Na verdade, o que prétendem os opressores "é transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime", e isto para que, melhor adaptando-os a esta situação, melhor os dominem... são casos individuais, meros "marginalizados", que discrepam da fisionomia geral da sociedade ... "Esta é boa, organizada e justa. Os oprimidos, como casos individuais, são patologia da sociedade sã, que precisa, por isto mesmo, ajust6-los a ela, mudando-lhes a mentalidade de homens ineptos e preguiçosos." (FREIRE, 1987: 60-61).
Eu lembro de me sentir completamente fora de o que quer que estivesse acontecendo à minha volta na escola. Meus olhos não estavam sendo usados para o seu potencial, e a informação era empurrada para meus ouvidos ... O pai e a mãe de Clark eram ambos surdos. Isto realmente teve um efeito em mim já que eu sempre tive uma completa barreira linguística entre eu e o mundo adulto ... Eu frequentemente ia para a casa de Clark depois daquilo e através das conversas com a mãe e o pai de Clark a minha confiança elevou-se. Era como se minha educação sobre o mundo estivesse finalmente começando, algo que a escola nunca foi capaz de fazer. 3 (MASON, 1991 :86-87).
Considerações Iniciais
A história da educação está repleta de momentos marcantes e violentos. Violência não só marcada pela imposição física de uma vontade alheia, mas também por uma violência psíquica que até hoje se esforça por deixar suas marcas, visando uma suposta normalização.
Neste sentido, a história da educação dos surdos não é diferente. Ela foi - e ainda é - permeada pela busca de uma reabilitação do indivíduo surdo. Por detrás deste objetivo se encontra justamente um ideal normalizante, de "re-habilitar", ou seja, habilitar novamente, dar habilidades mais uma vez, como se somente com tais habilidades fosse possível a constituição de um ser humano. Como se este ser - visto como ainda não humano - tivesse perdido algo. Ironicamente, por décadas, o inverso não foi questionado, ou seja, se a não humanidade está, de verdade, mais do outro lado desta díade. O surdo parece não conseguir encontrar esse algo de humanizador mais por uma inabilidade do meio que não soube entender o ser à sua frente, do que por uma falta de habilidade deste ser em manter o que supostamente deveria ter. Como dar de volta algo que não havia sido dado anteriormente? Como desejar, neste vício educativo, que o surdo constitua-se se as próprias práticas que o constituem frequentemente não estão próximas? No mínimo, absurdo.
lnteressantemente, no caso dos surdos, um detalhe - não tão pequeno-tem sido insistentemente descartado: a língua de sinais. A habilidade de usar e se comunicar nesta língua espaço-visual, somente construída na relação com o outro sinalizador, foi "desaparecida" durante longos anos. Mas, apesar de todos os esforços por negá-la, insiste heroicamente - prova contundente de sua força, função e pertinência - em nos mostrar que o corpo humano possui mais habilidades do que qualquer teoria possa um dia vir a demonstrar.
Longe de qualquer intenção anárquica em relação à ciência e seus constructos, o presente artigo tem por objetivo entrelaçar teoria e prática, o objetivo e o subjetivo, de forma humana e pertinente na compreensão de alguns pontos que influenciam a constituição dos indivíduos, em especial, dos surdos prélinguísticos, e da violência psíquica praticada há muito tempo pela falta de um equilíbrio humano-pedagógico entre o meio e estes.
A Constituição do Ser Humano
Antes de aprofundar qualquer aspecto relativo às especificidades da constituição do indivíduo com surdez e dos infrutíferos caminhos adotados ao longo da história pelo meio à sua volta, é preciso compreender dois pontos constitutivos de todos os seres humanos: o primeiro, que a construção da identidade acontece na interação com o mundo/outro (constituição psíquica); e o segundo, que todo ser humano busca se comunicar.
Em relação ao primeiro aspecto, acredita-se que o desenvolvimento de um ser somente é possível a partir da interação com o mundo e as pessoas. Será o olhar deste "outro" que constituirá o "eu". Mais do que isso, será a qualidade deste olhar que exercerá uma influência mais positiva ou mais negativa na constituição deste indivíduo. Portanto, um aspecto essencial a ser explorado é: que olhar é este? Desta forma, temos uma das possíveis origens de muitas das questões de ordem emocional. Nos aprofundaremos mais neste aspecto posteriormente.
Quanto ao segundo aspecto, existe em cada ser humano uma natural busca humana por formas de expressão e de comunicação com o meio e consigo mesmo. Mas, tal busca será bem-sucedida apenas se houver um ambiente estimulante e adequado. É somente desta forma que se tornará possível alcançar um refinamento linguístico, superando uma comunicação puramente não-verbal e rumando na direção do domínio de uma língua. É com o desenvolvimento linguístico do indivíduo que se torna possível o conhecimento do mundo, a troca de experiências, a aquisição da noção de tempo e de espaço, a introjeção de valores e de normas sociais. Ou seja, a linguagem é fundamental para um desenvolvimento emocional, social, cognitivo e intelectual do indivíduo. Para CAPOVILLA (1997), a linguagem tem importância para o pensamento e a comunicação, ou seja, tem função tanto intrapessoal como interpessoal e, por isso, é imprescindível que o indivíduo tenha as condições de desenvolver-se linguisticamente até os quatro ou seis anos de idade, período crítico do desenvolvimento que quando não aproveitado pode gerar sequelas globais.
Em suma, o indivíduo que vivenda uma estimulação adequada e precoce pode adquirir uma primeira língua como base linguística e pode se desenvolver de forma global, isto caso empecilhos de outra ordem não tomem parte.
No caso de crianças ouvintes, segundo CÁRNIO et ai. (2000), a aquisição da língua oral acontece de forma natural em situações contextualizadas e motivadoras e, assim, estas podem se desenvolver linguisticamente. Mas e quando a língua oral não se encontra acessível em um período crítico do desenvolvimento?
O Caso dos Surdos
Segundo NORTHERN & DOWNS (1991, apud LUZ, 2002:4), as deficiências auditivas severa e profunda são suficientemente graves para impedir a aquisição normal da linguagem oralourai. Em especial, a comunicação está usualmente muito prejudicada no caso da criança com surdez pré-linguística (i.e., que não teve tempo de assimilar a base linguística na modalidade oral por conta de uma perda auditiva severa ou profunda anterior a esta aquisição).
Nestes casos, não será adquirida uma língua porque não houve acesso suficiente ao estímulo linguístico disponível. Caso permaneça sem uma estimulação adequada e sem uma língua acessível, naturalmente apresentará uma perda do período crítico cerebral e um sério comprometimento no desenvolvimento global. Desta forma, o surdo terá um déficit em relação ao ouvinte.
Para WOLL (1998), desenvolver a base linguística é vital para o desenvolvimento da criança surda. No entanto, para a autora, a grande questão é de que forma o desenvolvimento normal pode ser mais satisfatoriamente alcançado e qual é a modalidade linguística que deve ser aprendida.
Sabendo, portanto, da importância da aquisição de uma base linguística e a fim de evitar as consequências negativas de uma falha neste processo, como garantir o domínio de uma língua para dar bases sólidas ao desenvolvimento do indivíduo surdo prélinguístico de ambiente auditivo oral? A esta questão soma-se uma segunda geralmente esquecida, mas de suma importância e que é foco deste artigo: sabendo que o olhar do outro contribui enormemente na constituição psíquica dos indivíduos, e que a técnica, por mais rica que seja, pode ser muito prejudicial se estiver descolada eticamente de seus fins e se não estiver atenta às suas sequelas emocionais nos indivíduos, como garantir que esta aquisição linguística não aconteça de forma violenta para o psiquismo desta criança?
Caminhos do Oralismo
Até a década de 1980, a visão quase que dominante era a de que o principal problema nos casos de surdez pré- linguística era a barreira presente nestes indivíduos, o que dificultava o seu desenvolvimento linguístico oral (fala). Para CAPOVILLA (1997:563) "durante séculos a crença de que o Surdo não seria educável ou responsável pelos seus atas foi iustificada com base em textos clássicos, tanto sacros quanto seculares". Por trás desta concepção encontrava-se uma inquestionável crença social, familiar e profissional - dentre tantas - de que a fala oral seria a única forma de comunicação verbal, pois seria o "normal". Neste contexto, a surdez era vista puramente como uma deficiência orgânica e, para a aquisição "normal" da linguagem (i.e., oral) e o "bem" da criança surda, deveria haver, como uma das ações necessárias, a proibição da língua de sinais, pois esta atrapalharia todo o processo.
Após décadas de insistência, as consequências linguísticas desta abordagem oralista foram desastrosas. Para CAPOVILLA (1997), apesar das intenções de integração do Oralismo, de "normalizar" os surdos de acordo com padrões dos ouvintes, este processo não teve sucesso. Por conta da demora, radicalismo, custo e relativa eficiência da filosofia oralista, os surdos tiveram, nas décadas seguintes, seu nível comunicativo, intelectual, cultural e social muitíssimo rebaixado. Em todo o mundo, apenas uma pequena porcentagem dos surdos oralizados conseguiu aprender a falar inteligivelmente a outros ouvintes, e o mesmo problema ocorreu com a qualidade de sua leitura e sua escrita. Somente cerca de 10% dos surdos educados no Oralismo conseguiam alcançar um desenvolvimento comunicativo (leitura da escrita e leitura labial) satisfatório.
Apesar do aprimoramento da técnica, os resultados, em suma, foram: uma grande dificuldade no aprendizado da língua oral pelos surdos dada a natureza sonora dos estímulos; uma baixa porcentagem de sucesso na aquisição da língua oral - que era atribuída a uma falha do indivíduo e não a uma limitação da técnica, entrando em um círculo vicioso que ajuda a explicar a insistência por muitas décadas no uso desta abordagem; demora e baixa qualidade da apropriação linguística, o que gerou indivíduos sem um conhecimento metalinguístico; uma baixa troca comunicativa com o meio; e, finalmente, como uma consequência quase natural das anteriores, déficits no seu desenvolvimento emocional, cognitivo, intelectual e social.
Entre as tristes consequências emocionais decorrentes desta visão humana parcial e organicista da pessoa com surdez tivemos: um mundo em grande parte inacessível para o indivíduo - pela falta de um instrumental linguístico-e uma expressão emocional naturalmente mais bruta (física); olhar negativo e depreciativo constituindo indivíduo com deficiência orgânica (inabilidade imaginada transformando-se em inabilidade real); polarização no tratamento dado, variando entre uma superproteção ou uma permissividade excessivas; e frequentes distúrbios emocionais como agressividade, nervosismo, impulsividade, insegurança, dependência, depressão, paranóia, baixa autoestima, entre outros.
Segundo ADORNO,
"...Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios - e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana - são fetichizados, porque os fins - uma vida humana digna - encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas... No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica, trata-se simplesmente de pessoas incapazes de amar... " (1986: 132- 133)
A colocação de Adorno, escrita originalmente na década de 60 com o intuito de melhor tentar compreender os fatores que influenciaram o horror praticado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, mostra-se extremamente pertinente e ajuda a avaliar e estimar melhor as sequelas emocionais geradas por anos de técnica (oralista) pura. Notadamente, no Oralismo, a violência psíquica pela imposição de um olhar opressor teve sérias consequências e inviabilizou a existência de um indivíduo surdo para além de sua limitação orgânica, como um ser também diferente. Patologizou-o e buscou adaptá-lo ao meio, sem questionar os objetivos de tal técnica. Acreditou que os fins justificam os meios, mas, durante o caminho, esqueceu-se de tais fins. Consequência: atolou-se nos meios e, por isso, não chegou em lugar algum.
O caminho percorrido pelo Oralismo foi fruto de uma dificuldade humana de lidar com a diferença e ver o outro como um sujeito, vivo e sensível ao mundo, e não como um objeto passível de depósito - como diria Paulo Freire - bancário. Mais do que isso, foi consequência de uma educação técnica e bancária iniciada há várias gerações, que apenas ecoou na educação praticada junto aos surdos, mas que antes, (des)educou a todos.
Na esperança de que o passado possa ensinar algo à prática presente e ajudar na escolha dos caminhos futuros, como então tornar a aquisição linguística menos violenta melhorando o contato efetivo com a pessoa surda e diminuindo as privações linguísticas e emocionais vivenciadas por esta?
Caminhos (possíveis) do Bilinguismo
Com mais intensidade, a partir da década de 1980, um outro tipo de olhar começou a ser direcionado aos indivíduos surdos. Pela união das evidências científicas e da atenção aos relatos pessoais surgiu o Bilinguismo.
Entre as principais descobertas científicas incorporadas à sua prática temos: a língua de sinais como uma língua completa e uma língua que pertence a uma comunidade linguisticamente minoritária - a Comunidade Surda (STOKOE, 1960, KLIMA & BELLUGI, 1979, SACKS, 1989, KYLE, 1990, SKLIAR, 1998); e a língua de sinais permitindo, por suas características visuoespaciais e por aproveitar o canal intacto (visual) de pessoas com surdez pré-linguística, a formação de uma sólida base linguística que será essencial para viabilizar o desenvolvimento deste indivíduo como um todo. (MARSCHARK, 1993, CAPOVILLA, 1997, INES, 1997, FERNANDES, 2000).
A partir desta mesma época, começaram a ser publicados diversos relatos de surdos ao redor do mundo descrevendo de forma muito rica e pessoal as experiências vividas durante os anos de Oralismo. No geral, seus narradores relatam um grande prazer na descoberta da língua de sinais, mostram um posicionamento claramente favorável ao uso da língua de sinais na educação das crianças surdas, e um forte repúdio às práticas puramente oralistas de educação e ao olhar que os transformava em meros objetos. Tais relatos estão repletos de uma alta carga emocional e, por isso, podem ser vistos como muito ilustrativos do violento processo pelo qual passaram gerações de surdos durante as dezenas de anos da imposição do Oralismo. Entre alguns dos relatos temos: MASON (1991) da Escócia, LABORIT (1994) da França, STRNADOVÁ (2000) da Tchecoslováquia, o Surdo Ricardo (em MOURA, 2000) de São Paulo, e PIMENTA (2001) do Rio de Janeiro.
Em consonância com esta visão mais integrada implícita originalmente no Bilinguismo, o pediatra e psicanalista D. W. WINNICOTT em seu trabalho clínico com crianças e bebês afirma que,
"... por não haver duas crianças rigorosamente idênticas, requer-se de nós que nos adaptemos de modo específico às necessidades de cada uma. Isso significa que todo aquele que cuida de uma criança deve conhecê-la e trabalhar com base numa relação viva e pessoal com o objeto de seus cuidados, e não aplicando mecanicamente um conhecimento teórico... " (1993:45).
Neste sentido, suas colocações vão claramente em defesa da criação de um ambiente suficientemente bom - tanto social como familiar - atento às especificidades individuais da criança de uma forma geral. Este parece ser justamente o posicionamento encontrado nas práticas verdadeiramente bilinguistas 4 de educação dos surdos, com a criação de um ambiente que supra as necessidades diferenciadas da criança surda e não o seu contrário, que a criança se molde aos rígidos padrões sociais impostos sem a possibilidade de reconfiguração, como foi praticado nos anos do Oralismo.
A visão do Bilinguismo pode ser assim sintetizada:
- a criança deve ser imersa o mais precocemente possível em ambiente fluente em língua de sinais, com profissionais fluentes em língua de sinais, escola bilíngue, família com alguma língua de sinais, e surdos adultos nativos, entre outras coisas;
- a língua de sinais, antes de ser um meio de aprender a língua oral, tem um fim em si mesmo, a de estruturar um ser humano;
- que somente com uma sólida base linguística (com a língua de sinais como primeira língua → L1) é possível o aprendizado da escrita e/ou da língua oral do país (como uma segunda língua → L2);
- o seu questionamento não é na falta de audição e na reabilitação, com a falha estando no indivíduo, mas sim na necessidade de adequação da estimulação, ou seja, na adequação de um ambiente que não pode falhar e que, por isso, dever ser questionado e instrumentalizado;
- poro que o ambiente familiar consigo dar conta de forma mais adequada da tarefa de educar a criança surda são vitais tanto o seu acolhimento como a sua orientação precoce, criando um espaço para que os pois possam elaborar as suas questões e dificuldades tanto práticas como emocionais (MARSCHARK, 1993), ajudando-os para que desenvolvam, no seu próprio ritmo, uma visão mais integrada de seu filho e para que reencontrem uma melhor ação como pais;
- e, por fim, para que tudo isso seja possível, é necessária, também, a criação de um espaço de acolhimento e de orientação para todos os profissionais envolvidos na educação do indivíduo surdo, para que, além da parte técnica, possam lidar, no seu próprio ritmo, com suas dúvidas e angústias, propiciando um momento de reflexão e de possível quebra de uma visão exclusivamente organicista, a partir de sua reestruturação interna e do desenvolvimento de uma visão mais integrada do indivíduo surdo (AMIRALIAN, 1997; BOTELHO 1998).
Entre as consequências linguísticas do Bilinguismo verdadeiro podemos encontrar: uma maior facilidade no aprendizado de uma primeira língua (L1) dada a natureza visual dos estímulos; um maior êxito na constituição de uma base linguística; que o uso da comunicação visual na estimulação precoce é mais natural e permite contato mais direto (experienciável) para surdo; uma apropriação linguística mais profunda (conhecimento metalinguístico) e com maior rapidez - não perdendo o período crítico cerebral; uma melhora na troca comunicativa (o surdo torna-se receptor e também agente comunicativo); e uma melhora significativa nas habilidades sociais, cognitivas e intelectuais.
Entre as consequências emocionais podemos encontrar: por existir uma verdadeira base linguística o mundo fico mais acessível e a expressão individual torna-se, consequentemente, mais refinada - com a apropriação verdadeira de uma língua surge a comunicação verbal, mais rica e complexa; com um olhar mais positivo e uma maior aceitação da diferença e do diferente, o surdo pode constituir-se de forma mais saudável e desenvolver uma auto-estima mais positiva, o que é essencial para que possa apresentar uma maior maturidade emocional e tornar-se, verdadeiramente, um indivíduo; e, por fim, como consequência das anteriores, espera-se que tal ambiente possibilite uma redução no índice de distúrbios emocionais apresentado por estes indivíduos (MARSCHARK, 1993).
O Bilinguismo, de uma forma geral, propõe uma outra visão da pessoa surda. Uma visão mais integrada e humana, preocupada tanto com a técnica quanto com o indivíduo. Naturalmente, por ter como um dos pressupostos um maior respeito aos indivíduos e suas particularidades, gera bem menos violência ao "eu" do surdo, permitindo a construção de uma identidade mais positiva no mesmo, respeitando seu ritmo sem imposição externa.
Claro que ainda falta um maior aprimoramento do Bilinguismo para alcançar uma prática educacional verdadeiramente humana e bem-sucedida, precisando, para isso, atingir também as questões culturais e sociais. Por isso, é importante ressaltar que a condição bilíngue do surdo e a filosofia bilinguista não serão compreendidas nem praticadas verdadeiramente enquanto não forem profundamente trabalhadas, em todos os envolvidos neste processo (inclusive nos surdos), as questões que alimentaram durante séculos a visão normalizadora em relação aos "deficientes" e aos "diferentes". Neste sentido, torna-se vital a criação de espaços humanos que acolham tais pessoas e propiciem o início deste longo exercício reflexivo.
Em suma, os relatos de surdos, juntamente com o embasamento teórico e a maior abertura pedagógica, implícitos no Bilinguismo verdadeiro, são a base essencial para a construção de caminhos mais consistentes e humanos na relação com a pessoa surda. O Bilinguismo aponta numa direção menos violenta, mais sensível às potencialidades dos surdos, não só às suas limitações como faz o Oralismo. O Bilinguismo os vê de forma mais integrada e, isso, já é um grande avanço "técnico". Potencialmente o Bilinguismo mostra-se como o melhor caminho na educação dos surdos, mas, como toda prática pedagógica e social, precisa estar muito atento para não se perder de seus fins durante os meios.
Considerações Finais
A prática de uma violência psíquica em relação aos indivíduos é mais comum do que desejaríamos e, muitas vezes, passa desapercebida. No caso das pessoas com surdez pré-linguística, tal violência psíquica tem se manifestado há muito tempo, mais notadamente nas comuns práticas de obrigá-los a aprender a língua oral e na proibição do uso da língua de sinais. Entre os objetivos por trás desta prática está a suposta salvação e reabilitação da pessoa surda. Porém, o fato é que permanecerá fadada ao fracasso por ainda não conseguir enxergar as reais necessidades e possibilidades do educando, pois coloca as suas prioridades ideológicas e as do meio acima de tudo. Ou seja, as práticas opressoras e colonialistas pecam pela falta de capacidade de perceber verdadeiramente o "outro" à sua frente.
O que decorre disso? Tal falta (orgânica) sublinhada com caneta negra torna-se uma outra falta. Uma que não precisaria ocorrer: a falta psíquica. E isso justamente no momento em que nós, os "outros", somos mais importantes: no desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Nesta prática, inconscientemente ou ingenuamente, atribuímos certos valores e dizemos para este indivíduo com tal olhar: você é uma pessoa menor porque lhe falta audição! Neste sentido, o surdo parece carregar o estigma de não ser "normal". Para GOFFMAN (1982: 15), nós "acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano". Na continuação, GOFFMAN (1982: 13) ainda afirma que a condição necessária para a quebra do estigma é o encontro verdadeiro entre duas partes, em "uma linguagem de relações e não de atributos".
A prática automática, puramente técnica, precisa ser transformada pela consciência e evoluir para uma prática mais crítica e humana, carregada de afeto. Somente quando o indivíduo surdo for visto de forma inteira, com suas limitações e capacidades, tornar-se-á possível quebrar o estigma e tratá-lo como um ser humano. No caso da pessoa surda, como um ser além da perda auditiva que precisa ser tratada.
Neste processo todo, o mais irônico é que, na maioria dos casos, um olhar mais humano e empático, um contato vivo e aberto de uma tarde poderia bastar para que fosse compreendida a importância de se respeitar os indivíduos nas suas diferenças, e no caso dos surdos, a importância da língua de sinais. Mas por que ainda precisamos tanto de dados e provas? Por que é tão difícil sentir esta língua e seus usuários? Uma possível resposta para isso é que fomos, todos, surdos e ouvintes, (des)educados durante todos estes anos para acreditar que existe um padrão de normalidade e que todos devem ser "isso" ou "aquilo". Será que neste processo não sofremos todos, também, ideologicamente, um tipo de violência psíquica?
Se há falta de uma consciência crítica e de uma prática mais humana, como fazer para quebrar com isso? Nos últimos anos têm sido a Comunidade Surda - e alguns ouvintes simpáticos a esta luta - que têm manifestado seu posicionamento, muitas vezes de forma um pouco agressiva e radical. Mas quem pode culpá-los de gritar e de reclamar quando durante tanto tempo foram calados? Não seria mais fácil gritarmos juntos contra as violentas práticas sociais que atingem a todos nós e, pela ampliação geral da consciência crítica, tentar quebrar os outros silêncios também?
É importante ressaltar que de forma alguma é intenção deste artigo diminuir ou negar - inclusive da mesma forma como foi negada a língua de sinais por tantas décadas - a importância da língua oral (no caso do Brasil, do Português). A questão toda é colocá-la em outro lugar, e priorizar o ser antes do ter. Tudo indica que a língua oral, nestes casos de surdez pré-linguística, nunca irá substituir o papel da língua de sinais, nem linguisticamente, nem psiquicamente na constituição do ser que tem surdez. Mas se a prática mostrar o contrário, ótimo: teremos duas opções! Mas muito antes disto, o mais importante é que o surdo sendo mais oralista ou mais sinalizador o seja por escolha própria, não por conta de uma determinação externa que o violenta diariamente.
Enquanto a falta for o único atributo reconhecido no contato com o surdo, este encontrará muita dificuldade em se ver de forma mais inteira, permanecerá fragmentado e pela violência psíquica sofrida, terá dificuldades em estruturar uma identidade mais sólida. Se for o caso até que seja a construção de uma identidade mais ligada à língua oral em vez da língua de sinais, mas desde que seja assim por ele mesmo e não pelos outros.
Que os caminhos da violência psíquica e surdez- e o mesmo vale para as outras formas de ser "diferente" - no futuro possam finalmente se desencontrar, e que cada um possa, com isso, reencontrar o próprio caminho, o que certamente será, por si só, extremamente saudável.
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