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Os desafios do professor intérprete de Libras nos anos iniciais do Ensino Fundamental: um estudo de caso na perspectiva da Teoria da Subjetividade
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Publicado em 2020
Revista The Especialist, v. 41, n. 1
Larissa Pereira Gonçalves
Esmeralda Figueira Queiroz
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Resumo

Este artigo trata da análise da atuação de uma professora intérprete de anos iniciais do Ensino Fundamental em uma escola do Distrito Federal, tendo como foco a sua constituição subjetiva mediante a singularidade do contexto em que sua atividade se desenvolve. Configurado como um estudo de caso, optamos pela Teoria da Subjetividade de González Rey como constructo teórico de sustentação deste estudo. E em consonância com essa teoria, a opção metodológica verteu-se para Epistemologia Qualitativa cunhada pelo mesmo autor. Assim, a construção das informações a serem analisadas se deu por meio de situações conversacionais, análise de documentos e de instrumento elaborado para completar frases. O aspecto singular de professor intérprete de um aluno surdo com transtorno do espectro do autismo foi o diferencial no cenário escolar e que conduziu as autoras a lograr o desvendamento da constituição subjetiva desta profissional.

1. Introdução

Na história do processo de escolarização dos surdos foram percorridos longos caminhos até que a proposta de educação bilíngue chegasse às escolas. O bilinguismo dos surdos trouxe consigo diversas mudanças nos padrões de educação inclusiva desses estudantes e uma delas é a presença do intérprete de Língua Brasileira de Sinais (doravante Libras) para dentro dos ambientes de sala de aula.

O movimento de educação inclusiva ganhou força e visão após a Declaração de Salamanca em 1994, que trouxe em seu corpo documental a responsabilidade das instituições de ensino de permitir que os alunos, independente, de sua origem étnica, racial, social e linguística ocupassem o mesmo espaço escolar, pois cada criança é importante para a construção de um processo educacional baseado no respeito à diversidade (LACERDA, 2006).

A Lei 10.436/2002 3, conhecida como “Lei de Libras”, representou uma conquista diante da luta constante das comunidades surdas pelo reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais como primeira língua (L1) do surdo brasileiro. Essa lei se constituiu como um importante marco para a compreensão social sobre a comunicação e expressão das pessoas surdas a partir da língua de sinais. Para que fosse regulamentada, em 22 de dezembro de 2005 foi publicado o decreto 5.626 4, que traz em seu texto as diretrizes iniciais sobre a educação e inclusão do surdo determinando a criação de escolas ou classes bilíngues 5 para atender às peculiaridades das necessidades educacionais desses estudantes.

No Distrito Federal, o atendimento aos estudantes surdos na rede pública oficial de ensino é regulamentado pela Estratégia de Matrícula, documento da Secretaria de Educação de publicação anual, e pela Orientação Pedagógica da Educação Especial (Secretaria de Educação, 2010). A estratégia de matrícula (Secretaria de Educação, 2019) prevê uma turma do tipo Classe Bilíngue Mediada (doravante CBM) que, segundo o documento, é uma “classe constituída por estudantes ouvintes e surdos e/ou surdocegos. É caracterizada pela presença do professor bilíngue (Libras/LP) atuando como intérprete educacional e/ou guia intérprete e o professor regente” (p. 21). Ou seja, temos dois professores atuando juntos em uma mesma sala de aula, o regente e o intérprete.

As pesquisas sobre a atuação do intérprete de Língua Brasileira de Sinais ressaltam que o exercício desse profissional, especialmente nos anos iniciais do Ensino Fundamental, vai além de um trabalho de transposição linguística, o que leva o intérprete a assumir o papel de professor especialista inserido no contexto das turmas bilíngues (TUXI, 2009). Assim, para que a educação dos estudantes surdos aconteça de maneira mais exitosa, é preciso que o professor intérprete e o professor regente atuem juntos, garantindo que as ações pedagógicas sejam planejadas e executadas de forma a promover um processo de ensino e aprendizagem com melhor qualidade (CÓRDOVA, 2009).

Neste artigo apresentamos um estudo de caso de uma professora intérprete atuando em classe bilíngue mediada com um estudante surdo com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autístico. Apresentamos os desafios profissionais que podem surgir na prática do intérprete de Libras sob a perspectiva da Teoria da Subjetividade de González Rey (2003; 2004; 2005; 2007; 2011). Procuramos trazer aqui uma análise de como está configurada subjetivamente a função do professor intérprete na subjetividade social da escola bem como esta função se configura em sua subjetividade individual.

2. Construção teórica e metodológica

Para a elaboração de um escopo teórico, iniciamos com a discussão sobre a Teoria da Subjetividade e como ela nos serve de base para as análises aqui propostas. Segundo González Rey (2013, p. 25), “As teorias são sistemas de significação geradores de inteligibilidade sobre representações em processo, cujo significado se organiza no curso do momento empírico da produção do conhecimento”.

A subjetividade se constitui como um macro conceito que integra a teoria histórico-cultural de maneira que possibilita a emergência de novas inteligibilidades sobre as produções simbólico- emocionais. Não se trata de uma construção individual, mas de um complexo sistema que se produz tanto nos níveis individuais como nos níveis sociais. É uma categoria central da Teoria da Subjetividade que apresenta outros desdobramentos conceituais (GONZÁLEZ REY, 2013).

Uma das categorias conceituais propostas pela teoria é a categoria sujeito. Nessa perspectiva, o sujeito é singular, ativo, presente, pensante e que se posiciona produzindo sentidos subjetivos integradores da subjetividade individual e da subjetividade social (GONZÁLEZ REY, 2004). Ainda o mesmo autor demarca que o sujeito se constitui subjetivamente em sua própria história e, teoricamente, é uma peça chave para a compreensão dos complexos processos de constituição subjetiva individual e social. E nesse sentido, Campolina (2012) contribui com a teoria esclarecendo que o sujeito é um momento de produção de subjetividade. A autora destaca ainda que “a condição do sujeito ressalta exatamente a condição produtora que outorga a dimensão psicológica no plano subjetivo” (CAMPOLINA, 2012, p. 94).

Dando continuidade à reflexão sobre as categorias que compõem a Teoria da Subjetividade, apresentamos a subjetividade social, cujos construtos apresentam significativa importância para os objetivos deste estudo. Inicialmente o conceito de subjetividade social foi apresentado em 1991 como resultados de discussões que ocorreram no âmbito da Psicologia Social Crítica latino-americana na década de 1980 (GONZÁLEZ REY e MARTÍNEZ, 2017). O desenvolvimento da teoria trouxe,

paulatinamente, avanços estruturais até que González Rey (2003) apresenta a subjetividade social como um complexo sistema que não se define por características universais estáticas, ao contrário, apresenta formas de organização relacionadas aos diferentes processos, ações e relações do sujeito nos diferentes espaços de vida social no qual ele se insere.

A subjetividade está constituída individual e socialmente em caráter de simultaneidade, ou seja, uma atua em relação à outra e vice-versa, de maneira articulada (GONZÁLEZ REY, 2005). E com essa concepção, atemo-nos, agora, à categoria subjetividade individual, para fundamentar nossa investigação quanto à sua constituição no professor intérprete das classes bilíngues inclusivas de estudantes surdos. As formas de organização subjetiva dos indivíduos representa a subjetividade individual, que constitui histórica e socialmente em cada pessoa inserida em uma cultura (GONZÁLEZ REY, 2003). Campolina (2012), contribuindo com a construção desse conceito, afirma que “entendemos a subjetividade individual como a produção e a expressão da constituição emocional e simbólica, atual e histórica que se organiza no plano individual” (p. 94). Dessa forma, ela se integra à subjetividade social tronando-se um elemento participativo da constituição de sentidos subjetivos e configurações subjetivas individuais e sociais.

A subjetividade se constitui nos diferentes espaços sociais nos quais a pessoa se encontra, esses espaços podem ser a família, as instituições religiosas, os locais de trabalho, os círculos sociais de amizade (GONZÁLEZ REY e MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017). Os espaços sociais, e destacamos nele o espaço social da escola, não existem de forma independente dos sujeitos que dele fazem parte, assim como em todos os espaços sociais de uma maneira geral, conforme González Rey (2005), “A subjetividade social apresenta-se nas representações sociais, nos mitos, nas crenças, na moral, na sexualidade, nos diferentes espaços em que vivemos etc. e está atravessada pelos discursos e produções de sentidos que configuram sua organização subjetiva” (GONZÁLEZ REY, 2005, p. 24).

As instituições de ensino foram se constituindo e se modificando histórica e culturalmente como um “dispositivo de separação de espaços públicos e privados”, organizando-se de maneira a atender as necessidades de organização dos “processos de transmissão de conhecimento, disciplinarização e de formação dos indivíduos na sociedade” (CAMPOLINA, 2012, p. 81). A escola, quando compreendida em suas dimensões social e relacional, torna-se um espaço onde as relações sociais configuram uma realidade baseada nas qualidades que lhe são próprias. Apresenta uma capacidade de geração de inúmeras e singulares experiências “revelando que cada espaço social dela é dotado de uma dimensão subjetiva singular e única, constituída pelas interações sociais que ali se dão” (CAMPOLINA, 2012, p. 182).
Gatti (2017) destaca que as escolas são instituições que integram a sociedade e nelas estão presentes os mesmos traços característicos das dinâmicas sociais e culturais incluindo seus conflitos e suas tensões. Essas situações geradas no ambiente escolar trazem à tona a necessidade de novas

inteligibilidades que orientem as ações e as relações interpessoais de seus atores. Como um campo de expressão da subjetividade tanto social com individual, as interações que acontecem na escola integram os relacionamentos humanos em seu cotidiano. Ou seja, as relações sociais na escola produzem sentidos subjetivos que constituem a vida social em sua concretude (CAMPOLINA, 2012). Nesse sentido, o espaço da sala de aula ocupa um lugar de protagonismo no ambiente das instituições de ensino.

Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, normalmente esse espaço se configura com a presença de um professor e dos estudantes da turma. Campolina (2012) considera que a sala de aula: “[...] pressupõe a existência de ritmos de desenvolvimento, práticas pedagógicas, propostas e currículos que tendem a se homogeneizar” (CAMPOLINA, 2012, p. 86). Ou seja, esse espaço apresenta uma organização tradicionalmente estabelecida, que no caso das classes bilíngues, é modificada, apresentando duas figuras de professor no mesmo ambiente físico e pedagógico. Essa mudança trazida para o ambiente escolar com o processo de inclusão do estudante surdo traz impactos tanto na subjetividade social da escola como na subjetividade individual dos profissionais que atuam nas classes bilíngues.

Nesse prisma, apresentamos o professor intérprete de Libras propondo reflexões sobre seu papel no processo de inclusão, de ensino e de aprendizagem dos surdos. Os primeiros registros de tradutores/intérpretes na história se dão nos ambientes religiosos. Especialmente com relação aos intérpretes de língua de sinais, sua atividade era considerada um dom divino e eles eram vistos como missionários que tinham como um de seus objetivos, evangelizar os surdos (TUXI, 2009). Na contemporaneidade, o tradutor/intérprete de língua de sinais é aquele que transpõe a informação da língua fonte para a língua alvo, tornando possível o diálogo, transpondo informações da língua oral- auditiva para a língua vísuo-espacial e vice versa (CÓRDOVA e TACCA, 2011).

Atualmente, o ambiente educacional é o espaço onde os intérpretes são mais requisitados. Nesse contexto eles estão presentes nos diferentes níveis de ensino, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior (CORDOVA e TACCA, 2011). Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nível de ensino ao qual propomos por meio deste trabalho investigar, os surdos, em sua maioria, filhos de pais ouvintes, não possuem em sua primeira língua (L1), a Libras, competência linguística suficiente para uma comunicação fluente levando o professor intérprete a desdobrar-se para atender da melhor maneira possível as suas necessidades (ANTONIO et al., 2015).

Oliveira (2012) argumenta que essa nova função do tradutor/intérprete de Libras, a de professor intérprete, não se trata exatamente de um profissional com formação específica para essa atuação, mas de um professor fluente em Libras, que exerce esse papel. Antônio et al. (2015) apontam que “os professores-intérpretes, assim denominados, são na realidade originalmente professores que possuem conhecimento em língua de sinais, podendo adotar a função de intérprete [...]” (ANTONIO et al, 2015, p. 1046).

3. Análise e discussão das informações

Por se tratar de uma pesquisa de caráter qualitativo que visa a investigação baseada na Teoria da Subjetividade, a metodologia baseia-se nos princípios da Epistemologia Qualitativa levando em conta a proposta construtivo-interpretativa (GONZÁLEZ REY e MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017). Esse modelo epistemológico de pesquisa fundamenta-se em construções histórico-culturais e dialógicas, numa dinâmica conversacional em que o pesquisador e participantes interagem ativamente entre si no processo de pesquisa. Nessa proposta, o pesquisador enquanto sujeito “[...] no processo da pesquisa, depende de seu poder criativo e imaginativo para explicar o fenômeno por meio de construções oriundas da articulação entre sua base teórica e as informações produzidas no entre fenômeno/método” (ROSSATO e MITIJÁNS MARTÍNEZ, 2017). González Rey e Mitjáns Martinez (2017) sinalizam que pesquisas em caráter dialógico favorecem a emergência não apenas da subjetividade dos participantes, mas também a do pesquisador, que assume um papel de protagonista, pois essa subjetividade que surge na postura criativa do investigador é um dos elementos que caracterizam essa forma de pesquisar.

A metodologia construtivo-interpretativa é um processo que exige do pesquisador, além da imersão no campo, capacidade de reflexão, imaginação e criatividade (MITJÁNS MARTINEZ, 2019). O que diferencia a Epistemologia Qualitativa dos demais modelos de pesquisa é que as informações não consistem em meros dados a serem colhidos e relatados, como simples observação de fatos, mas consistem em considerar aquilo que não está posto, mas que integra a subjetividade dos envolvidos no processo de pesquisa.

A Epistemologia Qualitativa tem três pressupostos básicos (GONZÁLEZ REY, 2005). O primeiro deles é o caráter construtivo-interpretativo. Assim, González Rey concebe a produção de conhecimentos como um processo no qual as indagações, análises e observações do pesquisador são consideradas legítimas e se articulam com a teoria durante o caminho da pesquisa. A realidade externa ou os “dados coletados” deixam de ser correspondências diretas com um conhecimento já produzido, mas sim, uma forma de inteligibilidade de questões que emergem das relações entre os participantes, o pesquisador e aquilo que está sendo estudando.

Outra particularidade da Epistemologia Qualitativa é o caráter dialógico da pesquisa. Pereira, Conceição e Mitjáns Martinez (2016, p. 21) assinalam que a produção de informações significativas sobre o objeto de estudo se dá por meio da comunicação e do diálogo entre o pesquisador e os participantes da pesquisa. Esse caminho dialógico permite que os atores envolvidos na pesquisa reflitam sobre suas ações de maneira que a subjetividade possa emergir trazendo a possibilidade de produção de novas inteligibilidades (GONZÁLEZ REY e MITIJÁNS MATÍNEZ, 2017).

A Epistemologia Qualitativa, enquanto metodologia de pesquisa, propõe uma ruptura com a ideia de estímulo-resposta presente nos modelos mais tradicionais de pesquisa e por esse motivo, reivindica o diálogo entre pesquisadores e participantes ocupando um lugar central na construção das informações. González Rey (2019) destaca que “[...] o diálogo, nessa perspectiva, implica a emergência dos participantes como agentes ou sujeitos de seu processo” (p. 39).

Para completar esse tripé teórico-metodológico no qual se organiza a Epistemologia Qualitativa, temos a valorização da singularidade dos casos pesquisados. E nesse sentido, a pesquisa se apresenta como um campo de produção teórica em todo o seu processo. Nessa proposta, o singular é uma fonte de construção de conhecimento científico ao modelo teórico concomitante ao próprio ato de investigação (PEREIRA, CONCEIÇÃO e MITJÁNS MARTINEZ, 2016).

Referindo-se às configurações subjetivas de profissões ou de funções profissionais, González Rey (2004) pondera que essas configurações não se constituem de maneira estática que de forma consistente ou invariável acompanham certo tipo de atividade. Isso quer dizer que, ainda que haja possibilidade em se identificar uma ou mais configurações subjetivas de determinada profissão, em dados momentos de seu exercício, integrando-se a outras configurações ou elementos de sentidos subjetivos do sujeito, pode haver uma reconfiguração subjetiva da atividade, gerando novos sentidos subjetivos.

Os sentidos subjetivos são elementos integradores e constituidores da subjetividade humana. Conforme Torres (2016), eles são a unidade básica da subjetividade humana e se organizam recursivamente em configurações subjetivas. É importante destacarmos aqui que o termo sentido subjetivo foi se construindo epistemologicamente a partir da categoria sentido trazida por Vygostsky que entendia a emoção como forma de organização da psique enquanto um sistema (GONZÁLEZ REY, 2004).

Os sentidos subjetivos se caracterizam como uma produção original e particular do sujeito concreto. González Rey (2003, p. 127) define o sentido subjetivo como “a unidade inseparável dos processos simbólicos e as emoções num mesmo sistema, no qual a presença de um desses elementos evoca o outro, sem que um seja absorvido pelo outro”. Para o autor, os sentidos subjetivos são o cerne do processo de desenvolvimento humano. Eles carregam em si uma emocionalidade que se autoproduz e se associa a fontes emocionais que se integram em sua gênese. Essa emocionalidade é oriunda das relações com suas cargas tensionais na qual o outro se torna fundamental para o desenvolvimento (GONZÁLEZ REY, 2004). E o desenvolvimento em definição dada por González Rey (2004, p. 19) “é um processo integral que acontece em torno de sistemas de sentido subjetivo da pessoa”.

A participante de nossa pesquisa é uma professora intérprete de Libras de uma escola da rede pública de ensino do Distrito Federal. Ela tem 43 anos de idade, é professora há 22 anos e há 15 anos atua na educação de surdos como professora regente e também como professora intérprete. Sua atuação se dá em uma turma de 4º ano do Ensino Fundamental, com um estudante com dupla condição de desenvolvimento: surdez severa bilateral e Transtorno do Espectro Autístico. O estudante tem pouca competência em Libras, pois sua surdez foi diagnosticada tardiamente. Vale ressaltar que a condição de autismo do estudante se sobrepõe às características da surdez, modificando assim totalmente as suas necessidades educacionais, ultrapassando as atribuições da professora intérprete de simples interpretação de conteúdos e outras mediações linguísticas.

Para nossa investigação, foi realizada uma análise dos relatórios de avaliação realizados bimestralmente para acompanhar a evolução do desenvolvimento pedagógico do estudante bem como relatórios das equipes de apoio educacional6 que atenderam o estudante e a professora (Serviço de Orientação Educacional, Sala de Recursos e Equipe Especializada de Apoio à Aprendizagem). Na pesquisa qualitativa orientada pela epistemologia qualitativa, os instrumentos de pesquisa não são vias geradoras de resultados e não são utilizados para coletar dados. Nesse modelo de produção científica, os instrumentos são o meio pelos quais provocamos a expressão do participante em contextos relacionais. As informações geradas nesse processo são analisadas com o objetivo de produzir novas inteligibilidades sobre o tema em estudo (GONZALEZ REY, 2005). Dessa forma, para a construção das informações proposta por essa investigação, optamos pelo uso de dois instrumentos: as dinâmicas conversacionais e o complemento de frases.

Para esse estudo, escolhemos as “dinâmicas conversacionais” (GONZÁLEZ REY, 2005) que aconteceram durante as coordenações pedagógicas, os conselhos de classe dos quatro bimestres, as reuniões de planejamento pedagógico coletivo que aconteciam quinzenalmente às quartas-feiras e a própria atuação da profissional intérprete no cotidiano escolar. Essa investigação foi realizada durante o curso do ano letivo de 2018. Por meio desse instrumento, foi possível captar elementos importantes sobre como a função de professor intérprete nesse caso estudado, se configura subjetivamente. Essas informações foram devidamente registradas no diário de campo do pesquisador. González Rey (2005) ao explicar importância das conversações no processo da pesquisa destaca que:

“os sistemas conversacionais permitem ao pesquisador deslocar-se do lugar central das perguntas para integrar-se em uma dinâmica de conversação que toma diversas formas e que é responsável pela produção de um tecido de informação o qual implique, com naturalidade e autenticidade, os participantes” (p. 45).

Outro importante instrumento utilizado foi o “complemento de frases” (GONZÁLEZ REY, 2005). O complemento de frases não é um questionário. Não se trata de um conglomerado de perguntas e respostas, mas de um conjunto de indutores curtos, que o participante preenche. Esses indutores podem ter um caráter geral, podem estar relacionados a atividades profissionais, experiências pessoais ou qualquer tema sobre o qual, o pesquisador deseja que o participante se expresse intencionalmente. Esse recurso nos permitiu observar direta e indiretamente como a participante da pesquisa se percebe enquanto profissional intérprete e a importância que a inclusão dos surdos tem nas suas ações e relações pedagógicas. Os indutores que o complemento de frases nos ofereceu unidos às análises dos documentos referentes ao estudante e à dinâmica conversacional, nos permitiram alcançar alguns pontos de conflito e tensionamentos presentes na atuação do profissional intérprete de Libras dentro da escola.

Os indutores foram elaborados levando em consideração a prática do profissional intérprete com estudante surdo com outras deficiências, no caso, o autismo. Outro indutor pesquisado é a importância da Libras e como o ambiente escolar acolhe os estudantes surdos na perspectiva do bilinguismo em seu cotidiano. Nesse caso, é importante também fazer uma breve caracterização da escola onde a pesquisa foi realizada. Trata-se de uma escola inclusiva que já foi polo de atendimento de estudantes surdos. Uma parte significativa dos professores já atuou tanto na função de professor regente como na função de professor intérprete de Libras o que, a princípio, nos leva a crer que a maioria dos docentes conhece o processo de desenvolvimento, ensino e aprendizagem do surdo na perspectiva bilíngue. Contudo, a investigação proposta neste estudo nos trouxe indicadores que demonstram que as necessidades educacionais desses estudantes não estão muito claras no contexto educacional para parte dos atores desse espaço social.

A observação do ambiente escolar e as análises das dinâmicas conversacionais entre a participante e os demais profissionais da escola nos trazem informações importantes. Foi registrado no diário de campo que, nas reuniões pedagógicas, os professores de outras turmas da escola questionavam a professora intérprete sobre a maneira como o estudante se comunicava - os gritos são suas manifestações tanto de alegria e contentamento como de frustrações - e o que ela poderia fazer para que ele mudasse essa característica. Era visível o constrangimento da professora ao responder que ela não tinha a possibilidade de controlar certos aspectos relacionados à forma de expressão e ao comportamento do estudante. A importância desse fato se dá porque esse era um ponto de tensão muito marcado e a origem de um conflito entre a professora regente da turma e a professora intérprete participante desta pesquisa.

A professora regente da turma não promovia ações de acolhimento e inclusão desse estudante no ambiente da sala de aula. Ela não tinha conhecimento básico em Libras e nem formação para atuar com estudantes autistas. Isso era visível nas coordenações pedagógicas em que as duas profissionais deveriam estar atuando juntas (sendo inclusive uma normativa da Secretaria de Educação do DF7), no planejamento de atividades que promovessem a inclusão do estudante surdo, porém as duas atuavam separadamente. Por diversas vezes, a professora intérprete pediu a intervenção da equipe gestora e dos serviços de apoio junto à professora regente, mas as intervenções não obtiveram êxito. Assim, a professora intérprete retirava o aluno do ambiente da sala de aula muitas vezes durante o turno para não “incomodar a professora e os demais colegas”. Esse tensionamento aparecia nas reuniões pedagógicas, nas conversas informais na sala de professores, nas discussões das equipes de apoio da escola, mas nenhuma solução foi encontrada para promover um melhor acolhimento desse estudante e consequentemente do trabalho da professora intérprete. O fato mais lamentável é que a turma em que o estudante tinha sua matrícula era reduzida com apenas dezoito alunos para que fosse garantida sua inclusão escolar.

As dinâmicas conversacionais nos permitiram observar como a função do professor intérprete se configura na subjetividade social da escola: o professor intérprete é o professor do surdo e responde por tudo o que diz respeito a esse estudante, desde as ações pedagógicas cotidianas, ao planejamento e à adaptação de atividades até a avaliação do processo de aprendizagem. Essa configuração subjetiva aparece nos diversos elementos que compõem o cotidiano da escola: atividades coletivas no pátio onde o intérprete acompanha o aluno sendo, portanto, o único responsável pela intermediação social e linguística do surdo; nos conselhos de classe em que, apesar de o surdo ser aluno do professor regente, este entrega ao intérprete a função e a responsabilidade dos avanços e percalços pedagógicos relacionados a esse estudante; nas reuniões e encontros com os responsáveis do surdo, que a professora regente esquivava-se de participar deixando claro, com esses posicionamentos, que ela não se identificava como professora e responsável pela aprendizagem e desenvolvimento do aluno surdo.

Na análise do complemento de frases, é possível perceber como a função de intérprete se configura na subjetividade individual da participante. Como o processo de construção da informação é recursivo e não acontece de forma isolada, as informações que emergem nesse instrumento são analisadas levando em consideração todo o contexto da pesquisa. Ao abordarmos a surdez, a participante não a relaciona como uma impossibilidade de desenvolvimento, mas apenas como uma condição que não constitui um fator impeditivo de aprendizagem. Quando ligamos essa informação às ações pedagógicas da participante – a professora estava constantemente em busca de novos recursos e propostas que atendessem à necessidade do estudante, especialmente no que se refere ao ensino da Libras – percebemos que ela também se via como responsável direta pelo processo de ensino e aprendizagem do surdo.

Os tensionamentos percebidos nas dinâmicas conversacionais se confirmam no complemento de frases. Veja as frases: 5. Meus colegas precisam se interessar mais pela comunicação em Libras; 6. O mais difícil é o relacionamento com o professor regente; 25. Seria mais fácil se sempre tivesse acesso prévio às atividades a serem desenvolvidas; 36. Os outros dizem que a turma inclusiva é mais fraca; 38. Me sinto ofendida quando menosprezam o trabalho do intérprete por lidar com menos alunos que o professor regente; e 41. Me sinto valorizada quando o professor regente faz adequações e interage com trocas de informações. Nas expressões aqui apresentadas fica claro que o maior desafio da professora intérprete não está diretamente relacionado ao estudante surdo, mas na relação com os demais professores, especialmente com a professora regente. As frases 36 e 38 também corroboram com as dinâmicas conversacionais identificando informações importantes sobre a função do intérprete na configuração subjetiva social da escola e como ela integra a configuração subjetiva individual, demonstrando a recursividade em que ambas se constituem.

Considerações Finais

A cadeia de significação formada a partir dos indicadores que favoreceram a construção do corpus para a interpretação das autoras permite considerar que analisar a atuação do professor intérprete em especial em um contexto tão singular como o caso relatado neste artigo, torna-se relevante no sentido de que os desafios do cotidiano desse profissional apontam para a necessidade de um olhar para a sua constituição subjetiva. Embora, considerando que a configuração subjetiva do professor intérprete não se dá de forma universal e padronizada, mas no tensionamento permanente do lócus do seu fazer pedagógico e na relação com a subjetividade social, reconhecemos que a profissional participante deste estudo de caso mobilizou esforços individuais, sobretudo os da ordem das emoções, para construir uma relação com seu aluno dentro de um complexo processo de comunicação no qual assumiu para si a responsabilidade da sua educação. Porém, todo o seu empenho pode ter sido parcialmente nulo quando o êxito nas ações nas práticas educativas inclusivas é de corresponsabilidade de todos os sujeitos implicados nessa relação. E quando uma das partes não cumpre o seu papel, seja por qual motivo for, as demais, ainda que sobrecarregadas, não conseguem atingir a totalidade das ações necessárias para uma experiência exitosa. E nesse processo de atravessamento da subjetividade individual pelo social, os desafios do professor intérprete são amiúde constituídos de complexa singularidade e se agravam pelo desconhecimento das atribuições desse profissional pelos demais atores do contexto escolar.

Notas

3 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10436.htm. Acesso em 07 mai 2020.
5 A definição de classe bilíngue é dada no Art. 22, § 1º da seguinte maneira: “são denominadas escolas ou classes de educação bilíngue aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo”.
6 A Secretaria de Educação do Distrito Federal dispõe de serviços de apoio aos estudantes com necessidades educacionais especiais. No caso dos estudantes surdos e/ou com deficiência auditiva os atendimentos são a sala de recursos especializada, a equipe especializada de apoio à aprendizagem composta por um pedagogo e um psicólogo escolar e o serviço de orientação educacional.
7 Portaria número 395 de 14 de dezembro de 2018 – Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal.

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