceitual é de total importância, pois, “quando se trata de uma visão de sujeito psicológico como ‘organismo’ que interage com o meio (ou se adapta a este), a atenção é predominantemente posta no deficiente auditivo, em sua deficiência orgânica. Porém, quando o sujeito psicológico é concebido em sua constituição nas relações sociais, o foco se desloca para a pessoa surda enquanto participante da cultura” (pg.38).

É a partir daí que me interessa, também, destacar alguns aspectos do pensamento de Bakhtin que podem ser articulados à teoria sócio-histórica e que nos trazem mais algumas reflexões no que diz respeito à linguagem e à subjetividade.

Considerarei, aqui, alguns aspectos da teoria bakhtiniana a respeito da linguagem, tendo como propósito repensar a prática pedagógica a partir dessas reflexões e derivar considerações sobre o importante papel da língua de sinais neste contexto.

Contrapondo-se às idéias vigentes, em sua época, Bakhtin estabelece um marco na lingüística ao apresentar uma nova concepção da linguagem. Infelizmente, tivemos acesso aos seus estudos somente cinqüenta anos após a sua produção (o que também ocorreu com os trabalhos de Vygotsky).

Bakhtin parece propor um teoria mais abrangente que as de outros autores de sua época, a respeito da linguagem, levando em conta os aspectos históricos, sociais e culturais em que o sujeito está inserido. Ou seja, para esse autor, não é viável considerar a linguagem fora desses aspectos. E muito claramente contrapõe-se à corrente filosóficolingüística do objetivismo abstrato, elegendo Saussure como um de seus interlocutores mais importantes nesse debate.

Para Bakhtin (1929/1995), as bases do objetivismo abstrato derivam do estudo das categorias provenientes da palavra estrangeira e, tanto a filosofia da linguagem como a lingüística ainda não haviam compreendido o forte papel ideológico da palavra estrangeira tornando-se escravizadas por ela. O autor nos mostra que tal corrente está voltada para o aspecto normativo e estável da linguagem e que esta se apresenta como um produto acabado, que se transmite de geração a geração. Ademais, declara como um grave erro do objetivismo abstrato salientar o fator da unicidade da palavra em detrimento da pluralidade de suas significações, assim como considerar que os diferentes contextos em que aparece uma palavra qualquer estão num único e mesmo plano.

Contrariando o objetivismo abstrato, Bakhtin (1929/1995) afirma que a língua não é um conjunto de formas e regras estáticas. Segundo ele, “esse sistema não pode servir de base para a compreensão e explicação dos fatos lingüísticos enquanto fatos vivos e em evolução. Ao contrário, ele nos distancia da realidade evolutiva e viva da língua e de suas funções sociais, (...) na base dos fundamentos teóricos do objetivismo abstrato, estão as premissas de uma visão do mundo racionalista e mecanicista, as menos favoráveis a uma concepção correta da história; ora, a língua é um fenômeno puramente histórico” (pg.108).

Além de tecer críticas ao objetivismo abstrato, Bakhtin questiona também outra corrente filosófico-lingüística, a do subjetivismo individualista, argumentando que esta não vai tocar de perto a natureza da linguagem porque, ao contrário da primeira, leva somente em conta a fala, considerando o ato de fala como individual e tentando explicá-lo com base em processos relativos à vida psíquica do sujeito falante.

A partir dessas críticas, Bakhtin formula seu próprio ponto de vista em relação à língua, propondo o seguinte: a) a língua enquanto sistema estável de regras é apenas uma abstração científica e esta não dá conta da realidade concreta da língua; b) a língua constitui um processo de evolução contínuo, que se realiza através da interação social dos locutores; c) a criatividade da língua não pode ser compreendida independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se ligam.

Diferentemente de Saussure, Bakhtin não faz a separação entre língua e fala, entre social e individual, porque o sujeito constitui-se socialmente numa relação ativa com o meio social. O que conta realmente em sua concepção sobre a língua é o contexto, o momento histórico, os valores ideológicos e principalmente a interação verbal.

Não é mais a oração ou a palavra a unidade de análise da linguagem, mas é o enunciado que configura a “unidade real da comunicação verbal”.

Nessa visão teórica, a língua não está pronta, não consiste num sistema acabado nem tampouco transparente. Ela é confusa e desordenada e, segundo Stam (1992), “um contínuo processo de vir a ser. Os indivíduos não recebem uma língua pronta; (...) é através da linguagem que eles se tornam conscientes e começam a agir sobre o mundo, com e contra os outros” (pg.32).

Em decorrência dessa concepção de linguagem, a visão de sujeito também se modifica, pois, para Bakhtin, assim como para Vygotsky, o espaço social é de extrema importância: ao nascer, o indivíduo é inserido no fluxo sociocultural já existente e que se prolonga ao longo de sua história. Assim, no que se refere à criança, devemos assumir que seu desenvolvimento se dá na troca com interlocutores, uma vez que sua experiência verbal evolui em íntima relação com os enunciados do outro.

A partir dessas considerações, faz-se necessário rever a prática pedagógica em relação à criança surda, e com certeza grandes mudanças ainda deverão ocorrer, principalmente no que se refere ao ensino da língua (seja de sinais ou portuguesa) e à concepção do sujeito surdo.

O sujeito não será considerado como uma tábula rasa, mas sempre responsivo ao meio e à interação com o outro: “o desejo de tornar seu discurso inteligível é apenas um elemento abstrato da intenção discursiva em seu todo. O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência dos enunciados anteriores” (Bakhtin, 1952-1953/1992, pg.291).

Bakhtin mostra a importância do enunciado no estudo da linguagem afirmando que: “ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida” (Bakhtin, 1952-1953/1992, pg.282).

Se esse vínculo entre a língua e a vida é tão forte como nos diz o autor, afirmando que através dos enunciados concretos a língua penetra na vida e vice-versa, o que acontecerá à criança surda, que costuma ter experiências lingüísticas pobres? Daí a necessidade de repensarmos a educação dos surdos, propondo mudanças na sala de aula (como parte de mudanças mais amplas), pois encontramos ainda impregnada nas práticas pedagógicas uma concepção estruturalista da linguagem, o que se dá, muito provavelmente, como conseqüência de vários anos de aplicação de técnicas oralistas que visam ao aprendizado da língua.

Na verdade, podemos constatar que os professores que se deslocaram de uma prática oralista não mudaram substancialmente sua concepção de linguagem, em parte porque o discurso circulante não propicia uma reflexão sobre o tema, e continuam aplicando os mesmos métodos, com algumas modificações que pouco ou nada alteram o resultado. Como já apontamos anteriormente, a questão da surdez está em íntima relação com o uso efetivo da língua; por isso é necessário que os professores tenham oportunidade de discussão nessa área para compreender o que estão fazendo na sala de aula.

No caso da criança surda, temos a língua de sinais assumindo a mediação entre os interlocutores e fundando o processo de construção de conhecimento (como por exemplo, a escrita do português), tendo em vista que este não acontecerá fora da linguagem. “...não existe atividade mental sem expressão semiótica. (...) Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental”, que a modela e determina sua orientação (Bakhtin 1929/1995, pg.112)

Concebendo a linguagem como um sistema vivo, presente na história e no meio social, encontramo-nos, ainda, com inúmeros questionamentos em relação à surdez. Sabemos que as questões teóricas quanto à interdependência entre pensamento e linguagem não estão totalmente resolvidas e não podemos ser simplistas em relação à criança surda, considerando que a língua de sinais resolverá todos os problemas que encontramos na sala de aula (ver, a esse respeito, Góes, 1996, Souza, 1996a e Skliar, 1997).

Se, segundo Bakhtin, é a “expressão-enunciação que organiza a atividade mental”, o que ocorrerá, então, à criança surda filha de pais ouvintes que terá acesso à língua de sinais tardiamente? Estará ela defasada cognitivamente pelo não-contato com sua língua natural? Se estiver defasada, como se dará o processo de ensino-aprendizagem a partir da língua de sinais, mesmo que tardiamente? Estas são algumas indagações, além das que já fiz inicialmente, que acredito serem relevantes para uma discussão entre os professores com objetivo de propor mudanças reais e significativas no trabalho com a criança surda.

Os trabalhos de Souza (1996a) e Lacerda (1996) mostram que a situação em sala de aula é semelhante à lenda bíblica de Babel, pelo fato de professor e aluno não compartilharem a mesma língua, o que acarreta sérias conseqüências para o processo de construção de conhecimento. Portanto, a situação ensino-aprendizagem aparece, sem dúvida, comprometida e com inúmeras lacunas porque, como indica Souza (1997), essa linguagem não pode patrocinar reflexão sobre o mundo, o que cria uma limitação tanto das operações de ensinar como das de aprender.

As proposições de Vygotsky e Bakhtin nos impelem a pensar uma forte mudança na prática pedagógica, que não iremos conseguir de um ano para outro, porém que deve orientar-se pela importância do aprendizado da língua de sinais.

Para estender essa discussão, apresentarei, a seguir, um relato de aspectos de minha experiência em sala de aula. No decorrer desse relato, irei me reportar a diferentes abordagens educacionais e explorar aspectos das concepções de linguagem e suas conseqüências pedagógicas.

CAPÍTULO II

O Trabalho Educativo com Crianças Surdas: Problemas, Indagações e Perspectivas

Estou atuando com crianças e adolescentes surdos desde 1978, dentro de uma instituição que, até há pouco tempo (meados da década de 80), utilizava exclusivamente o método oralista, cujo principal objetivo é levar a criança à aquisição da fala. Para tanto, todo o trabalho feito enfatizava a produção de fala, sendo tolerados apenas os gestos chamados naturais, e proibidos os sinais da chamada “linguagem de sinais” ou “mímica”.

O método oralista visa a oralização da criança surda através do treino de fala e de técnicas que propiciem o aproveitamento do resíduo auditivo. Sobre essa base são programados os esforços para a aprendizagem da leitura e da escrita, bem como dos conhecimentos sistematizados previstos no delineamento do currículo.

A concepção de linguagem que subjaz a essa orientação parece fortemente arraigada no estruturalismo, que assume a linguagem enquanto um código finito e estruturado, do qual o indivíduo se apropria. Não há, portanto, por parte dos profissionais que atuam segundo esse método, uma preocupação com aspectos fundamentais da linguagem: seu papel na estruturação do pensamento enquanto ação sobre o mundo e seu aspecto dialógico enquanto ação sobre o outro.

O oralismo foi sistematizado por Heinicke, por volta de 1750, e a concepção de linguagem dentro dessa abordagem manteve-se, basicamente, a mesma até hoje. No método oralista a linguagem é concebida como um código de regras estáveis que tem na fala precedência histórica e na escrita sua via de manifestação mais importante. Os gestos ou sinais são considerados acessórios e, do ponto de vista simbólico, dependentes da fala e/ou inferiores a ela (Souza, 1996a).

Essa corrente educacional foi a que mais tempo perdurou no trabalho com a criança surda. Foi fortemente estabelecida no Congresso de Milão, em 1880, e persistiu como corrente predominante até há pouco tempo em vários países, inclusive no Brasil. Continua existindo seja como proposta, seja como resíduo que impregna outras orientações. Sabemos que os modelos coexistem, e a concepção oralista ainda se faz presente, mesmo entre os profissionais que alegam assumir outras diretrizes.

O método oralista concebe a surdez como uma doença que deve ser erradicada e, para tanto, são fundamentais o uso da prótese auditiva e o trabalho sobre o resíduo auditivo, mesmo que este seja mínimo (como nos casos de surdez profunda). Isto porque a ênfase na oralização só é possível a partir do treino de fala e das potencialidades auditivas da criança. Portanto, todos os esforços estão voltados para que as crianças alcancem a normalidade e se integrem à comunidade ouvinte; conseqüentemente, qualquer contato com a língua de sinais será um obstáculo nesse processo de oralização.

Em nossa instituição utilizávamos, em nome do oralismo, técnicas associacionistas no ensino de língua, inclusive com o apoio em métodos audiovisuais que focalizavam um trabalho de fala, nada relacionado com a realidade das crianças.

Assim, a ênfase estava centrada na oralização da criança a qualquer preço, e esta era entendida como um pré-requisito para a sua alfabetização, ou seja, a leitura-escrita deveria ser posterior a um certo nível de capacidade de uso da fala.

Nessa abordagem, a preocupação com as técnicas de pronúncia e a qualidade de voz é tal que os professores oralistas acabam não fazendo um uso efetivo da linguagem falada e o resultado “é a produção de uma fala morta” (Vygotsky, 1984, pg.119). Preocupados com o ensino da língua oral de forma terapêutica, acabam por desconsiderar o objetivo de transmissão dos conteúdos culturalmente relevantes.

Qual seria, então, a concepção de surdez e de surdo proposta pelo método oralista? Segundo Skliar (1997), o oralismo representa as idéias do modelo clínico-terapêutico, o qual impõe uma “visão estritamente relacionada com a patologia, com o déficit biológico, com a surdez do ouvido, e se traduziu educativamente em estratégias e recursos de índole reparadora e corretiva. A partir desta visão a surdez afetaria de um modo direto a competência lingüística das crianças surdas, estabelecendo assim uma equivocada identidade entre a linguagem e a língua oral ” (pg. 111). O autor argumenta, ainda, que existe um momento exato na história em que a surdez é retirada do âmbito escolar, pedagógico, passando a transitar pelo campo da medicina, de acordo com um processo denominado por alguns autores (Sanchez, 1990 e Lane, 1992) como a medicalização da surdez, que significa “orientar toda a atenção à cura do problema auditivo, à correção de defeitos da fala, ao treinamento de certas habilidades menores, como a leitura labial e a articulação, mais que a interiorização de instrumentos culturais significativos, como a língua de sinais” (pg.111). E o oralismo supõe, além disso, como já indicado, a existência de uma dependência unívoca entre a eficiência ou eficácia oral e o desenvolvimento cognitivo, como se este estivesse condicionado à maior ou menor capacidade da criança surda sobre a língua oral.

Behares (1993) lembra que o oralismo entrou em crise, na maioria dos países do mundo, em relação aos seus objetivos porque estes não têm sido alcançados pela maior parte das populações surdas infantis, ou seja, o alcance de habilidades lingüísticas orais é sempre muito relativo e em muitos casos mínimo. O autor afirma que “não é muito difícil compreender que o oralismo entrava seriamente o desenvolvimento curricular e priva a criança surda filha de pais ouvintes do exercício de uma língua natural, que favoreça, por sua vez, seu processo identificatório e de auto-estima e seu acesso imediato à informação” (pg.35).

Em minha atuação, passei a repensar e criticar essa forma de trabalho, considerando as dificuldades de fala e de integração dos alunos no ensino regular. Entretanto, não me posiciono contra esforços de oralização da criança surda, mas, sim, contra a proposta em si, e seus pressupostos e diretrizes: a concepção de linguagem que é assumida; a maximização da deficiência; o ensino de uma linguagem oral totalmente artificial; o “treinar” a criança a produzir frases que passam a ser decoradas e que nada têm a ver com a sua realidade, frases que, inclusive, dificilmente são utilizadas pelos ouvintes em situações discursivas efetivas.

Por essa razão, entendo como necessário que o profissional atuante nessa área faça um séria reflexão a respeito das diferentes concepções de linguagem para, a partir daí, poder definir e transformar a sua prática.

Por volta de 1986, nossa instituição, ainda apoiada no oralismo, começa a sofrer mudanças. Surgem alguns questionamentos a respeito da eficiência do método e do que poderia estar “não dando certo”, uma vez que muitas crianças que passavam pela instituição não estavam conseguindo se oralizar, sendo, então, encaminhadas para outros locais. Como poderíamos estar utilizando técnicas de ensino de segunda língua
se as crianças não tinham domínio de uma primeira?

Minha pesquisa de mestrado surgiu exatamente naquele momento em que ocorria a transição do oralismo para a orientação chamada “comunicação total”, a qual estava chegando ao Brasil e trazendo algumas mudanças no trabalho com a criança surda. Meus
questionamentos estavam voltados, naquela época, exatamente para a maneira como a linguagem era concebida pelo oralismo.

Pesquisas sobre o processo de aquisição da linguagem por crianças ouvintes, dentro de uma visão sociointeracionista, mostravam que a linguagem se constitui na interação, cabendo ao outro um papel fundamental neste processo (ver, por ex., De Lemos, 1982, e Lier, 1983). Já existiam, inclusive, estudos em andamento sobre a aquisição da linguagem por crianças surdas, dentro dessa mesma abordagem (Pereira, 1983).

O contato com crianças surdas mostrava que a sua expressão natural não é e nem pode ser a oral, mas sim a gestual. Dessa forma, não era possível proibir o uso de gestos, como propunham os adeptos do oralismo, que o faziam na crença de que, sendo estes “mais fáceis” do que o uso da linguagem oral, acomodariam a criança surda, tornando-a relapsa no seu esforço para produzir a fala. É importante considerar, também, que a própria criança ouvinte utiliza gestos desde cedo para se comunicar (ver Vygotsky, 1984; e Lier, 1983) e que o uso de gestos não termina com a infância. Nós, adultos ouvintes, continuamos a utilizá-los na comunicação de forma marcante e significativa. Ocorre que esse uso significativo da gestualidade é crucial para a criança surda, já que configura o âmbito em que ela pode desenvolver suas capacidades linguísticas. Portanto, proibir e recusar o uso de sinais seria não aceitar a interação com a criança surda ou, até mesmo, não aceitar a própria criança.

Estas reflexões se constituíram na premissa para a entrada do sinal na sala de aula, pois ainda não dominávamos o uso da língua de sinais, embora já houvesse autores trabalhando nessa área defendendo a tese de que os surdos deviam ser considerados como minoria lingüística (Mottez, 1981). Ao mesmo tempo, iniciavam-se pesquisas com o propósito de descrever a língua brasileira de sinais (Ferreira Brito, 1983).

E foi nesse momento, de insatisfação com os resultados obtidos na educação oralista, que me envolvi no processo de incorporação da “comunicação total”. O que vinha a ser, então, essa maneira de pensar a educação do surdo? A comunicação total foi proposta como uma filosofia e não um método, e seu objetivo era oferecer à criança surda todas as oportunidades de comunicação, seja através da fala, dos gestos, da expressão corporal, dos sinais, do desenho ou da leitura e escrita

“Acrescente-se, no entanto, que, em razão de seus estatutos próprios, esta filosofia educacional estará incluindo, nesses programas, uma suficiente liberdade na prática de quaisquer estratégias, que permitam o resgate de comunicações, total ou parcialmente, bloqueadas” (Ciccone, 1996, pg.7, grifo meu).

A comunicação total não vê a língua de sinais como língua “materna” para todos os surdos, dando ênfase ao português e considerando um risco projetos que se propõem a “tratar desde sempre como estrangeira a língua de todos os familiares ouvintes de nossos menores surdos” (Ciccone, 1996).

Essa corrente parece abrir um leque de possibilidades para que a comunicação se estabeleça, não importando a estratégia a ser utilizada; isto é, vale tudo em nome da habilidade comunicativa (que facilitaria a compreensão e o acesso à informação), o que decorre de uma construção teórica muito pouco consistente, ou mesmo híbrida, sobre a linguagem e seu funcionamento.

Davis (1974) discute definições de vários autores, destacando que a comunicação total consiste no direito de toda criança aprender e fazer uso de todas as formas possíveis de comunicação para desenvolver a capacidade lingüística, o que inclui: gestos criados pela criança, sinais convencionais da fala, datilologia, leitura labial, e escrita.

E, ainda, Davis (1974) afirma: “Portanto, a Comunicação Total existe em uma sala de aula ou em casa sempre quando a fala e alguma outra forma de comunicação manual ocorrem simultaneamente. Crianças usam amplificação adequada às suas próprias necessidades. (...) Professores, pais, e estudantes utilizam tanto a comunicação oral quanto a manual” (pg.2, tradução minha).

Sendo assim, essa corrente educacional abre um grande espaço para o uso de sinais e, em nossa realidade, para a Língua Brasileira de Sinais, porém privilegia o Português, com a justificativa de que esta língua é de domínio da maioria e de que o surdo deve garantir sua integração social por esse caminho.

Podemos notar, então, que se trata de uma proposta que tem suas origens no oralismo, dado que o fato de incentivar o acesso a um maior número possível de códigos é para garantir o acesso à língua portuguesa, pois “o objetivo é fornecer à criança a possibilidade de desenvolver uma comunicação real com os seus pais e professores, para que possa construir o seu mundo interno” (Moura, 1993, pg.1).

Retornando à história da instituição, por volta de 1988 iniciamos oficialmente o trabalho a partir da Comunicação Total. Com tal orientação, passamos a aceitar, no dia-a-dia, os sinais utilizados pela comunidade de surdos de nossa região.

Este momento foi muito significativo, principalmente no meu caso, que, pelo contato com os adolescentes, já fazia uso dos sinais. Passei, então, a utilizá-los “oficialmente” na sala de aula. Desse modo, a comunicação era possível, ou, pelo menos, podíamos conversar com os alunos sobre qualquer assunto sem preocupação em não termos recursos lingüísticos para tal. Essa era minha impressão, naquela fase de transição.

Os alunos, em geral, chegavam à instituição com uma linguagem muito restrita construída com os familiares próximos. Essa linguagem foi objeto de investigação de Tervoort (1961) que a denominou de “simbolismo esotérico” (uma discussão mais atual sobre o tema pode ser encontrada em Behares, 1995). Todos os nossos alunos eram filhos de pais ouvintes que não dominavam a língua de sinais. Sendo assim, as crianças não falavam nem faziam uso sistematizado de sua gestualidade. A nossa preocupação maior era possibilitar um desenvolvimento “normal” do processo de aquisição de linguagem e do pensamento lógicomatemático nessas crianças.

E a comunicação total nos abria um leque de opções para o uso de estratégias comunicativas com a criança surda, constituindo-se em uma tábua de salvação para as dificuldades de interação em sala de aula.

Nessa mesma ocasião, eu já havia concluído o programa de mestrado em lingüística, e o contato com diferentes concepções sobre a linguagem me levou a uma nova postura de trabalho. A partir do uso de sinais na sala de aula, a linguagem passou a ser construída no dia a dia, a partir da interação, da partilha e da negociação criança/criança e professor/criança. Ficou claro que não se faz necessário oralizar para alfabetizar (ver Gesueli, 1988).

Como resultado complementar, minha pesquisa também mostrava que, a partir da produção escrita, a criança surda interessa-se pela fala, inclusive apresentando tentativas “espontâneas” de oralização (o que não era nada comum entre nossas crianças surdas que passavam pelo método oralista).

O contato com diferentes pesquisas na área da lingüística, principalmente com as novas concepções de linguagem que se desdobravam com base nos estudos de Bakhtin e na área de análise do discurso (Coudry, 1988, e Possenti, 1988), propiciou uma maior reflexão sobre as interações em sala de aula, levando-me à conclusão de que o estruturalismo não dava conta de minha prática e que outras questões estavam em jogo como, por exemplo, o contexto, o momento histórico e, principalmente, a construção conjunta de significados.

Essas reflexões sobre a linguagem, no âmbito da lingüística, trouxeram, conseqüentemente, novos caminhos para a alfabetização, que foram traçados também através de elaborações de outros campos, permitindo-me entender o processo de leitura-escrita não como a mera decodificação de letras em som mas a busca constante de significado (ver, por exemplo, Goodman, 1982, e Luria, 1983), sendo as estratégias de decodificação, quando muito, meios auxiliares.

A comunicação total foi, então, uma alternativa para as crianças que não conseguiam caminhar no oralismo. Não só isso; trouxe-nos alternativas de diálogo, pois passamos a utilizar todos os recursos para nos comunicarmos, e os livros infantis puderam entrar para a sala de aula. A postura pedagógica também deixou de estar centrada na pessoa do professor como “dono do saber”. Por isso, a dificuldade não era atribuída somente ao aluno, passando a ser também do professor por não dominar os recursos para se fazer entender.

Enfim, esta nova corrente nos parecia ser a “verdadeira solução” para todas as frustrações e dificuldades encontradas no oralismo. E pude observar que a produção escrita dos alunos também refletia essas mudanças, ou seja, as crianças passaram a utilizar na escrita todos os meios para se fazerem entender.

Com o decorrer dessa prática pedagógica (embora a comunicação total seja uma filosofia e não um método, ela implica uma prática educacional), fui percebendo que, apesar da interação professor-aluno parecer menos problemática que no oralismo, a comunicação era ainda muito difícil, tinha que ser construída paulatinamente, com muito esforço. Ademais, quando os alunos mudavam de professor, nem sempre este conseguia manter o jogo dialógico de imediato, o que demandava uma nova construção de possibilidades comunicativas.

Eu reconhecia que é necessário o convívio dos interlocutores e até certa familiaridade entre eles para que aconteça a interpretação efetiva, já que é preciso contar com recursos lingüísticos e a partilha de conhecimentos. Isso era um problema a ser enfrentado. Porém, a minha preocupação maior estava em saber como configurar as experiências de comunicação da criança. Fala, sinais, dramatização, expressões corporais e faciais eram os recursos que as crianças estavam utilizando para se comunicar. Isso faria parte da Língua de Sinais? E o chamado “português sinalizado”, o que seria? Ou todos esses recursos seriam uma forma de pidgin?

Inúmeras questões começaram a surgir a esse respeito. Principalmente, o que mais me preocupava era o seguinte: Qual era a língua “falada” pelos meus alunos? Provavelmente nenhuma língua natural.

Após, aproximadamente, dois anos de trabalho me foi possível perceber que os alunos ainda possuíam sérias dificuldades de comunicação e que não havia garantia de compreensão do que estava sendo dito, ou, pelo menos, de que havia partilha de conhecimentos.

Podemos encontrar em Harrison e colaboradores (1997) a seguinte afirmação: “com o passar do tempo, pode-se observar que a oralidade continuou sendo privilegiada pelos profissionais que se intitulavam adeptos da Comunicação Total. (...) sob a denominação de Comunicação Total há, no Brasil, as mais diversas concepções de trabalho com o surdo, que variam desde a proposta filosófica original, até as que se utilizam dos Sinais apenas como apoio para desenvolvimento da oralidade” (pg.5).

Existem, então, algumas críticas a essa corrente que abrange versões com sistemas combinados, comunicação bimodal ou uso concomitante das línguas oral e de sinais. “Como a língua oral e a Língua de Sinais têm características totalmente diferentes uma da outra, a segunda acaba sendo ‘recortada’ e ‘montada’ na ordem do português falado, sendo, desta forma, descaracterizada e desrespeitada” (Harrison, 1997, pg.5). Daí podermos afirmar que a comunicação total acaba por privilegiar a língua oral, porque a língua de sinais não se apresenta de forma efetiva, sendo os sinais utilizados apenas como suporte para se chegar à oralização.

Por volta de 1989-90 os educadores de nossa instituição começaram a deparar com uma nova corrente na educação do surdo, a educação bilíngüe, que privilegia a língua de sinais, ou melhor, a considera como língua natural.

Durante o II Encontro Latino Americano de Investigadores em Língua de Sinais realizado em Mérida – Venezuela, em outubro de 1988, pude de fa

Bibliografia

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Bakhtin, M. Os gêneros do discurso. In: Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. Tradução do francês de Maria Hermantino Galvão Gomes Pereira. 1a ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1992 (texto escrito em russo entre 1952-1953).

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