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Josélia Neves
Josélia Neves
Professora
Comunicação Multissensorial em contexto Museológio
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Publicado em 2010
Actas do I Seminário de Investigação em Museologia dos Países de Língua Portuguesa e Espanhola, Volume 2, pp. 180-192
Josélia Neves
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Resumo

As novas tendências de animação museológica vêem o museu como um espaço vivo e reactivo, em tudo distante do “armazém de preciosidades” silencioso e intocável do passado. Uma maior aposta na comunicação e na interactividade trazem novas emoções aos visitantes e novos desafi os a curadores e equipas de animação museológica. Com vista a transformar a visita ao museu numa experiência memorável para pessoas de perfi l diversifi cado, torna-se necessário explorar técnicas e tecnologias que permitam a criação de conteúdos informativos, didácticos e lúdicos que cativem o interesse e se adaptem às necessidades individuais de cada visitante. Nesta publicação pretende-se abordar novas formas de comunicar o museu tendo em conta visitantes com perfi s diferenciados. Abordar-se-ão estratégias de comunicação multi-sensorial abrangendo produtos audiovisuais, verbais e nãoverbais, tácteis, olfactivos e gustativos, apelando a todos os sentidos, na perspectiva do enriquecimento experiencial da visita ao museu.

As novas tendências de animação museológica vêem o museu como um espaço vivo e reactivo, em tudo distante do “armazém de preciosidades” silencioso e intocável dos séculos passados. Esta forma de ver o museu obriga a que se encarem novos meios para comunicar com públicos cada vez mais heterogéneos. Embora cada museu consiga caracterizar o seu público eleito, - ditado essencialmente pela natureza do espólio, a localização e os recursos existentes -, torna-se urgente questionar até que ponto o mesmo estará a explorar o seu potencial pleno e a sua capacidade de atrair novos públicos. O apelo a que se abram as portas a cada vez mais visitantes leva a que se repensem estratégias de atracção e fidelização. Estar preparado para receber “todos” poderá signifi car pensar antecipadamente em “cada um”, criando motivos para que cada visitante, na sua individualidade, encontre razões para querer voltar àquele espaço.

Se é verdade que trazer visitantes ao museu se torna uma tarefa árdua para muitos curadores, é ainda mais verdade que é tanto mais difícil e estimulante quando se tem em conta que cada visitante tem, potencialmente, necessidades especiais. Uma abordagem inclusiva à comunicação museológica prevê múltiplas soluções, facilmente moldáveis e adaptáveis a situações diversifi cadas; contempla ainda visitas em grupo e individuais, dirigidas e/ou livres; e cria espaço para uma renovação constante do museu. Uma abordagem com preocupações de integração será também aquela que se socorre de estratégias de envolvimento directo dos seus visitantes, apelando a todos os sentidos, num processo de complementaridade ou mesmo de substituição. Tal atitude facilitará a experiência museológica a todos, incluindo visitantes com limitações sensoriais, nomeadamente cegos e surdos, aquelas que maior esforço precisam de despender para aceder aos espólios museológicos. Ao abrir o museu a visitantes cegos, através de soluções multisensoriais, facultar-se-á a todos os visitantes experiências únicas. Pensar em soluções para surdos, permitirá oferecer serviços que serão igualmente úteis a visitantes sem limitações auditivas. Uma comunicação baseada no multi-formato e na estimulação multi-sensorial potenciará uma dinâmica lúdico-educativa que levará o visitante a uma interacção activa com o museu e à apropriação pessoal das mensagens por ele veiculadas, independentemente do seu perfi l pessoal. Ao deitar mão a produtos audiovisuais, verbais e não-verbais, tácteis, olfactivos e gustativos, apelando a todos os sentidos para o enriquecimento experiencial da visita ao museu, estaremos a retomar o que caracterizou os museus de outrora e o que poderá vir a desenhar os museus do amanhã.

TOCAR ou não tocar, eis a questão…

É frequente ouvir mães bem-intencionadas segredar ao ouvido de uma criança, “aqui dentro, mãos atrás das costas”. Assim se tem entrado e saído de muitos museus ao longo de décadas. Civilizadamente, o visitante entra e sai sem tocar em nada, usando apenas a visão como meio de contacto com o(s) mundos que lhe são oferecidos. Esta “intocabilidade” parece caracterizar a maioria das colecções museológicas ora patentes, independentemente da natureza do espólio em causa. Pinturas, esculturas, artefactos, peças de diversa natureza são apresentados ao público para serem apreciados exclusivamente pelo olhar. É frequente encontrar as peças fechadas em vitrinas, afastadas fi sicamente de quem visita por vedações ou correntes. Quando por força do seu tamanho, forma ou natureza estão ao alcance da mão, muitas peças vêem-se acompanhadas de mensagens proibitivas em que se lê “NÃO TOCAR”.

De acordo com Classen (2007: 896) os museus nos séculos XVII e XVIII não apelavam exclusivamente à visão como passou a acontecer a partir do século XIX, prática que se manteve um pouco até aos nossos dias. Aliás, esta mesma autora refere (ibid: 896-7) que antes, “part of the attraction of museums and of the cabinets of curiosities which preceded them, in fact, seemed to be their ability to offer visitors an intimate physical encounter with rare and curious objects.” Este contacto directo com as peças expostas viria a ser visto como “falta de educação” numa sociedade moderna que valorizava a intelectualização do saber em detrimento da experiência sensorial.

Tocar está fortemente conotado com posse. O privilégio de tocar ou manusear uma peça de colecção é sempre vista como tal, algo de excepcional. O manuseamento está quase sempre relacionado com “estrago” o que é contrário a um princípio básico da museologia que é “conservar” para gerações futuras. O museu continua a ser guardião de objectos raros, que merecem todos os cuidados de preservação que garantam a sua longevidade. A verdade, porém, é que é mais frequente que os bens se vejam deteriorados pelas condições do seu armazenamento do que pelos estragos que lhe possam ser infringidos pelo seu manuseamento.

No que toca a colecções museológicas, são muitas as preocupações que limitam a possibilidade de tocar as peças. Para além do receio de que estas venham a sofrer danos por manuseamento excessivo ou inadequado, há ainda o receio do seu desaparecimento (por roubo), ou até mesmo algum desconforto pela “desarrumação” que possa signifi car para o curador do museu. Outro aspecto a ter em conta será o do tempo. Uma visita que envolva o manuseamento de peças levará obrigatoriamente mais tempo. Se é verdade que o tempo deverá ser aquele que cada visitante quer dar a si próprio para a fruição da sua visita, há casos em que, pela natureza da exposição ou pela quantidade de visitantes, se torna necessário “apressar” os visitantes. Tomemos por exemplo a visita às jóias da coroa, na Torre de Londres, em que se ouve em cada esquina “keep moving”.

A carga proibitiva que se herdou das práticas museológicas dos séculos XIX e XX tem acompanhado gerações que, no momento em que os museus se abrem de novo aos sentidos, continuam a não saber o que fazer quando num museu encontram a mensagem “TOCAR”. É frequente ver alguma reticência perante tal apelo, sendo mais frequente ainda que a pessoa leia a versão negativa da mensagem agora existente. Como a expectativa é a de “não tocar”, os visitantes nem se apercebem que o que agora se pede é exactamente o contrário: que se toque. Da mesma forma como no passado se educou o visitante do museu a manter as mãos atrás das costas, torna-se agora necessário educá-lo a uma maior interacção física com o espólio museológico.

Ainda nas palavras de Classen (ibid.:900):

generally, the most evident role played by the sense of touch in collection settings was that of supplementing vision. A visual impression of the smoothness of a sculpture, for example, could be complemented by a tactile impression of its smoothness. Smaller objects might be handled in order to enable them to be better seen - turned around or held up to the light.

Esta noção de o manuseamento ser um complemento à visão será, sem dúvida, válida para visitantes normovisuais. Nesses casos, uma e outra experiência sensorial (a visão e o tacto) complementam-se, sendo que o tacto serve de confi rmação da visão. Em relação à importância do tacto como meio de confi rmação Mandrou (1976: 53), afirma:

it checked and confi rmed what sight could only bring to one’s notice. It verifi ed perception, giving solidity to the impressions provided by the other senses, which were not as reliable.

A verdade, porém, é que o manuseamento permite ver aquilo que a vista nem sempre capta. Uma peça pode ter pormenores que apenas se podem apreciar ao aproximá-la e ao manuseá-la. Um posicionamento estático pode esconder pormenores que se revelam ao ver a peça em diferentes posições e ângulos. Por outro lado, ao manusear uma peça poder-se-á conhecer o seu peso e a sua densidade corpórea, aspectos fundamentais no momento em que se procura uma percepção completa de uma peça. No caso da pessoa cega, mais do que complementar o olhar, manusear uma peça poderá signifi car mesmo “ver” essa peça.

Quando o objecto em apreço é uma escultura, a natureza do acto de tocar ganha nova signifi cação. Uma escultura oferece-se naturalmente ao tacto. É frequentemente a materialização de um outro qualquer ser intocável: um rei, um herói, um santo. Paradoxalmente, em muitos museus, até esses objectos criados para dar forma corpórea e tangível ao intocável são afastados da sua missão primária: ser apreciada pelo tacto. O fi lósofo alemão Johann Gottfried Herder (2002) considerou a escultura como a forma mais elevada de arte precisamente pelo facto de esta ser perceptível pelo tacto, que permite uma apreciação da beleza jamais perceptível pela visão apenas.

No que diz respeito ao (não) toque e manuseamento de arte escultórica, é frequente ser igualmente justifi cado com preocupações de conservação. O contacto íntimo e directo com objectos de cobiça ou rejeição podem levar a actos de vandalismo causadores de danos irreparáveis. A história está pontuada por momentos em que o saque e a destruição têm pendor económico, político e social – lembremo-nos dos tempos de Miguel Ângelo e dos Medici em Itália; das invasões francesas um pouco por toda a Europa; ou, num passado recente, dos “roubos encomendados” no Iraque – mas são outros os receios que parecem inibir os curadores dos museus de darem as obras a sentir pelo tacto. Excluídos os fantasmas do saque ou destruição em massa, mais do que factores de ordem técnica, parece haver factores de ordem cultural, ou mesmo moral a determinar que esculturas sejam mantidas afastadas das mãos dos públicos. O culto do sagrado, o receio do desrespeito ou mesmo o medo do obsceno levam a que peças de arte criadas para serem vistas através da pele se mantenham afastadas e apenas sentidas através da visão. Esta inibição torna esse mesmo toque mais apetecível, levando a que passe a ter cargas emotivas e valor quase mágico. Assim se explica a crença na força milagrosa do tocar na imagem de um santo, ou em pequenas crendices que apenas servem para reforçar os laços a certos locais. A título de exemplo, tocar no Mannekin Pis em Bruxelas ou na Pequena Sereia de Edward Eriksen em Copenhaga é para muitos turistas sinónimo de ter efectivamente “tocado” na cidade que os acolhe.

Estas experiências quasi-mágicas transpõem-se naturalmente para o museu que apresenta relíquias, obras-primas e objectos únicos. Enquanto guardiães de tesouros da humanidade é natural que os responsáveis dos museus queiram preservar ao máximo esses bens para que possam chegar ao maior número de pessoas e durante o maior espaço de tempo possível. Será no entanto de questionar se não haverá forma de dar essas mesmas peças a conhecer através do tacto sem que tal possa trazer algum dano às mesmas.

Programas como o “Hands on” do British Museum 1, em Londres, proporcionam aos seus visitantes sessões em que objectos originais são dados a manusear, sob o olhar atento de conservadores. Este tipo de experiência é particularmente grata a verdadeiros connoiseurs e a pessoas cegas que, de outra forma difi cilmente poderiam percepcionar as peças em apreço.

Quando, por razões de preservação, se desaconselha o manuseamento de certas peças, poder-se-á recorrer a réplicas ou facsimili que permitam um contacto directo e livre, se não com a peça original, com uma que em tudo se lhe assemelha. O uso de réplicas surge nos museus actuais como uma via fácil de dar o museu a “sentir”. Também em Portugal se vêem já propostas interessantes neste domínio. São muitos os museus que dão peças a tocar. Casos há, como o do Museu do Azulejo, em Lisboa, em que se vai mais longe, dando tridimensionalidade a peças que são habitualmente planas. A criação de azulejos em baixo relevo para uma melhor percepção por parte de pessoas cegas demonstra como é possível criar condições para que todos possam “ver” à sua maneira.

Esta experiência leva-nos ao questionamento de como dar a fruir, através dos sentidos, obras que nasceram para serem vistas: quadros, pinturas, imagens, desenhos e afi ns. Aqui será de pensar que, pela sua natureza intrínseca, estas obras terão sempre de ser percepcionadas através do olhar. Impõem-se de imediato várias perguntas: estarão estes trabalhos efectivamente vedados a quem não vê? Haverá forma de transformar tais trabalhos em peças tocáveis? Haverá forma de complementar ou substituir a visão por outros sentidos, nomeadamente o tacto, a audição, o olfacto e/ou o paladar?

Pinturas são por natureza bidimensionais. Espaços, formas e massas organizam-se e linearizam-se dando a ilusão de profundidade, vulto e tridimensionalidade a quem olha. Salvas as excepções em que a pintura se oferece de forma texturizada, - e até mesmo essa é uma textura para se sentir com os olhos -, em essência, a maioria dos quadros não foram feitos para serem tocados e muito menos ainda para serem ouvidos, cheirados ou provados. Se lidar com o toque é algo complexo, mais complexo ainda se torna apelar aos outros sentidos no momento de dar a arte a sentir.

Num momento em que os públicos se tornam mais exigentes e mais ávidos de sensações fabricadas, são várias as tentativas de criar experiências sinestésicas, particularmente em espaços lúdicos e de entretenimento. Parques temáticos como o Epcot, da Disney, já descobriram o valor da experiência multi-sensorial. Na experiência Horizons recriam-se espaços (ex. um laranjal), apelando a todos os sentidos. Nem mesmo o olfacto é esquecido e cheiros são sintetizados através de tecnologia avançada, o smellitizer 2. Também as sessões de cinema 4D se propõem apelar a todos os sentidos, envolvendo o espectador de forma a proporcionar-lhe sensações que o levem a sair de si mesmo e a entrar numa outra dimensão. Estas experiências poderão ser vistas como excentricidades ou excessos que dificilmente se podem aplicar em museus. Na verdade, quando alguém vai a um parque temático ou a uma sessão de cinema 4D, parte com a expectativa de se ver transportado para sensações únicas. Raramente alguém entra num museu com a mesma expectativa. As acções que se têm vindo a implementar em muitos museus nacionais e estrangeiros permitem afi rmar que, aos poucos, e em nome da acessibilidade e inclusão, começa-se a recorrer a soluções multi-sensoriais para permitir uma maior aproximação ao público, oferecendo-lhe novas oportunidades de percepção e compreensão dos espólios museológicos. Inicialmente as iniciativas de interacção exploratória eram dinamizadas pelos Serviços de Acção Educativa dos museus, em sessões direccionadas para públicos específicos – escolas, grupos de pessoas com deficiência, idosos, entre outros. Hoje, procura-se transportar essas experiências para dentro do espaço de exposição para que possa ser fruído em visitas livres e por quem o quiser fazer. Desta feita, as oportunidades experienciais estão ao dispor de “todos” e a “todo o momento” para que cada um possa interagir com o museu da forma como quiser.

Exemplos de boas práticas

Desenvolvem-se já em Portugal, um pouco por toda a parte, iniciativas de comunicação multi-sensorial em museus de natureza diversa. São frequentemente os museus da ciência que mais se abrem a novas soluções comunicativas pelo teor das suas exposições, tanto permanentes como temporárias. O apelo à experiência e à interactividade leva a que se encontrem soluções lúdico-pedagógicas muito apreciadas por crianças e adultos que tocam, fazem e experienciam tudo de forma activa. Os princípios da experiência vivencial espalham-se agora também a museus de outras áreas. Os exemplos internacionais são muitos e os nacionais começam a surgir. Realce-se, a título de exemplo, o dinamismo do Museu da Chapelaria, em S. João da Madeira, ou do Museu de Arqueologia, em Lisboa. Ali, exploram-se técnicas de engajamento com o público, recorrendo-se a estratégias de comunicação que passam pelo contacto directo com o espólio, através do manuseamento de peças, a recriação epocal com encenações teatrais e workshops diversos. Um e outro alimentam espaços virtuais 3 que contribuem igualmente para a disseminação e dinamização da sua acção.

Será de crer que muitos outros museus se dedicam a actividades semelhantes, embora nem sempre do conhecimento do grande público. O facto de estas acções serem esporádicas e muitas vezes parcelares também leva a que públicos com necessidades especiais não usufruam das condições que lhes abrem espaços até aqui vedados. Continua a ser raro ver-se pessoas cegas a visitar exposições de pintura. Igualmente raro será encontrar espaços que naturalmente oferecem condições para que todos se sintam bem-vindos na sua diferença.

Só o garante de condições de transporte, acesso arquitectónico, mobilidade e direccionamento, bem como de propostas de comunicação acessível poderá fomentar uma participação mais assídua de pessoas com necessidades especiais na experiência museológica (cf. Dodd & Sandall 1988).

Foi a vontade de levar a pintura a todos, na sua individualidade, que ditou o projecto “Olha por mim”, lançado na Biblioteca José Saramago em Setembro de 2009 4. Numa proposta multi-sensorial, a artista plástica, Tânia Bailão Lopes, propôs-se levar o seu trabalho a pessoas normovisuais, pessoas cegas, pessoas s/ Surdas, adultos e crianças através de soluções de tradução intersemiótica. Ao oferecer a sua obra à interpretação e transcodifi cação para textos verbais, áudio e tácteis, Mirtilo Gomes, nome com que a pintora assina esta colecção, dá-se a conhecer não só através das telas, mas através de áudioguias, videoguias e de um quadro táctil. A abordagem multi-formato, que implica a tradução da obra plástica para novos formatos, permitiu que a mesma chegasse a diversos públicos simultaneamente. Tal signifi cou que, numa mesma sala, em simultâneo e sem que tal fosse percepcionado pelos restantes visitantes, co-habitassem pessoas a “ver” a exposição através dos mais diversos sentidos.

Uma primeira preocupação de acessibilidade e inclusão prendeu-se com a promoção da autonomia e conforto, garante primeiro da preservação da identidade. Sendo o espaço naturalmente acessível e agradável, não houve grande necessidade de intervenção a nível arquitectónico. Foi apenas necessário reorganizar a sala de forma a criar vários espaços de repouso, i.e. bancos e cadeirões espalhados, para que os visitantes pudessem sentar-se, para descansar ou contemplar as obras, sempre que lhes apetecesse. A promoção da autonomia foi, sem dúvida, um dos elementos-chave daquele trabalho. Habitualmente, pessoas cegas não visitam exposições de pintura e muito menos o fazem de forma autónoma e individual. Ao improvisar um trilho plantar – uma simples corda colada no chão com pequenos nós nos sítios onde se encontravam os quadros expostos – permitiu-se que pessoas cegas ou com baixa visão pudessem entrar e visitar a exposição seguindo o percurso que qualquer visitante normovisual faria, sem que para tal precisasse do acompanhamento ou ajuda de terceiros.

Será de questionar qual o interesse de criar um guia plantar em torno de uma exposição de pintura se a pessoa cega não poderá ver os quadros em exibição. O mesmo será perguntar “por que quererá uma pessoa cega ir a um museu?” Smith (2003:221) responde a esta pergunta da seguinte forma:

[t]hey may simply want to be in the presence of great art, great scientifi c achievement, important historical objects or documents, anthropological and archeological fi ndings and specimens, or multicultural information of all kinds. (…) whatever the reason, a visually impaired person hopes to leave the museum fully enriched by the experience.

Na verdade, qualquer que sejam as necessidades especiais de qualquer visitante, ao entrar num espaço de exposição ele quererá vivenciar aquele espólio da forma possível e ao seu dispor.

“Ver” é um conceito que precisa de ser reequacionando quando abordado no contexto museológico. Como nos lembra Gregory (1998:1-2), o olho é um simples aparelho mecânico. É no cérebro que se vê. E o que o cérebro recebe são pequenos impulsos eléctricos, com diferentes frequências, pequenos sinais transmitidos por todos os sentidos. Aquilo que se vê de forma mecânica não será necessariamente aquilo que é dado ao nosso cérebro ver, e o que o nosso cérebro “vê” não terá sido necessariamente recriado a partir da imagem que entrou pela retina. Com tal em mente, será de alvitrar a hipótese de que um cego irá a uma exposição de pintura para que lhe possa ser dado “ver” através dos outros sentidos.

Essa visão não-ocular pode ser proporcionada através da tridimensionalização das pinturas e através de textos descritivos. Segundo Smith (2003:22) na junção dos dois meios – o verbal e o táctil – poder-se-á chegar a imagens muito próximas daquelas captadas pela visão. E foi essa a premissa que ditou que na exposição “Olha por mim” se oferecesse uma visita multi-sensorial que foi muito para além da visão.

Foi colocado ao dispor dos visitantes um áudioguia em si mesmo multisensorial. Um exemplo assumido de ecfrasis, este áudioguia não se propôs descrever as obras de arte em exibição mas sim transmitir as mensagens e sensações que essas mesmas obras transmitem, assumindo-se como uma outra obra de arte inspirada na primeira. Tal poderá ser gerador de alguma controvérsia, particularmente se considerarmos que, em contexto museológico, um áudioguia é visto como um mediador. No caso concreto deste projecto, o áudioguia foi concebido a pensar em visitantes cegos. Por tal, mais do que mediar, o áudioguia pretendeu substituir a experiência ocular por uma experiência multissensorial. Aqui, o áudio pretende activar os diversos sentidos, para uma construção de imagens mentais tão expressivas quanto as geradas pelas pinturas. A escolha criteriosa das palavras, num apelo aos mais diversos sentidos, a clareza e cadência da voz, a selecção da trilha sonora e a inclusão de efeitos sonoros, levou a que o produto fi nal transportasse os visitantes “para dentro dos quadros” para assim se apropriarem das mensagens neles contidas. Testemunhos de visitantes referem o poder sugestivo do áudioguia, e de como este contribuiu para um envolvimento emocional com as obras de arte. O culminar desta experiência multisensorial registou-se, sem dúvida, na associação do áudioguia com a visita táctil a um quadro tridimensional criado pela artista plástica expressamente para o efeito, permitindo testemunhar, na prática, aquilo que Smith (ibidem) refere como sendo uma complementaridade de “sentires”. As emoções geradas pela experiência de ver com as pontas dos dedos e os ouvidos em simultâneo 5, nova para a maioria dos visitantes, permite sugerir que este será, sem dúvida, um caminho a percorrer no momento de levarmos a experiência museológica a todos. Esta experiência reitera as palavras de Donald (1988:164) que lêem: “there is no simple solution, no one size fi ts all. But designing for flexibility helps” e ser multissensorial significa, em última instância, “ser flexível”.

Bibliografia

Classen, Constance (2007), “Museum manners: the sensory life of the early museum”, Journal of Social History, June 22. 895-914.

Dodd, Jocelyn & Richard Sandell (1988), Building Bridges, London: Museums & Galleries Commission.

Donald, Norman (1988), The Psychology of Everyday Things, U.S.A.: Basic Books.

Gregory, Richard L. (19989, Eye and the Brain. The Psychology of Seeing, Oxford and Tokyo: Oxford University Press.

Herder, Johann Gottfried ( 2002) Sculpture: some observations on shape and form from Pygmalion's creative dream, Chicago & London:University of Chicago Press.

Robert Mandrou (1976), Introduction to Modern France: An Essay in Historical Psychology, New York: R.E. Hallmark.

Smith, Richard Donald (2003), ”Museums and Verbal Description”, in. A Research Project of the Art Education Department, Finland: Jyväskyla Univeristy.

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