Introdução
A LIBRAS (língua brasileira de sinais) é a língua natural dos surdos brasileiros e foi reconhecida pela lei de no. 10.436, de 2002, e regulamentada pelo decreto no. 5.626, de 2005. Essas leis não só reconheceram a Libras como língua oficial da comunidade surda, como prevê a existência de intérpretes que atuem nos locais lugares públicos sociais, educacionais e outros, permitindo aos surdos brasileiros uma verdadeira participação cidadã. Com a demanda por intérpretes de libras, gerada pelas leis, cursos de libras estão sendo abertos sem que se saiba como ensinar adequadamente uma língua de modalidade diferente e de características tão peculiares, se comparada com línguas orais – auditivas, como a língua portuguesa. Assim, aspectos como o uso gramatical do corpo e das expressões faciais em LIBRAS foram sendo negligenciados nesses cursos, seguindo-se metodologias de ensino adequadas às línguas orais-auditivas e não visuoespaciais.
A maioria dos cursos de LIBRAS além de não lançarem mão de nenhuma metodologia específica, em geral, ignoravam características da gramática da LIBRAS cujo ensino julgo vital para habilitar os alunos no uso dessa língua. Nada ou pouco se explicava (e ainda se explica) sobre o papel da iconicidade, da simultaneidade e do uso de expressões faciais, dado que o foco estava (e ainda está em alguma medida) no ensino quase que exclusivo de itens de vocabulário.
Isso se reflete nos poucos materiais didáticos desenvolvidos para o ensino de LIBRAS que, em geral, trabalham vocabulário e estruturas gramaticais descontextualizados.
Com isso, ao longo de minha trajetória, fui adaptando e/ou desenvolvendo atividades e estratégias didáticas para trabalhar algumas propriedades gramaticais. Entretanto, não tinha nenhuma garantia de que essas estratégias eram eficazes.
Essas atividades e estratégias foram pensadas principalmente como formas de trabalhar mais o uso do corpo por parte dos alunos. A criação de atividades desse tipo decorreu de uma das constatações que fiz ao longo desses anos ensinando língua de sinais: uma considerável parcela dos ouvintes têm dificuldade em adquirir algumas características da gramática da LIBRAS justamente porque não apresentam uma maior desenvoltura no uso de seus corpos.
O objetivo específico deste trabalho foi analisar o impacto do uso desses recursos em um grupo de alunos e observar o quanto esses recursos foram eficazes no sentido de promover um efetivo aumento na fluência da LIBRAS dos alunos do curso de LIBRAS, futuros tradutores e intérpretes da Língua Portuguesa e da Língua Brasileira de Sinais.
Método
A metodologia utilizada nesta pesquisa consistiu na (1) adaptação de atividades encontrados no ensino de língua estrangeiras para o uso em aulas de LIBRAS; (2) filmagem/registros em vídeo das estratégias no ensino de LIBRAS; (3) anotações em diário de campo; e (4) análise da interação dos alunos ouvintes com uma professora surda e do impacto do uso das estratégias selecionadas na performance dos alunos.
Os sujeitos deste estudo eram alunos do curso de formação de intérpretes da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo. O grupo foi composto por noves ouvintes, sendo três homens e seis mulheres, com idades variando entre 25 e 60 anos.
Realizamos aplicações de estratégias didáticas e coleta de dados por meio de avaliações escritas (questionário) e em libras (contação de uma história). Como atividade para avaliar a capacidade dos alunos de usarem os recursos gramaticais da LIBRAS em análise neste trabalho, foi selecionada a história em imagem e sem palavras apresentada na figura 1.
O motivo que me levou a escolher essa história é que as figuras apresentam personagens realizando ações simultâneas: duas mães com suas respectivas filhas indo para lojas ao mesmo tempo. O que se queria com isso é que os alunos demonstrassem se são capazes de fazer uso da expressão facial, simultaneidade (LIDDELL, 2003) e iconicidade (KLIMA & BELLUGI, 1979) empregadas como recursos na LIBRAS. Além disso, interessava também saber se eles saberiam como usar as duas mãos ao mesmo tempo (estratégia necessária para alcançar a simultaneidade e a iconicidade neste caso).
Em outras palavras, esperava-se que os alunos, ao sinalizarem, dispusessem as personagens em espaços diferentes (iconicidade e simultaneidade) e que fizessem uso de expressões faciais para representar personagens e distinguir diferentes espaços.
A realização dessa atividade consistiu em pedir que cada aluno sinalizasse, somente para a professora, uma história apresentada apenas por meio de imagens, sem que os outros o vissem e sem que ele também visse a sinalização de seus colegas.
Depois disso, estratégias didáticas aplicadas por mim ao longo de toda a disciplina de LIBRAS que ministrei no curso de formação de intérpretes foram filmadas para análise posterior.
É também importante dizer que, apesar de várias estratégias didáticas terem sido aplicadas no grupo, para a finalidade deste estudo, foram selecionadas duas nomeadas como: “imite a imagem” e “incorporação”. O critério de seleção dessas estratégias didáticas foi o fato de serem atividades que implicam no uso dos aspectos gramaticais da LIBRAS: iconicidade, simultaneidade e expressões faciais.
No término da disciplina, foi aplicado um questionário final, cujo objetivo era colher a opinião dos alunos sobre o curso e sobre as estratégias didáticas empregadas. Além disso, queria-se também uma auto-avaliação deles.
Por fim, pedi a eles que recontassem a narrativa que contaram no início do curso. O meu objetivo, desta vez, era, por meio dessa nova contação, poder comparar o desempenho deles antes e depois da experiência da disciplina.
Uma vez colhidos os dados para esta pesquisa, ou seja, os questionários e as filmagens, passei à análise: i) dos dois questionários, ii) de algumas das filmagens das situações de estratégias didáticas e iii) dadas filmagens de contação de história feitas no começo e no final da disciplina.
O diagrama abaixo sintetiza os procedimentos utilizados para o desenvolvimento da pesquisa:
Resultados
Neste estudo pudemos observar uma evolução no uso da LIBRAS, que indica reformulações do modo de pensar esta língua, na forma de interpretá-la e de usá-las para expressar ideias e interagir com o outro.
Apresentamos com síntese final uma tabela que procura resumir a análise que realizamos de todos os alunos que participaram da disciplina aqui focalizada. São destacados os níveis iniciais dos alunos e seu desempenho em relação ao uso da iconicidade, simultaneidade e expressões faciais na primeira e na segunda situação de contação de história.
Pré- Intermediário
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Primeira contação de história
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Segunda contação de história
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Iconicidade |
Simultaneidade |
Expressão Facial |
Iconicidade |
Simultaneidade |
Expressão Facial |
Aluno 1 |
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Aluno 2 |
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Aluno 3 |
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Aluno 4 |
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Aluno 5 |
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Aluno 6 |
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Intermediário
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Aluno 7 |
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Aluno 8 |
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Aluno 9 |
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Legenda: ( - ) ausente; ( + ) presente |
Tabela (1) – Resultado da avaliação dos sujeitos do estudo
Como se pode ver na tabela acima, no início do curso, os alunos pareciam não dominar nem o uso da iconicidade nem o uso da simultaneidade. Entretanto, quatro dos nove alunos apresentavam algum uso de expressão facial.
Ao término da disciplina de LIBRAS, pude observar um maior desenvolvimento por parte dos alunos no que diz respeito ao uso dessas três propriedades gramaticais da língua. Houve uma melhora considerável no uso da iconicidade e da simultaneidade. Entretanto, das três características gramaticais da LIBRAS trabalhadas no curso, aparentemente o uso das expressões faciais foi a mais bem desenvolvida pelos alunos.
Concordamos com Fontana (2005) que quando afirma que qualquer tipo de reflexão só tem condições de chegar a um nível de compreensão mais profunda quando articulada à experiência cotidiana.
O que os alunos ouvintes necessitam é de oportunidades para apropriarem-se de novos conceitos no fluxo da própria comunicação em LIBRAS. Ao possibilitarmos aos alunos se expressarem e lançarem mão dos sentidos e experiências em situações dialógicas para elaborarem seu saber linguístico, abrimos a possibilidade de transformar o saber já consolidado sobre a língua, criando condições para tornarem-se conscientes das formas plurais de enunciar necessárias ao lugar social por eles ocupado como intérpretes de LIBRAS, em permanente formação na busca do desenvolvimento na e pela língua.
Em síntese, pode-se dizer que, assim como no caso do presente trabalho, a filmagem de produções dos alunos no início e no fim de cursos ou disciplinas é um recurso bastante importante para a sua avaliação. Ela permite ao professor observar o progresso de seus alunos, bem como aquilo que ainda precisa ser mais bem desenvolvido. Além da filmagem das produções, outros tipos de avaliação, como os questionários utilizados nesta pesquisa, também representam uma estratégia valiosa de avaliação, pois eles também podem ajudar o professor a se auto-avaliar e a buscar estratégias mais apropriadas para atender às necessidades de seus alunos.
Discussão
As atividades e estratégias aqui discutidas foram pensadas principalmente como formas de trabalhar mais o uso do corpo por parte dos alunos. A criação de atividades desse tipo decorreu de uma das constatações que fiz ao longo desses anos ensinando língua de sinais: uma considerável parcela dos ouvintes têm dificuldade em adquirir algumas características da gramática da LIBRAS justamente porque não apresentam uma maior desenvoltura no uso de seus corpos.
Sendo assim, o objetivo deste trabalho foi avaliar o impacto que essas estratégias podem ter no que diz respeito ao uso da iconicidade, simultaneidade e expressões faciais por alunos ouvintes.
Os alunos do referido curso foram avaliados no início e no fim da disciplina de LIBRAS, ministrada por mim. Objetivei, através dessa avaliação, observar se o trabalho sistemático da iconicidade, simultaneidade e uso de expressões faciais por meio de estratégias didáticas desenvolvidas por mim tiveram algum impacto no desenvolvimento da fluência dos alunos.
Os resultados mostram que sim. Mais especificamente, os resultados mostram que as estratégias empregadas favoreceram esse desenvolvimento.
Certamente, mais estudos e mais pesquisas precisam ser feitas. Apesar dos meus esforços em lançar mão de conhecimentos teóricos e aliá-los à prática, o ensino de LIBRAS é uma área nova e que, como tal, carece de muitos outros trabalhos como este.
Mesmo assim, creio que este trabalho deu algumas contribuições para o ensino de LIBRAS no Brasil. Entre elas, destaco que, com esse trabalho, foi possível (1) registrar os percursos e percalços da minha formação como professora de LIBRAS; (2) ressaltar, principalmente para outros professores surdos, a necessidade de conhecimento teórico relacionado à educação, de forma geral, e, principalmente, relacionado ao ensino de línguas, para que assim seja possível rever suas práticas de forma mais crítica; (3) chamar a atenção para o desenvolvimento de recursos didáticos mais adequados para o ensino de propriedades gramaticais da LIBRAS cuja aquisição é fundamental para tornar alguém proficiente nessa língua, e (4) ressaltar a importância da avaliação do desenvolvimento dos alunos por meio de critérios bem fundamentados.
FERREIRA-BRITO, L. Por uma gramática das linguas de sinais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
FONTANA, Roseli Aparecida Cação. Mediação pedagógica na sala de aula. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. (Coleção Educação Contemporânea).
GESSER, Audrei. Metodologia de Ensino em LIBRAS como L2. UFSC: Florianopolis, 2010.
KLIMA, Edward S. & Ursula BELLUGI. The Signs of Language. Cambridge: Harward University Press, 1979.
LIDDEL, Scott K. Grammar, gesture and meaning in American Sign Language. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
QUADROS, Ronice Muller de & KARNOPP, Lodenir Becker. Língua de Sinais Brasileira: Estudos lingüísticos. Porto Alegre: Artmed Editora, 2004.
RICHARDS, Jack. C. O ensino comunicativo de línguas estrangeiras. São Paulo: Special Book Services Livraria, 2006.
WILCOX, Sherman; WILCOX, Phillis Perrin. Aprender a ver. Editora Arara Azul: Rio de Janeiro, 2005. (Coleção Cultura e diversidade)