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Obstáculos culturais invisíveis considerando a Libras como segunda Língua para ouvintes
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Publicado em 2017
Revista Virtual de Cultura Surda e Diversidade, v. 1, p. 1-10
Maria Cristina Pires Pereira
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

Na área dos Estudos Surdos é comum a menção à cultura surda, porém a ideia dos surdos terem uma cultura nem sempre é aceita na sociedade em geral. Na Linguística e na preparação dos educadores da linguagem, muitas pessoas nem mesmo refletiram sobre estas questões. Esta negação da cultura surda, por desconhecimento, ou preconceito, não admite as consequências dos atritos advindos do contato entre culturas diferentes, como são os surdos e os ouvintes, no ambiente de ensino-aprendizagem de línguas.

Podemos entender cultura e, a partir daí, a cultura surda como:

a maneira como os grupos sociais representam a si mesmos e aos outros por meio de produções materiais, sejam trabalhos artísticos, literatura, instituições sociais ou artefatos para a vida diária ou as atitudes, crenças, modos de pensar, se comportar e relembrar compartilhados por uma determinada comunidade (KRAMSCH, 1996, p. 02). 1

Neste texto vou tratar especificamente de como os ouvintes se relacionam com a Língua Brasileira de Sinais (Libras), como segunda língua, e reflexões sobre a pouca proficiência linguística manifestada por muitos ouvintes que trabalham e convivem com pessoas surdas durante muitos anos.

Esta questão é relevante no momento em que a Língua de Sinais Brasileira (Libras) vem expandindo suas possibilidades e aceitação desde o Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005 que prevê, em seu artigo terceiro, que:

A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

O decreto também torna a Libras disciplina optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional.

Historicamente a Libras iniciou a ser ensinada para ouvintes, principalmente para aqueles que queriam se “comunicar” com as pessoas surdas, em ambientes religiosos e nos órgãos congregadores da comunidade surda (federação, associações, clubes). Com este aval legal, que não só reconhece o caráter linguístico da Libras, equiparando-a com qualquer outra língua de modalidade oral-auditiva, mas também estabelece diretrizes para o seu ensino, a preocupação em seu estudo e sistematização como segunda língua assume um caráter urgente.

Atuei como professora ou como intérprete em escolas de surdos durante vários anos e percebi que muitos familiares, professores ou profissionais ligados à escola não tinham uma interação linguística eficiente com as pessoas surdas, necessitando muitas vezes utilizar práticas bimodais simultâneas ou o português sinalizado 2 para conseguir estabelecer uma conversa. Atualmente, em cursos livres de Libras, é comum que várias pessoas ouvintes terminarem o módulo avançado e considerarem-se aptas a seguirem a carreira de intérpretes, quando, na verdade, continuam com os mesmos problemas de bimodalismo simultâneo e português sinalizado, além de outros.

Por que isto acontece? O input recebido não seria suficiente e de boa qualidade, já que nas escolas o ambiente é circundado por surdos sinalizadores, crianças e adultos, e nos cursos livres, em geral, o modelo é uma pessoa surda adulta?

A partir daqui, me aventuro a fazer uma análise alternativa desta problemática, baseada, na temática de língua e cultura interligadas e interdependentes, pois,

cada vez mais é aceito, em diferentes campos de estudo como a antropologia cultural, aquisição de linguagem e psicologia do desenvolvimento que os processos de aprendizagem, e de um modo geral a cognição, têm relação com interação social (MONDADA; DOEHLER, 2004).

Existem diversas concepções que, de forma nem sempre registrada, são comuns na comunidade ouvinte que não é familiarizada com a Libras e com as pessoas surdas. Estas concepções nos auxiliam a vislumbrar como é a relação entre os processos de aprendizagem e a interação social na área da língua de sinais.

Percepções empíricas circulantes

Como as pessoas surdas, e sua língua, são vistas pela maioria da sociedade ouvinte? É possível perceber a concepção reinante sobre as pessoas surdas por meio dos termos que são utilizados para se referir a elas e a suas características, tais como:

  1. “Mudinhos” = sem voz
    O uso do diminutivo, neste caso, em vez de servir como ênfase de carinho, serve como, realmente, diminuidor, infantilizando e imbecilizando os cidadãos surdos.
  2. “Surdos-mudos” = alguém tem que falar por eles
    Uma das grandes reivindicações da comunidade surda politizada é abolir este “mudos”, pois mudo é quem tem problemas no aparelho fonoarticulador. O fato de terem voz e produzirem sons vocais, mesmo que nem sempre inteligíveis, não os caracteriza como mudos, além da mudez ter uma forte relação com não ter voz, não poder se manifestar. E eles podem, por meio da língua de sinais.
  3. Deficientes = representação social de falta de audição
    Ser deficiente é ter um déficit, uma falta, um defeito. Olhando mais atentamente a maioria dos seres humanos têm algo que lhes falta. Todas as pessoas que usam óculos poderiam ser taxadas de deficientes visuais e por que não o são? Todas as pessoas que têm pouca melanina poderiam ser tidas como “deficientes melanínicas”, mas, neste caso, a pele clara é valorizada socialmente. Por que não olhar e ver um ser humano em vez de ver o que se supõe defeito?
  4. Silêncio = estereótipo visto do ponto de vista da cultura hegemônica
    Várias organizações feitas para surdos têm em seu nome a palavra silêncio. Silêncio do ponto de vista de quem? Mesmo os ouvintes que não só conhecem, mas que se apropriaram da língua de sinais como mais uma língua, não conseguem conceber a surdez e a língua de sinais como silenciosas. Uma sala cheia de pessoas conversando em língua de sinais, apesar de silenciosa do ponto de vista do som (nem sempre, pois vários barulhinhos são emitidos nas conversas dos surdos), é extremamente ruidosa se observarmos as interações que estão se passando: fofocas, contações de histórias, anúncios, desabafos, saudações e toda a gama infinita de possibilidades de uma língua.
    Percebe-se que o que está implícito em todas as denominações é a falta: eles não falam, não são autônomos, não escutam, não produzem sons vocais. O que é interessante é que muitas representações que são feitas das pessoas surdas são as mesmas que os povos colonizadores fizeram (e fazem) dos povos colonizados: limitados intelectualmente, embotados emocionalmente e incompreensíveis por serem primitivos aos olhos dos dominadores (LANE, 1992).
    E a língua de sinais, como é representada?
  5. Mímica ou pantomima = sem estatuto linguístico
    O desconhecimento do estatuto linguístico da Libras ocorre, não só no senso comum mas, infelizmente, nos meios acadêmicos também. Os mitos ligados à língua de sinais persistem e muitas pessoas ainda acreditam que a língua de sinais é universal, que é incapaz de expressar conceitos abstratos, que é derivada de um sistema de comunicação gestual espontâneo dos ouvintes, etc. (QUADROS; KARNOPP, 2004).
  6. Assim como os surdos, a Libras é considerada uma língua deficiente = faltam preposições, verbos, léxico limitado etc.
    Nesta concepção, a ênfase na falta de audição, a língua de sinais é considerada um arremedo de língua, apenas servindo para propósitos concretos e imediatos. Sua gramática espacial é constantemente corrompida por ouvintes que não conseguindo ser proficientes inserem os itens gramaticais da língua de sinais na estrutura da língua portuguesa, criando algo que não é uma língua nem outra e ainda levam este tipo de “língua deformada” para os ambientes escolares.
  7. Ferramenta para os surdos aprenderem a língua oral prestigiada.
    Em várias obras que, supostamente, defendem a língua de sinais, esta é apresentada como um apoio ao aprendizado da língua portuguesa. Portanto, nesta visão, aprender a Libras por si, para ser veículo de comunicação, exteriorizar o pensamento, estreitar laços afetivos e sociais e, até mesmo, exercer o poder não é levado a sério. Sua “utilidade” é justificada em nome de uma maior eficiência para aprender o Português, é uma ferramenta, é um meio e não um fim.
    A visão de menos valia do surdo é reforçada na imagem que se constrói de abnegado e nobre de quem trabalha com surdos. Quase sempre quando me identifico como Intérprete de Libras ou professora de surdos ouço comentários como estes: “tem alguém na família com surdez?”, “que missão nobre” ou “teu trabalho deve ser muito gratificante!”. Se duas pessoas ouvintes conversam entre si em Libras são alvo de um estranhamento pois, afinal, por que não falar a língua oral prestigiada em vez da “língua dos surdos”?

Considerações finais

Diante das barreiras encontradas por muitos ouvintes em aprender a Libras como segunda língua existem, é claro, as dificuldades inerentes ao aprendizado de qualquer segunda língua. Além disso, deveríamos considerar a diferença das modalidades gestual-visual (gramática espacial) e oral-auditiva (gramática sequencial e linear) que pode se tornar um fator de estranhamento inicial na aprendizagem. Outro fator a considerar é que o “aprendizado e o desenvolvimento ocorrem quando as pessoas participam nas atividades socioculturais de sua comunidade” (ROGOFF apud NORTON, 2001, p. 311), devendo os ouvintes ser integrados nas atividades da comunidade surda para entenderem e se sensibilizarem cultural e linguisticamente a uma realidade diversa da sua.
Não podemos desconsiderar, no entanto, que podem existir obstáculos invisíveis que impedem que a aprendizagem da Libras seja mais eficaz. Afirmação da identidade ouvinte diante de uma identidade considerada de menos valia e a resistência, mesmo que inconsciente, em aprender uma língua que não tem prestígio não devem ser descartadas pelos educadores da linguagem. Estes aspectos da cultura invisível que permeia os ambientes de aprendizagem de línguas devem ser levados em consideração e cuidadosamente tratados, pois se constituem, muitas vezes, em fatores que podem determinar o fracasso ou o afastamento do aprendiz.

As questões que devem nortear as práticas pedagógicas de ensino de Libras, para ouvintes, devem ser calcadas em reflexões sobre:

  • A quem se ensina? Os objetivos não são diferenciados de acordo com quem quer aprender? A perspectiva de familiares, de professores, de quem quer se tornar intérprete, de religiosos etc não deveria ser levada em conta ao elaborar um programa de aprendizado?
  • Para que se ensina? Quais os objetivos, intenções e quais os usos que os ouvintes pretendem fazer da língua de sinais?
  • Quais as concepções ideológicas subjacentes às representações de surdez que a maioria dos ouvintes têm como cultura invisível, ou seja, a quem os ouvintes estão falando quando se dirigem aos surdos, que lugar social é dado às pessoas surdas e à língua de sinais?

É necessário que seja dada uma atenção nos cursos de educadores da linguagem que irão trabalhar com a Libras, pois muitas vezes julgamos de uma forma superficial a competência social uns dos outros unicamente baseados no desempenho comunicativo. Além do mais, quando as práticas de interação diferem de um grupo para outro, provavelmente, acontecerão práticas hegemônicas de uma parte, provocando, por sua vez, reações de “práticas de resistência, que se interpõem como barreiras entre ensino e aprendizagem, mesmo diante do mais bem intencionado dos educadores” (GARCEZ, 2000, p. 509).

Buscar o porquê do fracasso de muitos ouvintes em se tornarem proficientes em Libras nestas questões culturais pode ser um fator que ajudará a qualificar a formação dos futuros educadores da linguagem e, também, a conscientizar sobre os conflitos ocultos, ou não, que existem e podem ser superados nas relações entre pessoas surdas e ouvintes.

Notas

GARCEZ, P. M. Cultura invisível e variação cultural na fala-em-interação social: o que os educadores da linguagem têm com isso. In: F. Indursky, & M. C. Campos, (orgs.) Discurso, Memória e Identidade. Porto Alegre: Editora Sagra, 2000. p. 495-516. (Coleção Ensaios, no. 15).

LANE, Harlan. A Máscara da Benevolência: a comunidade surda amordaçada. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.

KRAMSCH, C. Language and culture. Oxford: Oxford University Press. 1998.

KRAMSCH, C. The cultural component of language teaching. Disponível em http://www.spz.tu-darmstadt.de/projekt_ejournal/jg-01-2/beitrag/kramsch2.htm. Acesso em 03/04/17.

NORTON, B. Changing perspectives on good language learner. TESOL QUARTERLY, Vol. 35, nº 2, 307-321, 2001.

MONDADA, L.; DOEHLER S. P. Second Language Acquisition as Situated Practice: Task Accomplishment in the French Second Language Classroom. The Modern Language Journal 88 no4 501-18, 2004.

QUADROS, Ronice Müller de; KARNOPP, Lodenir B. Língua de Sinais Brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.

Bibliografia

1 As citações de texto original em inglês que aparecem aqui em português são traduções livres minhas.
2 Bimodalismo é caracterizado como oralizar e sinalizar ao mesmo tempo, ou seja, tentar falar duas línguas de modalidades diferentes simultaneamente. Português sinalizado é sinalizar com o léxico da Libras, porém na estrutura da língua portuguesa, inventando, inclusive, sinais para as palavras que não tenham correspondente direto nesta estrutura. O português sinalizado pode ocorrer com ou sem bimodalismo.

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