Introdução
Este trabalho tem como objetivo reconhecer a importância da leitura para a produção escrita do surdo em sua segunda língua: a Língua Portuguesa. Sua divisão é feita em quatro partes. Na primeira, explica-se a organização cerebral da língua oral e da língua de sinais. A segunda parte é composta pela argumentação da Libras como língua natural e da Língua Portuguesa como segunda língua do surdo. Na terceira, aborda-se a importância da leitura na aquisição da Língua Portuguesa pelo surdo. A quarta parte finaliza este trabalho com o relato de experiência, expondo escritas produzidas por surdos que possuem e que não possuem hábito de leitura.
1. Organização cerebral da língua oral X língua de sinais
A preocupação da humanidade com a relação do cérebro e a fala é antiga, pois seus registros primitivos possuem data a partir de 3.000 a.C., sendo feitos por médicos egípcios. Porém a definição de quais eram as regiões do cérebro responsáveis pela fala humana foi feita somente a partir do meio do século XIV, até então faltavam evidências científicas.
todas as áreas diretamente ligadas à fala estão diretamente ligadas ao hemisfério esquerdo. De fato, na espécie humana ocorre uma especialização dos hemisférios cerebrais, de modo que o hemisfério esquerdo assume a maior responsabilidade pelas funções ligadas à linguagem e o hemisfério direito assume a maior parte das funções não-verbais ou construtivas. Este fenômeno, que atualmente é enunciado com clareza, não foi facilmente descoberto ao longo da história. (RODRIGUES, 1993, p. 11)
A responsabilidade do hemisfério esquerdo pela fala foi descoberta inicialmente mediante autópsia de pacientes que sofreram acidente vascular cerebral neste hemisfério, detectando neles dois tipos diferentes de afasia: expressiva e receptiva, dependendo da área lesionada neste hemisfério. A autópsia era o único recurso capaz de determinar qual o hemisfério responsável pelas funções lingüísticas de um indivíduo, ou seja, era preciso esperar um indivíduo morrer para verificar a existência ou não de uma afasia. Na década de 50, foi desenvolvida uma técnica capaz de determinar qual hemisfério é o responsável pelas funções lingüísticas de um indivíduo, estando ele ainda vivo. A especialização hemisférica cerebral foi rigorosamente estudada nas últimas décadas, deixando bem estabelecida a comprovação dos seguintes fatos:
- o hemisfério esquerdo é o principal responsável pelas funções de linguagem dos seres humanos;
- o hemisfério direito é o principal responsável pela análise de estímulos acústicos não lingüísticos e por tarefas intelectuais não verbais ou do tipo construtivo;
- os estudos em indivíduos surdos com lesões cerebrais demonstraram que a língua de sinais apresenta uma organização neural semelhante à da língua oral. (RODRIGUES, 1993, p. 12)
A organização neural da língua de sinais equivale comprovadamente à da língua oral, no entanto, ainda persistem mitos que contradizem este argumento:
As línguas de sinais, por serem organizadas espacialmente, estariam representadas no hemisfério direito do cérebro, uma vez que esse hemisfério é responsável pelo processamento de informação espacial, enquanto que o esquerdo, pela linguagem. (QUADROS E KARNOOP, 2004, p. 36)
O mito citado apresenta uma visão equivocada e que subestima a língua de sinais, entretanto os estudos realizados em surdos com lesões cerebrais o depreciam, pois revelam que surdos com lesão no hemisfério direito tinham preservada a sua capacidade de processamento de informações linguísticas das línguas de sinais e surdos com lesão no hemisfério esquerdo processavam informações espaciais não-linguísticas, mas não conseguiam lidar com as informações lingüísticas. De acordo com os dados apresentados, além das informações linguísticas das línguas de sinais serem processadas no hemisfério esquerdo por fazer parte da linguagem humana, ela apresenta uma complexidade ainda maior que as línguas orais, pois usa também o hemisfério direito devido a sua modalidade visoespacial.
Outro aspecto de suma importância sobre a organização cerebral da linguagem é a existência de um período crítico para a aquisição da linguagem. Neste período, é imprescindível a presença de estímulos externos para a maturação do cérebro, pois, após este período crítico, a plasticidade neuronal diminui e a habilidade do cérebro no desenvolvimento da fala e da linguagem fica comprometida permanentemente. Tal fato pode ser evidenciado tanto em crianças ouvintes quanto em crianças surdas. Segundo Lennenberg (1967 apud QUADROS e FINGER, 2008), o período crítico se iniciaria por volta dos dois anos e se encerraria por volta da puberdade.
A língua apresenta uma organização cerebral, independente de ser de modalidade oral-auditiva ou gesto-visual. O fato de experimentos comprovarem que os surdos congênitos apresentam maior habilidade para utilização dos estímulos visuais do que os ouvintes, e até mesmo do que os filhos de surdos que utilizam a língua de sinais desde a infância, explica a compensação da natureza pela falta de audição devido à competição entre vias neuroniais, muito precoce no desenvolvimento do cérebro humano, e não pela prática da língua de sinais. Além do mais, pode-se perceber do ponto de vista biológico que o surdo está mais preparado para a comunicação em língua de sinais.
2. Língua natural (L1) e segunda língua do surdo (L2)
Para continuidade da discussão, será feita a consideração de Libras como língua natural (L1) (ou primeira língua) e de língua portuguesa como segunda língua (L2) dos surdos do Brasil. Tal consideração se justifica pela condição de aquisição dessas línguas. Como vimos anteriormente, mediante o estudo da organização cerebral da língua oral X língua de sinais, a aquisição da língua de sinais é a mais apropriada para o indivíduo surdo, devido a sua condição física, pois de acordo com Rodrigues (1993, p. 17): “a natureza compensa a perda da audição aumentando a capacidade visual do surdo”. Por outro lado, a aquisição da língua portuguesa, assim como de qualquer outra língua de modalidade oral-auditiva, não poderá acontecer de forma natural ao surdo, exigindo mecanismos sistemáticos e formais.
A discussão deste trabalho está em consonância com a abordagem lingüística de aquisição de linguagem, que possui como premissas básicas:
- considerar a linguagem como tendo uma gramática ou estrutura (I-language) que é de certa forma independente do uso da linguagem (E-Language);
- a AL 2 como um processo de descobertas das regularidades das regras das línguas que qualquer falante conhece;
- a linguagem como característica espécie humana, com forte base genética em que o ambiente tem um papel menor no processo maturacional;
- a determinação da existência de um dispositivo específico para a AL – LAD. O LAD é o dispositivo inato que permite à criança acionar a gramática da sua língua materna a partir dos dados linguísticos a que está exposta. Esse dispositivo é a Gramática Universal, que contém princípios rígidos e princípios abertos. Os princípios rígidos captam aspectos gramaticais comuns a todas as línguas humanas. Os princípios abertos, também chamados de parâmetros, captam as variações das línguas através de opções determinadas e limitadas. Quando todos os parâmetros estão fixados, a criança adquiriu a Gramática Núcleo, isto é, a gramática de sua língua. (QUADROS, 1997, p. 68)
De acordo com pesquisas desenvolvidas, a aquisição de língua de sinais de crianças
surdas, filhas de pais surdos, com acesso precoce desta língua, é equivalente ao processo de aquisição das línguas faladas, pois elas apresentam o input 3 linguístico adequado, representando, no entanto, apenas 5% a 10% das crianças.
Os estágios de aquisição da linguagem de crianças surdas se dividem em:
Período Pré-linguístico – é o período do balbucio, inicia desde o nascimento até por volta dos 14 meses de idade. O balbucio ocorre tanto em crianças surdas como em ouvintes, comprovando a capacidade inata para a linguagem. Os bebês surdos e os bebês ouvintes apresentam os dois tipos de balbucio: balbucio oral e balbucio manual. A partir de um determinado momento, um dos balbucios é interrompido, sendo desenvolvido o balbucio da sua modalidade, pois o input propicia o desenvolvimento de um dos modos de balbuciar.
Estágio de um Sinal – de um modo geral, inicia por volta dos 12 meses percorrendo até por volta dos 2 anos. Karnopp (1994 apud QUADROS, 1997, p. 71) cita estudos que apontam o início do estágio de um sinal por volta dos 6 meses em bebês surdos, filhos de pais surdos, porém essa produção é composta apenas por gestos, diferenciando-se dos sinais produzidos por volta dos 14 meses, sendo iniciada anteriormente baseada no desenvolvimento dos mecanismos físicos (mãos e trato vocal). Nesta fase, as crianças omitem flexões e uso do sistema pronominal. As crianças com menos de 1 ano, tanto surdas quanto ouvintes, apontam constantemente para indicar objetos e pessoas, sendo tal apontação abandonada quando elas iniciam o estágio de um sinal.
Estágio das Primeiras Combinações – inicia por volta dos 2 anos de idade. Neste estágio, as crianças não conseguem flexionar todos os verbos, iniciam o uso do sistema pronominal, mas com erros de reversão, nomeia os objetos pertencentes a um contexto do presente.
Estágio de Múltiplas Combinações – inicia por volta dos 2 anos e meio a 3 anos, apresentando nas crianças a chamada explosão do vocabulário. Começam a usar formas particulares para diferenciar nomes e verbos. Inicia o uso do sistema pronominal com referentes não presentes, porém os empilham num único ponto do espaço. Esse período é marcado pela supergeneralização, no qual as crianças fazem algumas flexões verbais inaceitáveis em língua de sinais, assim como as crianças ouvintes usam eu ‘fazi’, ‘gosti’ e ‘sabo’. Os verbos são flexionados adequadamente entre 5 e 6 anos de idade.
Apesar da existência da analogia da aquisição de língua de sinais e línguas orais entre crianças surdas e crianças ouvintes, é importante ressaltar que essa equivalência ocorre apenas em crianças surdas filhas de pais surdos que usam a língua de sinais. Essas crianças surdas que possuem o input linguístico adequado é uma grande minoria, então existe uma problemática com a maioria das crianças surdas, pois são filhas de ouvintes, que geralmente não sabem a língua de sinais, dificultando a aquisição da criança em sua primeira língua no período crítico. Mesmo os pais ouvintes que aprendem uma língua de sinais, não a usam constantemente, como, por exemplo, para se comunicarem entre eles ou quando recebem visitas. A língua de sinais é usada em decorrência da comunicação exclusiva com a criança surda, propiciando então um ambiente linguístico empobrecido para ela.
Os que têm surdez pré-linguística, incapazes de ouvir seus pais, correm o risco de ficar seriamente atrasados, quando não permanentemente deficientes, na compreensão da língua, a menos que se tomem providências eficazes com toda a presteza. E ser deficiente na linguagem, para um ser humano, é uma das calamidades mais terríveis, porque é apenas por meio da língua que entramos plenamente em nosso estado e cultura humanos, que nos comunicamos livremente com nossos semelhantes, adquirimos e compartilhamos informações. Se não pudermos fazer isso, ficaremos incapacitados e isolados, de um modo bizarro – sejam quais forem nossos desejos, esforços e capacidades inatas. E, de fato, podemos ser tão pouco capazes de realizar nossas capacidades intelectuais que pareceremos deficientes mentais. (SACKS, 1998, p. 22)
A criança surda deve ser exposta a contatos com sinalizadores surdos, para que ocorra a aquisição da língua de sinais de forma espontânea, pois o desenvolvimento na sua primeira língua influenciará na aquisição de uma segunda língua (L2). Porém, o aprendizado da segunda língua (L2) não acontece de forma natural, necessitando de um trabalho sistemático. Quadros (2005) afirma que o contexto dos surdos no Brasil é totalmente atípico, pois aprendem a língua de sinais tardiamente, sendo essa língua a sua primeira língua (L1) ou língua natural e vivem num país em que a língua oficial é a sua segunda língua (L2). A diferença na modalidade entre a primeira (L1) e a segunda língua (L2) do surdo: viso-espacial e oral-auditiva e a privação auditiva dificulta o aprendizado da língua portuguesa, requerendo uma prática pedagógica repensada e significativa.
Os documentos legais que garantem ao surdo o apoio, o uso e a difusão da Libras também são categóricos ao afirmarem que a mesma não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa, devendo o ensino desta ser ministrado em uma perspectiva dialógica, funcional e instrumental. Ao mesmo tempo que esse bilinguismo oferecido ao surdo pode ser interpretado como contraditório, devido ao fato de o surdo ter uma língua natural e viver num país que tem como dominante a sua segunda língua. Pode-se também aproveitar dessa modalidade escrita do português para proporcionar ao surdo o letramento. Segundo Soares (1998 apud BOTELHO, 2002), aquele que não só sabe ler e escrever, mas que também faz uso competente e frequente da leitura e da escrita, ao tornar-se letrado, muda seu lugar social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura.
3. O papel da leitura na aquisição da língua portuguesa pelo surdo
Atualmente, a leitura é uma estratégia muito utilizada no ensino de segunda língua, pois, conforme Quadros (1997), sua compreensão pode favorecer o aprendizado de uma língua de forma rápida e eficiente.
As atividades de leitura e de produção de um texto implicam-se mutuamente no ensino de uma língua. Se, na pedagogia de língua materna, o ato de produzir passa necessariamente pelo de receber informações de naturezas diversas (linguística, sociocultural etc) por meio da leitura, no ensino de segunda língua tal processo é de fundamental importância. (SALLES, 2007, p. 18)
De acordo com Garcez (2001 apud SALLES, 2007), a leitura é um processo complexo e abrangente que permite decodificar signos, compreender o mundo, fazendo um esforço rigoroso ao cérebro, trabalhando a memória e a emoção. Ao ler, o sujeito além de lidar com a capacidade simbólica da palavra, lida também com a habilidade de interação oferecida pela mesma, envolvendo elementos específicos da linguagem e da experiência de vida dos indivíduos, como: signos, frases, sentenças, argumentos, provas formais e informais, objetivos, intenções, ações e motivações. Para que a leitura seja eficaz, fazem-se necessários alguns critérios: decodificação de signos; seleção e hierarquização de idéias; associação com informações anteriores; antecipação de informações; elaboração de hipóteses; construção de inferências; construção de pressupostos; controle de velocidade; focalização da atenção; avaliação do processo realizado; reorientação dos próprios procedimentos mentais. Tais critérios serão aprimorados mediante uma ação pedagógica direcionada a este fim, que certamente terá o hábito da leitura inserido neste processo.
O sucesso de uma produção escrita depende essencialmente dos inputs lingüísticos que o aprendiz está exposto. Peixoto (2006) explica que o aprendiz ouvinte, a partir de um determinado momento, denominado de período pré-silábico, utiliza seus estímulos sonoros para pautar a sua produção escrita, relacionando o que é escrito ao que é falado e, mediante esta compreensão, torna-se possível a construção de hipóteses que lhe permitem prever, antecipar e corrigir seus erros. Porém, a criança surda, mesmo que exposta a estímulos sonoros, possui uma incompatibilidade com esses estímulos devido a sua privação sensorial auditiva, tornando-se indispensável à apresentação da língua portuguesa na modalidade escrita, para a acessibilidade visual do surdo.
A aquisição/aprendizagem da escrita, sobretudo quando se trata da elaboração de textos, pressupões, portanto, uma tarefa imprescindível: o ato de ler, que par ao aprendiz ouvinte, se processa tanto oral como silenciosamente, já, para o surdo, a leitura silenciosa é certamente a técnica mais recorrente. Acrescente-se que, nesse caso, os recursos gráficos e visuais constituem um instrumento auxiliar de excelência. (SALLES, 2007, p. 18)
Além da leitura, outro instrumento de extrema importância para a aprendizagem da língua portuguesa pelo surdo é a Língua Brasileira de Sinais. Vários autores são harmônicos em reconhecerem tal importância, bem como em apresentarem argumentos relevantes para esse reconhecimento, como, por exemplo: Quadros (1997), Almeida (2000), Peixoto (2006) e Salles (2007).
O desenvolvimento na aprendizagem de uma segunda língua está intimamente ligado ao nível de proficiência que o aprendiz possui na sua primeira língua. No caso específico do surdo, o desenvolvimento na aprendizagem da língua portuguesa dependerá da performance adquirida em Língua Brasileira de Sinais, pois é por meio desta que será feita primeiramente a leitura do mundo para posteriormente fazer a leitura da palavra em língua portuguesa, promovendo e facilitando o acesso à escrita.
4. Relato de experiência
Em minha experiência profissional de um ano e meio como coordenadora pedagógica de professores ouvintes e instrutores surdos, tenho recebido constantemente uma quantidade significativa de mensagens em meu celular pelos instrutores surdos. Os professores ouvintes também enviam torpedos, porém estes geralmente preferem ligar e obterem uma comunicação imediata. A opção dos surdos pelo torpedo se justifica pela autonomia no envio, dispensando o auxílio de um ouvinte para fazer-me uma ligação.
Comecei a copiar as mensagens num caderno antes de apagá-las e a observar a forma em que elas eram escritas, percebi que a estruturação dessas mensagens possui bastante relação com a estrutura da Língua Brasileira de Sinais. Tal fato fez-me recordar de quando eu era aluna de um curso básico de inglês, em que o professor, ao solicitar que eu redigisse um texto na língua inglesa, por mais que eu possuísse um vocabulário razoável para a realização da atividade, ele sempre fazia considerações sobre a estruturação do meu texto, pois, na maioria das vezes, estava muito presa à estrutura da língua portuguesa. O professor sempre nos incentivava à leitura e à medida que aumentávamos nossa prática de leitura, internalizávamos gradativamente a estrutura dessa língua estrangeira.
Ao observar os torpedos recebidos, percebi uma diferenciação no nível de internalização da estrutura da língua portuguesa, mesmo seus mensageiros tendo características em comum: surdos de nascença, filhos de ouvintes, fluentes em Libras, apesar de o aprendizado da língua natural ocorrer tardiamente (fora do período crítico), universitários, idades similares, grupo social em comum, surdez profunda e bilateral, ausência de intérpretes na educação básica, mesma profissão e local de trabalho, comunicação predominantemente em Libras, nível de oralidade equivalente, realidade sócio-econômica semelhante. A aparente coincidência no perfil dos instrutores surdos instigou-me a buscar uma explicação da existência da diferenciação na escrita das mensagens.
A minha dúvida sobre a diferenciação na escrita da língua portuguesa foi sanada pela convivência diária e algumas conversas informais. Apesar dos surdos terem o mesmo perfil, logo descobri que um dos instrutores surdos possui o hábito da leitura, lê de modo incessante livros e outros impressos pertencentes aos mais variados estilos, enquanto que os outros instrutores surdos não possuíam esse hábito. As mensagens escritas pelo instrutor surdo com hábito de leitura são pertencente ao “Grupo A” e as mensagens escritas pelos que não possuem hábito de leitura pertencem ao “Grupo B”. Os nomes das pessoas envolvidas no contexto das mensagens serão representadas por letras que não coincidem com a letra inicial do nome delas (exceto o meu nome), com o propósito de preservarem a privacidade pessoal.
Apresento, a seguir, uma amostra da produção textual pertencente aos dois grupos.
Grupo A:
1. Oi K. Perdão, amanhã não posso porque tenho que fazer muitas coisas pro filme da faculdade cedo ou tarde. Perdão. Não tem problema? Tchau! (23/04/09 – 19:22h)
2. Aviso que já estou saindo agora com C. Já peguei ônibus agora. Porque C precisa terminar o trabalho dele, eu não quero perder. O que você ligou para mim? (06/05/09 17:08h)
3. Oi… Preciso conversar com você mais tarde. Ok? (25/05/09 – 9:47h)
4. Consegui o meu trabalho. Não preocupe. (17/04/09 – 11:04h)
5. Aviso vou para casa agora pois vou buscar meu notebook, reserva o meu almoço. Aviso. Abraço! (01/06/09 – 12:11h)
Grupo B:
1. Bom dia! Você aviso coordenadora D hoje não vou CAS porque to doente. (06/04/09 – 07:44h)
2. Oi bom dia! Trabalhar normal o hoje CAS ou feriado? Sou E (08/04/09 07:30h).
3. Ok! Amanhã cedo vou a CAS porque eu não sei onde universitário se você vai busca me? (23/04/09 – 12:16h)
4. Oie, tudo bem? To com saudade de vc…Pode me ajude aviso para CAS? Obrigado! Abraços! (17/08/08 – 20h30)
5. Oba! Vou festa no CAS. Quero sabe volta contrato instrutor estado? (16/06/09 – 16:07h)
Na Língua Brasileira de Sinais o tempo não está codificado por meio de processos flexionais no verbo, como acontece na Língua Portuguesa, havendo marcadores de tempo não-verbais (ontem, amanhã, hoje, futuro, passado) e recursos que consistem na repetição de sinais para indicar a progressão ou repetição do evento. A concordância verbal em Língua Brasileira de Sinais acontece da seguinte forma:
1. Concordância número-pessoal: as pessoas do discurso são marcadas pela orientação. O ponto inicial concorda com o sujeito e o final com o objeto.
Fig. 1 (FELIPE e MONTEIRO, 2007, p. 356)
2. Concordância de gênero: são verbos classificadores, nos quais a concordância está marcada pela configuração de mão.
Fig. 2 (CASTRO e CARVALHO, 2005, p. 35)
3. Concordância com a localização: é marcada pelo ponto de articulação, começando ou terminando em um determinado lugar, onde a pessoa, coisa, animal ou veículo, que está sendo colocado, carregado, etc.
Fig. 3 (FELIPE e MONTEIRO, 2007, p. 354)
Devido à tamanha diferença entre o aspecto verbal na Língua Portuguesa e na Língua de Sinais, pude entender melhor a dificuldade do surdo em utilizar o verbo na estrutura da Língua Portuguesa, como é percebido nas mensagens do Grupo B. Nas mensagens pertencentes ao Grupo A, além de possuir concordância com o sujeito, há a utilização correta de verbos auxiliares, gerúndio, modo imperativo e flexões temporais.
Outro aspecto que me chamou a atenção foi a utilização de artigos feita pelo grupo B. Na Libras, não há uso de artigos, enquanto que no Português é uma exigência, explicando assim a razão da dificuldade encontrada na utilização destes pelos surdos.
Destaco, ainda, nas mensagens do Grupo A, o uso do “que” sem ser exclusivamente em contexto interrogativo, como acontece na Língua Brasileira de Sinais. O verbo “ter” em Libras não é usado no sentido de necessidade, como é usado em Língua Portuguesa. Na mensagem 1 do Grupo A, retrata-se bem a internalização dessa possibilidade de uso: “porque tenho que fazer”.
A experiência narrada foi de grande significância para mim. Nela percebi que o modo incomum em que os surdos escrevem na Língua Portuguesa pode parecer absurdo, mas tem em si uma lógica intrínseca. A escrita dos surdos na Língua Portuguesa é construída a partir das regras específicas da Língua Brasileira de Sinais, uma vez que por meio desta língua suas experiências são organizadas.
Ao analisar a diferenciação na escrita da Língua Portuguesa pelos dois grupos, conclui que a leitura é indispensável para o aprendizado de uma segunda língua, ainda mais se tratando de indivíduos com privação auditiva. A escrita é praticamente a única via de acesso à língua portuguesa para os surdos, então aprender a escrita significa aprender a língua portuguesa. Escrita e língua associam-se em um único conhecimento vivenciado por meio da leitura.
Além do entendimento da lógica da escrita do surdo e do reconhecimento da importância da leitura, a experiência narrada proporcionou-me a valorização da Língua Brasileira de Sinais, reconhecendo a sua importância para o surdo, bem como, suas particularidades, motivando-me a busca por metodologias mais adequadas à especificidade do surdo.
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