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Joana Conde e Sousa
Joana Conde e Sousa
Intérprete de Língua Gestual Portuguesa
Crescer bilingue: As crianças ouvintes filhas de pais surdos
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Publicado em 2012
Exedra: Revista Científica, Número temático - Português: Investigação e Ensino, pags. 404-413
Joana Conde e Sousa
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Resumo

A investigação seguidamente apresentada retrata o percurso de vida de um grupo de filhos ouvintes de pais surdos – CODA – portugueses e catalães, abordando as suas vivências e experiências como membros ouvintes na comunidade Surda Portuguesa e Catalã. No enquadramento teórico deste trabalho, debruçamo-nos sobre as questões do bilinguismo e do biculturalismo, realidades próprias dos CODA. A autora propôs-se a estudar, qualitativamente, um grupo de cinco CODA portugueses e cinco CODA catalães. Os informantes forneceram dados acerca dos seus percursos de vida que, uma vez analisados, demonstraram que é uma mais-valia terem adquirido duas ou mais línguas durante a sua infância. Consideramos que é importante que possam abordar em separado as diferentes comunidades de CODA no mundo, incorrendo numa análise mais em profundidade ao invés de meramente comparativa. Esta linha de ação seria uma forma de eliminar a maior dificuldade do presente estudo: o multilinguismo e multiculturalismo, presentes no caminho de investigação que tomámos.

Introdução

Tendo em conta o II Encontro Internacional de Ensino do Português organizado pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra levámos a cabo a apresentação de um estudo realizado pela autora aquando da redacção da sua tese de emstrado. Este centra-se num grupo ainda muito pouco estudado – os CODA - Children Of Deaf Adults. Este grupo pertence a uma maioria ouvinte, mas também pertence a uma minoria surda, constituindo por si só uma minoria dentro de uma outra. Aqui poretendemos apenas fornecer algumas pistas e conclusões gerais que resultaram do nossos trabalho académico.

Importa referir que estas crianças podem ser surdas ou ouvintes, uma vez que o que os faz serem CODA é o facto de terem pais surdos, ou terem sido educados por pessoas surdas, contudo a investigação realizada centra-se nos CODA ouvintes.

O estudo que apresentamos é construído por meio de relatos na primeira pessoa de membros de um pequeno grupo que vive na comunidade Surda - os CODA. Este grupo tem vindo a ser estudado há cerca de 20 anos, mas não há trabalhos exaustivos sobre esta temática. Os estudos realizados focalizam-se mais em questões linguísticas, havendo ainda trabalhos relacionados com as questões bimodais dos CODA. O estudo que apresentamos explora o percurso de vida de dez CODA, procurando inquirir toda uma carga linguística, cultural e biológica, presentes nos percursos dos participantes.

O propósito geral desta investigação relaciona-se com as vivências bilingues e biculturais deste grupo, pelo que procuramos descrever as particularidades da vida dos participantes. Desta forma não só poderemos compreender os CODA mas, principalmente, teremos a possibilidade de contribuir na diminuição da distância entre a comunidade surda e a comunidade ouvinte. Isto porque, no fundo, estamos a abrir um pouco mais as portas desta minoria à sociedade em geral.

Auscultámos CODA portugueses e catalães, com a intenção de ir buscar através das suas vozes, a sua experiência como bilingues e biculturais, o seu passado, o seu presente, as suas esperanças e sonhos, procurando compreender como se movimentam no mundo surdo e ouvinte.

Um dos pontos interessantes deste estudo é o de perceber que os CODA têm duas línguas maternas – Língua Portuguesa e Língua Gestual Portuguesa (LGP), no caso dos CODA portugueses, e Língua Catalã e/ou Castelhano e Língua Gestual Catalã, no caso dos CODA catalães.

Esta questão das línguas é extremamente relevante pois a língua gestual e a língua oral estiveram sempre presentes no crescimento linguístico e cultural de uma criança ouvinte filha de pais surdos, o que acaba por moldar a identidade CODA. “A língua é um dos mais importantes veículos da comunicação e de identidade do indivíduo com a sua cultura, o seu meio, enfim, de interrelação com a Comunidade a que pertence” (Brito, 1990 in Baltazar, 2008).

Estamos em crer que o conhecimento que deste trabalho resulta poderá tornar a ponte entre surdos e ouvintes mais sólida, pois retrata a visão deste pequeno grupo quanto às duas comunidades. Poderá ainda contribuir ativamente na intervenção social, ajudando a informar as sociedades portuguesa, catalã e outras acerca da importância de compreender os CODA.

Os CODA (Children Of Deaf Adults)

“There can be no doubt that language molds thinking in particularly subtle ways, making must eventually come to grips with the reality of other cultural systems and the pervasive effect these other systems exert on how the world is perceived, how the self is experienced, and how life itself is organized.” (Hall, 1959: VIII)

As crianças ouvintes que crescem em famílias surdas (Children Of Deaf Adults) estão rodeadas por, pelo menos, duas línguas: a língua oral e a língua gestual. Desta forma, estas crianças crescem em ambiente bilingue e bicultural.

Pelo facto de ouvirem e de nascerem em famílias de surdos, este pequeno grupo é ainda pouco conhecido linguística e culturalmente como sendo uma minoria. O acrónimo CODA refere-se ainda a uma organização internacional que anualmente se encontra para celebrar a “terceira identidade”, que porveio das partes surda e ouvinte.

A forma como nos expressamos corresponde a um padrão linguístico-cultural com o qual convivemos toda a vida. Apesar de poderem em idade escolar aprender várias línguas, há algumas crianças que desde o berço contatam com diferentes línguas e diferentes culturas.

É sabido que as crianças não chegam imediatamente ao mundo pré-programadas para falarem a língua dos seus pais. São como uma tabulae rasae que em tenra idade, são dispostas a um ambiente social onde será desenvolvida a sua aquisição da língua. O meio ambiente onde se encontra inserida influenciará o seu desenvolvimento cognitivo e linguístico (Fernández-Viader, 2004). Qual seja o seu background, assim será também a aquisição da língua, e em particular da Língua Gestual. Mesmo antes do bebé pronunciar a primeira palavra, inicia a sua comunicação com o mundo através do balbuciar e do apontar. Este apontar, em famílias surdas, será o início de uma verdadeira viagem ao mundo dos surdos e da língua gestual. A criança nascida no seio de uma família surda terá como sua primeira língua a língua dos seus pais – a língua gestual. (Singleton e Tittle, 2001; Fernández-Viader, 2004; Bishop e Hicks, 2005; Jokinen, 2006; Almeida, 2007)

Qualquer criança adquire muitos dos conhecimentos sobre o mundo de forma natural e não programada

“através da observação e de conversas, ouvidas por acaso, que ocorrem à sua volta. As crianças aprendem assim valores e comportamentos que, por vezes, nem a família nem a sociedade desejariam. O mesmo ocorre com as crianças filhas de pais surdos; também elas são capazes de observar e aprender a partir das interações que presenciam, sobretudo se tiverem familiares surdos e estiverem rodeadas de língua gestual.” (Almeida, 2007)

Os CODA são o grupo relevante para o nosso estudo uma vez que esta é a população que adquire a língua oral como primeira língua e a língua gestual também como primeira língua.

A aquisição “simultânea de duas línguas, quando iniciada bastante cedo, não é de todo suscetível de produzir uma diferença de estatuto entre uma, que seria um pouco mais materna, e outra, que o seria pouco menos.” (Hagège, 1996:34) Contudo, os filhos ouvintes de pais surdos poderão acabar por se sentir mais à vontade com uma língua, mas isto acontece por razões “perfeitamente naturais que ditam a escolha de uma língua de preferência” (Hagège, 1996:34), o que poderá provocar níveis de competência desiguais, entre as duas línguas (Hagège, 1996). Porém, relembram Whitehead (1997), Baker e van den Boadaerde (2006) que o facto das crianças bilingues usarem um código misto, ‘code-blending’, indica que possuem um elevado nível de competência linguística e não falta de linguagem. Preston (1994) revela que muitos dos filhos ouvintes de pais surdos se recordam dos seus pais terem comprado um rádio e televisão concretamente para si, enquanto crianças. Informa ainda que, apesar de muitos outros não terem em casa um aparelho que lhe permitisse escutar a língua inglesa, “initially developed sign language skills” (1994:125)

No caso dos CODA, e por serem bilingues, muitas vezes recorrem, num discurso, à outra língua, segundo Preston (1994) esta situação acontece quando: o conceito ou expressão é mais verdadeiro em língua gestual; momentaneamente a palavra não ocorre; o CODA está a parafrasear um surdo e quando emocionalmente deixam de conseguir falar oralmente.

Os CODA e a sua família

Qualquer criança quando nasce chega predisposta para aprender e evoluir através das interações com objetos e com as pessoas que mais próximo estão dela, no seu meio envolvente. Quando a criança chega pela primeira vez à escola é possível verificar que já possui alguns conhecimentos, que poderão ser consolidados na escola e que para além destes, outros serão aprendidos (Fernández-Viader, 2004). Portanto, a família é um pilar importante para a transmissão de conhecimento e de interação com o bebé ou com a criança, pois segundo Fernández-Viader (2004:103) a família é considerada

“como un sistema de influencias mutuas o como un grupo social en el cual las relaciones entre sus miembros están en gran parte mediatizadas o condicionadas por la misión que tienen los miembros adultos de proveer a los/as pequeños/as de los instrumentos y habilidades necesarios para que alcancen su plena madurez como personas.”

O papel que os pais ocupam no desenvolvimento dos seus filhos é fulcral para as respostas que os filhos darão no seu futuro. É através das relações que se estabelecem e das interações fortes, que as crianças passam a enriquecer o seu léxico e contactam com o mundo que as rodeia. Assim, as crianças quando envolvidas com pais que usam uma língua e paralelamente uma cultura diferente da maioria da sociedade, vêem-se muitas vezes confrontados com situação atípicas. Estando a perspetiva médica tão assente na sociedade maioritariamente ouvinte, ou seja, o olhar clínico para com a pessoa surda como alguém portador de uma deficiência, faz com que as pessoas surdas e consequentemente os pais surdos sejam vistos como incapazes de realizar o seu papel de pais (Morgado, 2008; Fernández-Viader, 2004). Também a história que cada surdo adulto viveu e a sua experiência na sociedade terá consequências no seio familiar. Assim, há muitos pais surdos que têm uma baixa autoestima colocando-se a um nível inferior do das pessoas ouvintes (Fernández-Viader, 2004).

O sentido de responsabilidade é assumido muitas vezes pelos CODA, significando ter de ‘tomar conta dos pais’, ou seja assumir responsabilidades em idades desadequadas. Esta ideia surge, muitas vezes, por parte de familiares, que sendo ouvintes, consideram que a criança terá que cuidar dos pais, pois são surdos, sendo os pais humilhados e retirados da sua autoridade enquanto pais (Preston, 1994). É bastante comum verificar que são estas crianças que

“Adoptan roles, como por ejemplo el de intérpretes en la gestiones de sus padres, en la recepción de visitas y en la recepción de encargos personales y mensajes telefónicos (…) sobre todo en lo que se refiere a la expresión y comprensión de la lengua escrita.” (Fernández-Viader, 2004:115).

Segundo Preston (1994:71) alguns CODA sentem serem “one big ear and mouth for the whole family”. Pelo facto de serem ouvintes encontram-se em contato permanente com esse mundo, podendo transmitir as informações sonoras aos seus familiares surdos. O mesmo acontece do outro lado surdo. Havendo um ouvinte presente que não saiba comunicar, será o CODA a interpretar o que seja necessário para que se estabeleça uma comunicação produtiva (Preston, 1994). Iniciam um processo de interpretação quer simultâneo quer consecutivo, precocemente e inconscientemente. Esta situação atípica de responsabilidade atribuída a uma criança faz com que na história da evolução da profissão de intérprete de língua gestual, os CODA tenham sido os primeiros intérpretes de língua gestual. São estas crianças que desde o berço, ao contatarem com duas línguas diferentes, se tornam na ponte de comunicação entre o mundo ouvinte e o mundo Surdo (Preston, 1994; String e Wolf, 2007). Após a investigação pioneira levada a cabo por Preston (1994), este pôde verificar que às crianças ouvintes filhas de pais surdos estavam relacionadas sempre duas atividades:

“interpreting and being responsible. (…) the scope of these activities intermingled and broadened to include decision making, mediation, advocacy, and generally ‘taking care of things’. (…) despite variation in individual circumstances, almost all informants acknowledged that these activities were typical” (Preston, 1994: 142).

A identificação de que os CODA seriam um grupo é muito recente, tendo-se iniciando os estudos há cerca de 20 anos (Ladd, 2003), mesmo os pais surdos se deparam, por vezes, com algumas dificuldades comunicativas para com os seus filhos. Porém, estas crianças podem ser fluentes em língua gestual tal como os seus pais tendo-a como língua materna bem como a língua oral, adquirindo-a com familiares ouvintes ou pelos meios de comunicação social (Preston, 1994; Fernández-Viader; 2004). Tendo a família um papel preponderante no desenvolvimento global da criança, a existência de uma comunicação fará com que a criança cresça saudável linguística e emocionalmente.

Segundo Bishop e Hicks (2005:37) CODA “was [also] chosen for its significance as a musical term. A coda is defined as a piece of music that appears at the end of a composition and may have elements from the main composition but also has its own unique elements.”. Estas crianças são, talvez, dentro da comunidade surda, únicas, na forma como vivem.

Bilinguismo e Biculturalismo

“Através da língua adquire-se toda uma cultura e o respectivo sistema de símbolos, o ser humano estrutura e interpreta o mundo, a sua relação com este e o lugar que nele ocupa. Assim, o falante nativo de língua gestual adquire não só a sua língua mas também a forma de pensar, as normas de comportamento, os valores e outros elementos característicos da sua cultura, dos quais depende a formação da sua identidade linguística e social. Esta raramente é monocultural, pelo simples facto de reunir as características do falante nativo de língua gestual e todas as outras envolvem a comunidade surda. Assim, este indivíduo é bi ou multicultural.” (Jokinen, 2006: 84)

Os CODA estão também envolvidos numa minoria e rodeados de estímulos visuais desde o berço, pois os seus pais comunicam numa língua visual. Caso se encontrem a viver num local onde habitem ouvintes, a criança irá brincar com os meninos ouvintes e crescerá envolvida em duas línguas. À aquisição de duas línguas de forma natural é dado o nome de bilinguismo. Skutnab-Kangas (2000) apresenta uma definição de bilinguismo tendo em conta quatro critérios:

  1. Origem: caso se tenha aprendido duas línguas no seio familiar com os nativos da língua desde sempre; se tenha usado as duas línguas em paralelo para comunicar desde o início.
  2. 2. Identificação: interna: identificação pessoal como sendo bilingue, tendo duas línguas e duas culturas.
  3. 3. Identificação: externa: é identificado por outros como sendo bilingue, como sendo falante nativo de duas línguas.
  4. 4. Competência: conhecimento profundo das duas línguas; enquanto nativo controlar as duas línguas; ser conhecedor profundo de igual forma das duas línguas; conseguir produzir um discurso completo na outra língua; ter pelo menos conhecimento e controlo da estrutura gramatical da outra língua; ter estado em contato com outra língua.
  5. 5. Função: usar, ou conseguir usar duas línguas, em concordância com a sua própria vontade e com as demandas da comunidade.

Como Mahshie (1997) e Whitehead (1997) referem, numerosos estudos foram efetuados (1960) com crianças bilingues demonstrando que as que são bilingues possuem funções cognitivas superiores às crianças monolingues. Refere (Mahshie, 1997) ainda que uma criança ouvinte da qual a língua gestual tenha sido a sua primeira língua, possui capacidades superiores no inglês às de qualquer outra dos seus pares. Pelo que advoga (Mahshie, 1997) que expor uma criança surda à língua gestual precocemente não é um risco, como durante anos se pensou, e ainda se pensa, que a língua gestual é prejudicial à criança surda implantada.

Definindo Biculturalismo

“A way to experience another [cultural] group is to understand and accept the way their minds work. This is not easy. In fact, it is extraordinarily difficult, but it is of the essence of cultural understanding.” (Hall, 1976: 213).

É possível definir biculturalismo como sendo uma forma de viver envolvido em pelo menos duas culturas, o que significa ter em seu redor pelo menos duas línguas. É também uma forma de se compreender o mundo pois o biculturalismo influencia o desenvolvimento identitário de forma pessoal e social (Pereira, 2008).

Vimos, portanto envolvidos os CODA como pessoas bilingues e biculturais, uma vez que para além de duas línguas, vivem também entre duas culturas. A forma de biculturalismo é a capacidade em constituir laços de identidade, tanto com a comunidade ouvinte como com a comunidade surda. (Padden e Humphries, 1988; Pereira, 2008a).

Identidade Surda

“O surdo tem uma qualidade de vida. Uma adaptação a esta vida. Desabrocha com a língua gestual. (…) Seja como for, as crianças surdas de pais surdos não têm outra escolha. E o que é verdade é que a surdez em família constitui um mundo diferente do vosso. Aceitem-no. (…) Ter outra concepção do mundo diferente da que me proporcionam os meus olhos? É impossível. Iria perder a minha identidade, (…) iria perder-me a mim própria. O sol que sai do coração perder-se-ia num universo desconhecido. E eu recuso-me a mudar de planeta.” (Laborit, 2000:183).

A identidade de um povo é a alma da sua cultura. As pessoas surdas referem a língua gestual como veículo de transmissão de cultura e intrinsecamente identidade. Essa mesma identidade é construída nos espaços dos surdos e com os próprios surdos. Como refere Martins (2008:2) “a noção de Identidade Surda não parece ser bem reconhecida nem compreendida”, pois, como já referimos, o fator da comunidade surda ser uma minoria linguística e cultural faz com que poucos sejam os que consigam reconhecer a identidade surda.

É através da língua gestual que as normas, os comportamentos sociais e as características específicas são transmitidos de geração para geração, pelo que “that language plays a central role in the identity of linguistic minorities” (Plann, 1997:2).

Baltazar (2009) 147 refere que muitas vezes às próprias crianças surdas lhes é negada a participação na comunidade Surda, pelo que

“é assaz importante a integração do Surdo na sua comunidade, o seu relacionamento com os seus pares, no entanto sem isolar-se da comunidade maioritária. O objectivo dessa interacção é a constituição da sua Identidade Surda, aceitar-se como uma pessoa normal com potencialidades e limitações… apenas uma Pessoa Surda”.

É em associações de surdos, nos convívios que promovem que a identidade do Deaf-World é recebida por quem partilha o mesmo espaço. Assim, os participantes do nosso estudo estabelecem uma relação íntima com a comunidade surda e por conseguinte com a língua gestual, absorvendo desde cedo a identidade do povo surdo e criando assim sentimentos de pertença a esta comunidade. Sendo, a “language (…) vital nucleus of our identity (…) the real spiritual force that gives internal unity to our community, a legacy of identity” (Plann, 1997:3).

Método

O estudo apresentado trata-se de um estudo qualitativo, pois pretende descrever uma realidade a um nível profundo em que participa a interpretação do autor e cujos resultados não são generalizáveis. É um estudo etnográfico, pois incide num pequeno grupo, tendo em conta as suas particularidades, não querendo quantificar. Deste modo, são estudados diversos percursos de vida, onde os seus relatos podem dar ao leitor uma ideia de um contexto particular, pois são cruzadas as suas biografias, pretendendo-se comparar as duas realidades, a portuguesa e a catalã. Foram dez os participantes, sendo cinco CODA portugueses e cinco CODA catalães. Estas pessoas foram entrevistadas na sua língua materna que é também aquela da comunidade maioritária.

Após a análise às dez entrevistas realizadas podemos concluir que ambas as línguas, apesar de terem modalidades distintas foram adquiridas de forma natural estando as crianças envolvidas com duas ou mais línguas desde o nascimento, não tendo sido detetado qualquer dificuldade de comunicação entre os pais e os seus filhos. Um dos objetivos gerais seria o de compreender como decorrem os processos de comunicação dos CODA com ouvintes e surdos ao longo de toda a vida, pelo que foi verificável que a maioria dos participantes usava a língua gestual como suporte à língua oral e vice-versa, pelo que a motivação e a interação oferecida pelo modelo adulto ou pelos pares da criança estabeleceram uma linha condutora para o desenvolvimento da sua linguagem e pensamento. Concluímos também que o percurso de vida das CODA foi marcado por momentos positivos e momentos traumáticos.

A conclusão que podemos retirar destes aspetos positivos estão mais próximos da esfera familiar, havendo alguns CODA que consideram não existir valores negativos (Alice) e outros que “sentia orgulho deles, muito ! Muito orgulho! Nunca senti indiferença, nem rejeição, nada.” Sofia.

Consideram também que apesar das dificuldades encontradas nos seus percursos de vida, os seus pais lhes ensinaram valores muito preciosos, “Há muito carinho e muito amor” (Francisca) como é a sua língua, a sua cultura, o respeito pelas pessoas surdas e a oportunidade de terem crescido em duas ou em “nenhuma” comunidade.

Na vertente negativa podemos verificar que as situações de interpretação a que foram sujeitos enquanto crianças são as mais representativas nas respostas dadas. Referem algumas situações que consideramos difíceis de ultrapassar. Podemos ainda concluir que estas mesmas situações se refletem no facto de estes participantes considerarem não terem tido infância, na sua maioria tendo sido pressionados a realizar serviços de interpretação para os quais não tinham conhecimento, o que lhe causou sofrimento e uma responsabilidade acrescida, amadurecendo rapidamente. Alguns deles referem não terem tido infância, como nos ilustra Sofia “cresci à força, tive que amadurecer, me tornar mulher, responsável dos meus atos”.

Depois da análise cuidada a estes dados podemos concluir que alguns CODA sentem não dominar a língua gestual como os seus pais, ou que se sente de alguma forma limitada na sua comunicação com os pais surdos. Esta informação pode estar relacionada não só com os sentimentos e opiniões de familiares ouvintes ou de desconhecidos que lançavam olhares e comentários depreciativos, como nos diz Filipa “o que notei sempre ao longo da minha vida foi ‘como é que consegue falar se tem pais surdos?’, ‘fez alguma terapia da fala?’ (...) as crianças são muito sensíveis a essas coisas (...) ‘aí coitadinha agora os pais falam por gestos, como é que ela entende?’”. Estamos em crer que estas situações pelas quais esta pequena amostra viveu, fez em alguns casos com que a criança ao crescer quisesse ser surda, sentindo alguma culpa em ouvir. Os fatores apresentados por este grupo de dez participantes leva-nos a concluir que 90% destas crianças passou uma infância de risco principalmente em termos de saúde mental, pelas razões acima descritas, tal como Inês nos diz, “é uma situação muito difícil, porque eles [os pais] são mais velhos mas acaba-se por os querer proteger e que nada lhe falte, mas o que acontece é que eu era apenas uma criança e não se passa a infância como qualquer outra criança, a minha infância foi a pensar nos meus pais, a protege-los a ajuda-los, ‘têm que ir ao médico, têm que falar na escola’ e quem traduzia era eu.”. Ou seja, estas crianças sentem a responsabilidade de terem de ‘tomar conta dos pais’, de os proteger, de os acompanhar a todo o local, pois como diz Alice é “ter uma responsabilidade maior, porque… claro que todos os filhos devem ajudar os pais, mas é uma responsabilidade maior porque temos que os acompanhar sempre, porque eles sozinhos não conseguem falar com toda a gente…”.

O discurso do CODA

Neste estudo damo-nos conta de que somos nós a dar o grito que muitos CODA nunca haviam dado. Assim, pensamos ser importante identificar alguns conselhos que os próprios filhos pedem que os pais surdos tenham em consideração:

  1. Não fazer do filho intérprete: “que não fizessem do filho intérprete, que não o obrigassem a traduzir coisas pouco positivas. Isto é o principal!!”, “como todos os filhos de pais surdos, sempre o fazem. Desde muito pequenos”, “eu tinha ódio do telefone (...) Creio que muitos como eu, odiamos o telefone porque te estão sempre a dizer “liga para ali” e tu tens de ligar e mesmo quando é uma coisa desagradável às vezes obrigam-te a dizê-lo e tu não estás preparado” (Mónica), e ainda “não digam à menina que tem que ajudar a sua mamã” (Francisca).
  2. Que seja dada menos responsabilidade ao filho: “que o eduquem sem lhe darem tanta responsabilidade, sobretudo, que o deixem ser independente, porque as crianças são crianças e não tem de estar prontas a qualquer momento ‘vem comigo, interpreta isto’ as crianças têm de ser crianças e não um apoio, e não uma bengala ‘o meu filho é ouvinte vai ser a minha bengala’, Não, as crianças têm de ser crianças! Os pais é que têm de ajudar os seus filhos” (Inês).
  3. Que respeitem a infância do seu filho: “Não ter infância. A minha infância foi muito curta, foi MINHA durante muito pouco tempo” (Carmen) e ‘se perde uma parte da infância (...) da brincadeira’ (David) e ainda ‘são mais sacrificadas. Fazem-se adultos antes’” (Mónica).
  4. Que não o pressionem: “eles não têm culpa de serem surdos, mas eu sou uma pessoa humana que necessito de espaço.” (Francisca) “porque digo sempre ‘sim, sim, sim’ e isto é muito… muito destrutivo (...) é muito complicado… não é fácil (...) a pressão e dizerem-nos ‘vem agora’, ‘agora não’, ‘amanhã ajudo-te’, ‘não agora’” (Francisca) e ainda “quando ainda não havia telemóvel portátil e eu chegava tarde a casa, era horroroso! (...)” (Carmen).
  5. Terem orgulho na sua comunidade e na sua língua: “São os meus pais, são meus pais sempre foram. Sejam como forem, eles são sempre os meus pais, é o mais importante. Mas eu não os queria de outra maneira, porque o que me ensinaram como pessoas surdas é muito valioso.” (Carmen)
  6. Que falem em língua gestual com o seu filho: “Foi positivo aprender várias línguas, outra cultura, mais gente dentro e fora do país” (Mónica). “Quantas mais línguas melhor!” (David) “vivemos entre dois mundos que são distintos. E bom, desde a comunicação em casa, a maneira de pensar porque (...) pensamos muito visualmente e me surpreende que as pessoas ouvintes não pensem visualmente”, “facilmente aprendo línguas (...) as línguas comigo dão-se bem.” (Carmen). Isa refere que “também muito importante é, não terem vergonha ou não pensem que o filho pode ter vergonha, ou não vou se calhar obrigá-lo a aprender ou comunicar em língua gestual, porque depois o meu filho vai ter vergonha, não ! pelo contrário ! incentivar a aprender !”. Filipa fez a sua reflexão dizendo-nos que “acho que devem estimular ao máximo a língua gestual com os filhos porque é uma fonte de riqueza inesgotável e se isso não for fomentado, mesmo havendo uma relação muito próxima, pode haver sempre aquela frustração de eu querer estar com os amigos dos meus pais de forma que eu não consigo estar hoje, isto porque as minhas mãos não estão a 100% como estão as dele, e também queria. (...) eu entendo-me com os meus pais, e isso é o que é preciso mas depois há coisas, pormenores e coisas pequenas que fazem a diferença. O conselho que eu daria mais era – educação bilingue sempre! Sempre! Para não haver frustrações para nenhum dos lados (...) existem lapsos de comunicação, e se tivesse a língua gestual mais interiorizada.”
  7. g) Que lhe transmitam informação sobre a sua comunidade: “temos muita sorte, porque temos um pé numa minoria e outro numa maioria e podemo-nos mexer nos dois lados” (Mónica), “sentimento cultural da comunidade surda. É também ainda positivo dispor de umas capacidades, uma memória visual, descriminação visual também”, mas existem “traumas de pequeno. De não entender que era uma comunidade diferente e agora com tantas comunidades diferentes por aí” (David).

Estes conselhos são uma chamada de atenção para a forma como têm vivido os participantes deste pequeno grupo, porém estamos em crer que outros filhos ouvintes de pais Surdos se sentirão da mesma forma.

Considerações finais

Pensamos que este estudo poderá ser um primeiro passo na descrição das experiências de vida características desta minoria inserida numa minoria: os CODA das comunidades surdas de todo o mundo.

A descoberta de tanta riqueza por detrás das palavras dos entrevistados superou as expectativas que havíamos construído de início para este trabalho. Esperamos que outros investigadores venham a utilizar esta investigação pioneira para a aprofundar e abrir mais as portas do que é ser-se bicultural, parte de um grupo que detém duas línguas maternas – uma maioritária e outra minoritária, uma oral e outra gestual, uma pertencente a indivíduos que a sociedade rotula como ‘normais’ e a outra aos que rotula de ‘deficientes’. Em suma, queremos confiar num futuro em que venha ao conhecimento público e científico que ser CODA é ser duplamente rico, linguística e culturalmente.

Notas

147 Este tema foi gestuado, mas não publicado, por ocasião de uma conferência “Eis as questões da LGP”, realizada pela Associação de Formadores e Monitores de Língua Gestual Portuguesa (AFOMOS) no Porto, Novembro de 2009.

Bibliografia

Sousa, J. (2010). As crianças ouvintes filhas de pais surdos e a aquisição da língua gestual portuguesa e catalã: História de vidas cruzadas. Tese de Mestrado apresentada à Universidade Católica Portuguesa. Lisboa. Portugal.

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