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A Tomada de Posição (Stance-Taking) na Interpretação Interlíngue de Língua de Sinais
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Publicado em 2016
Belas Infiéis, v. 5, n. 1, p.59-72
Maria Cristina Pires Pereira
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Resumo

A tomada de posição (stance-taking), embora estudada majoritariamente, em língua inglesa, é um item discursivo e interacional que influencia qualquer língua e, de uma forma especial, a interpretação interlíngue. Por meio de uma revisão bibliográfica, defino e sistematizo a tomada de posição, traçando paralelos desde as línguas orais até conseguirmos visualizar como esta se manifesta na interpretação de línguas de sinais.

Tomando posição

Tomando posição ste artigo surgiu de parte de minha tese de doutorado, na qual investiguei as Formas de Tratamento (FT) na interpretação da Língua Brasileira de Sinais (Libras) para a Língua Portuguesa Brasileira (PB) e, tornou-se mais um ponto a acrescentar no questionamento sobre a neutralidade, ainda ensinada em cursos de interpretação.

Trata-se de um trabalho de revisão bibliográfica que procura, não só investigar o fenômeno discursivo e interacional conhecido como stance ou stance-taking (posicionamento ou tomada de posição) mas, também, promover um diálogo com a interpretação interlíngue, neste estudo pontual, de língua de sinais.

A tomada de certas posições é associada ao posicionamento pessoal que assume papéis, social e identitário, à concepção que temos de nós mesmos em uma interação, às relações de poder etc. Esta perspectiva concebe as identidades sociais como construídas discursivamente, não fixas a priori. Por exemplo, podemos ser reconhecidos como professores seguros e experientes em uma instituição (universidade) e como alunos inseguros e iniciantes em outra (escola de línguas estrangeiras).

Embora bastante estudada, a tomada de posição tem a maioria de sua literatura limitada a elementos da língua inglesa (ENGLEBRETSON, 2007). De acordo com Kärkkäinen (2003), grande parte das pesquisas sobre a tomada de posição é relativa à modalidade epistêmica e foca em marcadores de posicionamento como “eu penso”, “dizem que…”, “parece que…”, “provavelmente”, dentre outros. Pesquisas recentes, entretanto, vêm mostrando que não são só as categorias tradicionais de marcadores de posicionamento que dão indícios das atitudes dos interlocutores, mas que a nossa linguagem rotineira, de alguma forma, sempre aponta para nossas posições subjetivas.

No esquema proposto por Du Bois (2007), temos o seguinte exemplo:

Falante Sujeito da Tomada de Posição Posicionamento/avaliação Objeto da Tomada de Posição
JAMIE: I
(eu)
like
(gosto)
this song
(desta canção)

Fonte: (DU BOIS, 2007, p.153)
Figura 1 - Diagrama representando as relações de avaliação e posicionamento entre o sujeito e o objeto da tomada de posição

A tomada de posição no discurso não pode ser definida somente por itens gramaticais ou lexicais, pois muito de nossa avaliação sobre o outro é manifestada por expressões prosódicas, proxêmicas, expressões faciais e expressões vocais manifestadas por interjeições no papel de marcadores discursivos (ver GARDNER, 2001). A tomada de posição é sempre avaliada e reavaliada em uma interação, seja pela aceitação tácita, por meio de nenhuma menção ao posicionamento tomado ou por expressões de aprovação (“também acho”, “aham”, “é”, “tá” ou meneios de cabeça e outras manifestações corporais) ou desaprovação (“não é bem assim”, “eu não acho”, “hum hum” etc.).

Este texto aborda a delimitação e caracterização do que é a tomada de posição e, em seguida, faço uma sistematização do que é e de suas variadas formas.

A Tomada de Posição (stance-taking)

As concepções de tomada de posição, na literatura, são bastante amplas e heterogêneas (JAFFE, 2009), mas a mais aceita é a que concebe a tomada de posição como um comportamento interacional e discursivo que evidencia “a expressão de estados psicológicos internos de um falante individual” (KÄRKKÄINEN, 2006, p. 700) com relação a um ponto de vista ou sentimentos sobre questões, eventos ou pessoas sobre as quais está falando.

O posicionamento é um ato público de um ator social, realizado dialogicamente, através de meios comunicativos abertos, de simultaneamente avaliar objetos, posicionar sujeitos (a si mesmo e a outros) e alinhar-se com outros sujeitos com relação a alguma dimensão saliente do campo sociocultural ii (DU BOIS, 2007, p.163).

Esta tomada de posição é relacionada a conceitos de avaliação, apreciação, afeto e, de modo especial, subjetividade. É uma atividade na qual os interlocutores mostram suas atitudes, posições e pontos de vista, por meio da interação, de uma forma intersubjetiva e dialógica (HADDINGTON, 2005). Esta subjetividade, que emerge da interação dialógica entre os interlocutores, refere-se

[…] ao fenômeno, no qual o falante, com suas atitudes e crenças, está presente nos enunciados que produz. Em outras palavras, em vez de simplesmente descrever ou apresentar uma afirmação objetiva de um evento ou estado de coisas, o falante representa um evento ou estado de coisas de uma perspectiva particular. iii (KÄRKKÄINEN, 2006, p.702).

Englebretson (2007, p.6) expõe cinco princípios conceituais da tomada de posição:

  • pode ocorrer em três níveis que, frequentemente, se sobrepõem: (1) ação física, (2) atitude/crença/avaliação pessoal e (3) moralidade social;
  • é pública, perceptível, interpretável e disponível à inspeção de outros;
  • é interacional e construída colaborativamente entre os participantes em relação a outros posicionamentos,
  • é indexificante, pois evoca aspectos de um quadro sociocultural mais amplo ou contextos físicos nos quais ocorre;
  • é consequencial, pois tomar uma posição leva a consequências reais para as pessoas ou instituições envolvidas na interação iv

A tomada de posição é, normalmente, dividida em três categorias: (1) epistêmica, que marca a demonstração de certezas, dúvidas, ponto de vista, imprecisão e limitação; (2) afetiva ou atitudinal, que trata das emoções, atitudes, estados de espírito e avaliações de si, do outro e da interação; e (3) estilística ou de modo, relativa ao estilo de fala (BIBER et al., 1999).

Dentre as várias funções da tomada de posição, podemos citar: polidez/proteção de face, construção do estatuto de autoridade (hierarquia) dos participantes, regulação de aspectos da interação (turnos) ou identificação do estado de alinhamento ou desalinhamento dos participantes em seus pontos de vista e objetivos conversacionais.

Embora alguns autores afirmem que “qualquer mudança no uso do pronome pode ser vista como uma tomada de posição, alterando a relação entre o falante, o interlocutor e o objeto v (MYERS; LAMPROPOULOU, 2012, p.1208), nesta mesma direção pode-se afirmar que não só os pronomes, mas qualquer alteração nas formas de tratamento (FT) pode modificar a atitude durante a interação e, no caso da interpretação interlíngue, por ser uma interação triádica, estas mudanças na tomada de posição se fazem sentir de modo ainda mais destacado.

Não há nada de neutro em referir-se a alguém. O português brasileiro (PB) oferece uma gama variada e instável de formas de tratamento (FT) que, além de demonstrar a primeira avaliação de quem enuncia, também é um sistema em franca mudança. Em interações que, antigamente, por exemplo, eram bem marcadas e requisitariam que o enunciador dissesse “o senhor/a senhora”, nos dias atuais temos uma maior flexibilidade e aceitação na utilização de outros termos, embora não seja consenso: uma pessoa pode sentir-se ofendida, por questões de idade ou hierarquia, em não ter um tratamento mais formal e distante. Se isto é um desafio em uma interação diádica, em uma situação de mediação interlíngue é bem mais difícil achar o ponto de equilíbrio.

Outra qualidade da tomada de posição é o seu caráter performático. Tomar uma posição discursiva é, também, assumir um personagem, como veremos a seguir.

Tomada de Posição Como Ação Performativa

Uma característica pronunciada da tomada de posição é o seu caráter performativo. Jaffe (2009) frisa a interconexão existente entre a tomada de posição, a teoria da performance e a sociolinguística da performance, afirmando que as identidades sociais são discursivamente construídas no decorrer do tempo por meio de posicionamentos tomados regularmente. Nosso posicionamento, alinhando-nos ou nos distanciando de nossos interlocutores, é fortemente influenciado por nossa plateia. Neste sentido, cada performance é o posicionamento do ator, diante de seus interlocutores e plateia, que leva em conta as avaliações feitas sobre os envolvidos na cena, o cenário e figurino, o texto a desempenhar e a reação emotiva da plateia, que está sempre conjuntamente implicada na tomada de posição, diante de fatores sociais, estéticos e morais (JAFFE, 2009).

Expressar-nos, por meio da linguagem, é colocarmos em prática uma série de estratégias de cobrimento e descobrimento de nossos eus, por meio de nossas máscaras sociais. Em geral, desempenhamos papéis que denotam como desejamos ser vistos pelos outros. Escolhemos gestos, palavras, vestimentas, acessórios e, algumas vezes, até locais para atuarmos melhor e satisfazermos nossas intenções comunicativas. Uma representação convincente de um personagem garante ao ator a credibilidade de que precisa para alcançar os seus objetivos.

Dentre várias metáforas postas para simbolizar o ato de linguagem, uma das mais produtivas foi a da representação teatral. A metáfora do ato de linguagem como um ato dramatúrgico não é nova, porém, nas obras de Erving Goffman (1985), ela adquire vigor de modo destacado a partir de A Representação do EU na Vida Cotidiana, na qual a teatralidade é utilizada para representar o “minúsculo sistema social da interação face a face” (GOFFMAN, 1985, p. 21).

A performance ou representação se refere a “toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores que tem, sobre estes, alguma influência” (GOFFMAN, 1985, p. 29).

O personagem é composto das impressões que representamos diante dos outros, dos atributos que usamos para registrar a impressão aos nossos interlocutores. Então, de uma forma ou outra, estamos sempre representando personagens e nossas caracterizações são sustentadas por diversos artifícios, além da linguagem. Estes recursos que utilizamos para manter os personagens que desempenhamos estão contidos na noção de fachada. A fachada, em si, nos conduz à própria ideia de máscara. Interessantemente, o termo pessoa tem conexão com este antigo item teatral. Originalmente, em grego, prósopon (transliteração de πρόσωπον) designava a máscara (persona, em Latim) e o personagem vestidos no drama grego e remete ao efeito que o ator, mediante uma abertura na máscara em torno da boca, fazia ao representar pelo som [per+sona] de sua voz, uma personagem. A partir daí evoluiu para a palavra pessoa, que expressa a ideia de um ser humano que significa algo, que representa algo e que demonstra ter alguma conexão definida com os outros por meio de suas ações (PERLMAN, 1986; FAITANIN, 2006).

Atuamos em algum cenário. O cenário, como espaço físico, é uma faceta nem sempre levada em consideração nos estudos voltados à linguagem humana, embora, segundo Frehse (2008), tenha sido uma preocupação existente na área da Sociologia a abordagem teórica do espaço físico, lugares e ambientes (principalmente os construídos) nos quais a vida social acontece. Por meio desta perspectiva, é interessante, em termos de investigação, pensar sobre a “alocação da posição espacial” dos indivíduos na interação (GOFFMAN, 1961/2005, p. 11) no que concerne aos ILS. Apesar de não ser a ênfase desta tese, o modo como os ILS se posicionam e utilizam-se dos espaços durante a mediação linguística é, também, um tema a ser anotado para futuras pesquisas.

Entre fachada e cenário, é possível conceber a fachada pessoal que pode ser definida como todo o cenário que carregamos conosco, seja em nosso corpo ou sobre o nosso corpo. São as características que podem ser percebidas da maneira como nos apresentamos ao mundo. Podem ser mais ou menos involuntárias, na atualidade. Muitas delas podem ser mudadas cirurgicamente ou com o auxílio de tratamentos estéticos, como nossa faixa etária, sexo, distinções raciais, altura, peso etc., ou voluntariamente incorporadas, como nosso vestuário, atitudes, maquiagem, adereços e assim por diante. Existem, basicamente, dois estímulos desencadeados pela fachada pessoal que nos revelam aspectos importantes na expectativa de nosso desempenho para com nosso colocutor, a aparência e a maneira. A aparência pretende demonstrar a posição social e hierárquica do locutor, geralmente evidenciada por itens externos tais como vestimentas e adereços. A maneira é o modo pelo qual os locutores posicionam-se diante da interação por meio de suas atitudes, desde aspectos prosódicos até manipulação de expressões faciais, gestuais e proxêmicas.

Nossa tomada de posição durante o ato de linguagem e, consequentemente, durante o ato de interpretação interlíngue, nos coloca como atores e personagens de nós mesmos e, por assim dizer, personificando os locutores primários. É, então necessário, refletirmos sobre as implicações do viés teórico da tomada de posição para os conceitos, ainda circulantes em alguns locais de: neutralidade, autoria e invisibilidade (transparência) em interpretação interlíngue, porque,

Embora algumas formas de fala e escrita sejam mais saturadas de posicionamento do que outras, não há uma produção linguística, face a face, que seja uma posição completamente neutra, porque a neutralidade em si é uma tomada de posição. vi (JAFFE, 2009, p. 3).

A tomada de posição não é totalmente independente e livre. Além de estarmos restritos às convenções sociais nas quais estamos imersos, também dependemos da imagem que é construída e cristalizada dos papeis que representamos. No entanto,

[…] se o indivíduo assume um papel que não somente é novo para ele mas também não está estabelecido na sociedade, ou se tenta modificar o conceito em que o papel é tido, provavelmente descobrirá a existência de várias fachadas bem estabelecidas entre as quais tem que escolher (GOFFMANN, 1995, p.34).

É evidente que a relação sujeito ouvinte↔sujeito intérprete↔sujeito surdo forma, praticamente, um circuito e que os papeis desempenhados por eles se interconectam e interinfluenciam mutuamente. Diante disto, como fazer afirmações categóricas, generalizantes e engessadas sobre cada interlocutor? Nesta relação, quase simbiótica e, ao mesmo tempo, momentânea, não seria possível dizer que todos são coautores e que, na verdade, esta interdependência, este “estar à mercê” da enunciação do outro caracteriza uma parceria em tríade? Inclino-me a perceber a interpretação interlíngue mais como um todo, considerando cada parceiro de interação como imprescindível para o sucesso do ato de comunicação mediado por intérprete.

Os ILS desempenham um papel, talvez não recente em sua atuação, mas recente em seu reconhecimento social e legal e, por isso, muitos dos seus papeis ainda estão em construção (MASUTTI; SANTOS, 2008; RUSSO, 2010).

Os Papeis Desempenhados na Interpretação Interlíngue

A interpretação interlíngue tem sido frequentemente comparada a outro ato cênico, além do teatro: a dança. Um pas-de-trois (WADENSJÖ, 1998) feito em dois tempos e três movimentos vii (BÉLANGER, 2000); seu caráter teatral, contudo, não tem sido ignorado até porque “A metáfora dramatúrgica é […] uma metáfora “multimídia”, incorporando elementos de várias outras expressões artísticas” (MENDONÇA; FACHIN, 2006, p. 301).

É importante frisar que “[…] os textos orais nunca são anônimos” viii (VIAGGIO, 2004, p. 194), Assim, em geral, os intérpretes interlíngues estão visíveis, seja ao lado dos locutores primários, seja em uma posição facilmente detectável, sentados à frente do palco ou em suas cabines. É possível ver a imagem dos intérpretes interlíngues, sua expressão corporal e facial, o modo como se vestem, ouvir a qualidade de suas vozes e, em alguns casos, até sentir, os odores que exalam. Enquanto os tradutores da escrita podem permanecer incógnitos, apesar de deixarem as suas marcas discursivas nos textos que traduzem, os intérpretes interlíngues são uma presença física tridimensional, ao vivo, e bidimensional, em interpretações por vídeo, com suas identidades expostas. Os papéis representados por eles advêm não só de sua função, mas de sua presença.

Conectando com a metáfora dramatúrgica, esta relação corresponde à dupla ator-personagem. É usual ligarmos a imagem de um ator aos seus papéis mais frequentes. Desse modo, por exemplo, de Charles Chaplin foram esperados o desempenho de uma figura cômica leve, do vagabundo Carlitos e, quando o personagem de um assassino em série, Monsieur Verdoux ix, foi personificado, mesmo no contexto de um humor negro, não foi somente o contexto histórico e social dos Estados Unidos que influenciou para que o filme não tivesse uma boa recepção pelo público da época. Em alguns casos, clientes acostumados à figura de um intérprete, ou a um estereótipo, têm dificuldades em aceitar um outro estilo de performance e até mesmo uma outra voz. Na interpretação de língua de sinais não é incomum uma pessoa surda ter dificuldades em permitir que um(a) ILS que, por exemplo, não se vista de preto ou que tenha uma voz de gênero (masculino, feminino) diferente da sua.

O caráter performático das línguas de sinais tem sido percebido e discutido em alguns estudos acadêmicos recentes, abordando vieses diferentes: Masutti (2007), Quadros e Souza, (2008), Souza (2010), Santana (2010).

O papel mais comum atribuído aos intérpretes interlíngues, sem dúvida, tem sido aquele que os coloca em uma posição intermediária, uma espécie de entremeio entre os locutores. Neste sentido, alguns autores reforçam o conceito de mediação, e não intermediação, por considerarem que

a ideia de intermediação é diretamente dependente de um modo positivista de ver a realidade, que separa as suas categorias em partes tidas por preexistentes e independentes entre si e que, por isso mesmo, necessitam de outras categorias, externas a cada uma delas, para cumprir o papel de intermediárias e garantir as ligações que as tornam interdependentes (SIGNATES, 1998, p. 40).

A comparação da interpretação interlíngue a uma “ponte” é quase onipresente em inúmeros trabalhos e nos leva a pensar não em um ator/personagem, mas na exigência de que os intérpretes sejam cenário. Este mesmo conceito de estar em um ponto aquém/além dos interlocutores primários gera rótulos que, muitas vezes, nos tiram a humanidade, somos coisificados, como o intérprete “telefone” ou “conduto” (AHMAD, 2007, p. 1053).

Mesmo os intérpretes de línguas orais são performáticos. “O intérprete é um ator da voz" (VEIGA, 1997) x, pois sua expressividade vocal, manifestada pela intensidade, altura, inflexão, ressonância, frequência, articulação e prosódia, pode imprimir um caráter dramatúrgico ao que diz. A monotonia da voz de um intérprete oral, contrastando com a vivacidade de um orador, pode levar ao descrédito e desinteresse no que é dito, no orador ou no próprio intérprete interlíngue.

No caso dos intérpretes de língua de sinais (ILS), como já foi mencionado, é quase impossível desvincular o texto traduzido da apresentação do corpo do ILS. É um fator definidor da interpretação de língua de sinais a sua manifestação em movimentos corpóreos externos e, consequentemente, visíveis, pois, “não podendo esconder seu corpo em cabinas, como o fazem os intérpretes de línguas vocais (orais), o ILS aparece como o terceiro sujeito participante, ativo e engajado, não mais um mero canal passivo, um 'telefone' por meio do qual os interlocutores comunicam-se” (PEREIRA, 2008). Por que me refiro a movimentos visíveis? Segundo Wilcox (2012), a língua, seja oral ou de sinais, refere-se à produção, recepção e interpretação de movimentos, de gesticulação articulada, dentro de um enquadre de língua como movimento. A língua oral também é produzida no corpo, pelo aparelho fonoarticulatório, porém com boa parte de seus movimentos realizados dentro do corpo, não visíveis ou tangíveis. As línguas de sinais, por sua vez, apresentam movimentos articulatórios plenamente externos e visíveis por seu resultado aparecer na parte exterior do corpo, principalmente tronco, membros superiores, cabeça e, significativamente, pela face.

Esta característica de corporeidade confere um caráter extra de desempenho teatral nas suas manifestações. Assim, quando Quadros e Souza (2008) mencionam que a Libras, por ser uma língua que usa os movimentos, principalmente das mãos e do tronco, e as expressões faciais, mantêm a interpretação dependente da presença física do corpo do “tradutor”, referem-se a movimentos exteriores visíveis. Nesta perspectiva, o corpo é o próprio meio e suporte onde a interpretação ocorre. Não há como desvincular o texto traduzido da corporeidade visível do intérprete, de sua imagem corporal, e esta característica determinará muitas das particularidades da interpretação de língua de sinais.

Em casos extremos, porém não incomuns, a utilização de expressões depreciativas para se referir aos ILS demonstra que esta profissão ainda é desprestigiada, muitas vezes por suas características de manifestação do corpo associada à desinformação de boa parte da sociedade sobre a legitimidade da língua de sinais. O corpo tem sido alvo de muito preconceito e tabus, em boa parte das sociedades, especialmente daquelas regidas por padrões judaico-cristãos, nas quais o corpo é oposto ao espírito e é a fonte de toda sorte de pecados e culpa. Existe, da mesma forma, a ideia de que o que é de nossos corpos é de natureza animal, concebida, assim, como algo inferior e indesejável.

Reconhecidamente necessários para o acesso das pessoas surdas às informações e conhecimentos circulantes na sociedade majoritária ouvinte, ainda convivemos com vários rótulos utilizados de maneira superficial e nem sempre respeitosa para com os ILS, tais como “macaquinho” (SANTOS, 2006, p. 51) e algumas outras expressões ainda não documentadas, mas já de conhecimento amplo entre os ILS, “careteiros”, “aquelas pessoas que mexem com as mãos”, “aqueles que fazem assim [mímica de alguém movimentando as mãos rapidamente]” etc.

Esta característica performática […] parece dividir os mediadores linguísticos em duas partes, pois desenvolvem dois eus: uma personalidade receptora da língua fonte e uma personalidade produtora de língua alvo (NEUBERT, 1997 apud BÉLANGER, 2000, p. 19) xi. Estas personalidades serão tão eficientes na medida em que os intérpretes interlíngues forem conhecedores das culturas envolvidas.

No caso da interpretação de língua de sinais, a mediação vai mais longe e, além de questões puramente linguísticas, cabe a nós a decisão de interpretarmos pistas contextuais e sons ambientais, por exemplo.

Outra autora que nos remete a um caráter performático e, neste caso, específico de interações mediadas, é Wadensjö (1998) que detectou dois tipos de atuação nos intérpretes interlíngues: Displaying e Replaying.

Displaying Replaying
Apresentar Representar
+ Narrador + Ator

Figura 2 - Displaying e Replaying, segundo Wadensjö (1998)

A posição de quem apresenta é uma interpretação mais narrativa, mais distanciada, marcando o posicionamento das individualidades entre o intérprete interlíngue e a pessoa que interpreta. A tendência, neste caso, é de uma interpretação em discurso indireto.

Interpretar interlinguisticamente como representação (no sentido cênico), entretanto, presume tomar o lugar da pessoa interpretada e interpretá-la como ator. É uma imitação do tom, da postura, da voz, do estilo de sinalização de quem se interpreta. É “encarnar” o personagem interpretado assumindo a enunciação e o ponto de vista, como interlocutor, da pessoa interpretada.

Muitas vezes o apresentador e o ator revezam-se no ato de interpretar entre línguas, porém, dependendo da interação, geralmente um destes fatores prepondera.

Embora alguns autores afirmem que “qualquer mudança no uso do pronome pode ser vista como uma tomada de posição, alterando a relação entre o falante, o interlocutor e o objeto (MYERS; LAMPROPOULOU, 2012, p.1208), nesta mesma direção pode-se afirmar que não só os pronomes, mas qualquer alteração nas formas de tratamento (FT) pode modificar a atitude durante a interação e, no caso da interpretação interlíngue, por ser uma interação triádica, estas mudanças na tomada de posição se fazem sentir de modo ainda mais destacado.

A interpretação interlíngue: uma tomada de posição simbiótica?

Quando uma pessoa surda aponta para uma mulher e o ILS interpreta “a senhora soube disso” quem é o falante, afinal? Aposto em uma simbiose entre a pessoa surda e a ILS. O falante, na interpretação interlíngue, falará por alguém, em outra perspectiva, falará conjuntamente com alguém. A escolha pela FT “a senhora”, mesmo assim, dificilmente poderá ser negociada com a pessoa surda, pois o ILS faz sua escolha, em geral, em tempo real (simultaneamente) e aposta nela para manter o equilíbrio de poder entre os interlocutores. Embora a maioria dos posicionamentos do locutor primário sejam preservados, alguns itens, inexoravelmente, serão regulados pelos intérpretes interlíngues. Ainda que a enunciação dos intérpretes interlíngues esteja dependente da enunciação original dos locutores primários, cabe aos primeiros a escolha da FT mais apropriada entre os interlocutores e naquela situação específica. Outro exemplo da intersubjetividade que é característica da tomada de posição é se, em resposta à enunciação da ILS “a senhora soube disso”, a pessoa ouvinte respondesse “não precisa me chamar de senhora”. Neste caso, o ILS teria que rever seu posicionamento e fazer novas escolhas de FT.

Basicamente, quando interpretamos, estamos, na verdade, enunciando a fala do outro e, ao mesmo tempo, nos posicionando quanto ao que os demais interlocutores enunciaram, pois “[…] qualquer seleção de uma técnica de referenciação, tanto no caso de autorreferência quanto no caso de formas de tratamento transmitirá metamensagens sobre o eu do falante (CECCHETTO; STROINSKA, 1996, p.782). Estas avaliações manifestam-se por meio da linguagem e, de um modo peculiar, pelas formas de tratamento utilizadas em cada cultura para marcar a posição de cada um.

Sendo assim, o que podemos esperar não é uma inexistente neutralidade e impossível imparcialidade e sim a menor interferência possível, pois só a presença de um mediador linguístico já é um fator que influencia as escolhas dos interlocutores e a percepção e decisões relativas às tomadas de decisões nos discursos.

Notas

ii Stance is a public act by a social actor, achieved dialogically through overt communicative means, of simultaneously evaluating objects, positioning subjects (self and others), and aligning with other subjects, with respect to any salient dimension of the sociocultural field (DU BOIS, 2007, p. 163). (Tradução nossa)
iii […] to the phenomenon that the speaker with her attitudes and beliefs is present in the utterances that she produces. In other words, rather than simply describing an event or presenting an objective statement of some event or state of affairs, the speaker represents an event or state of affairs from a particular perspective (KÄRKKÄINEN, 2006, p.72). (Tradução nossa)
iv (1) stancetaking occurs on three levels as physical action, personal attitude/belief/evaluation and social morality; (2) stance is public and perceivable, interpretable and available for inspection by others; (3) stance is interactional and it is collaboratively constructed among participants with respect to other stances; (4) stance is indexical, evoking aspects of the broader sociocultural frameworks or physical contexts; and (5) stance is consequential, leading to real consequences for the persons or institutions involved (ENGLEBRETSON, 2007, p. 6). (Tradução nossa)
v Any shift in pronoun use can be seen as stance-taking, altering the relation between speaker, interlocutor, and object. (MYERS; LAMPROPOULOU, 2012, p.1208). (Tradução nossa)
vi Although some forms of speech and writing are more stance-saturated that others, there is no such thing as a completely neutral position vis-à-vis one's linguistic productions, because neutrality is itself a stance (JAFFE, 2009, p. 3). (Tradução nossa)
vii BÉLANGER, Danielle-Claude. Converser en 2 Temps 3 Mouvements: pour comprendre la communication en présence d’un interprète lsq/français. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Université du Québec à Montréal, 2000.
viii […] los textos orales nunca son anónimos (VIAGGIO, 2004, p. 194). (Tradução nossa)
ix Charles Chaplin Oficcial site. Filming Monsieur Verdoux. Disponível online em http://www.charliechaplin.com/en/films/8-monsieur-verdoux/articles/8-Filming-Monsieur-Verdoux Acesso em: 03/03/2013.
x VEIGA, Aída. O intérprete é um "ator da voz". Folha de São Paulo. São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/11/23/empregos/3.html. Acesso em 03 jul. 2013.
xi […] seems to tear mediators part; mediators develop two selves, an LS-receiving personality and a TL-producing personality (NEUBERT, 1997 apud BÉLANGER, 2000, p. 18). (Tradução nossa)

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