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A disciplina de Libras no Ensino superior e seus impactos na visão dos licenciandos em relação à surdez e à Libras
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Publicado em 2020
Revista The Especialist, v. 41, n. 1
Fabíola Sucupira Ferreira Sell
Gabriele Cristine Rech
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

Os resultados de pesquisa apresentados neste artigo estão vinculados ao projeto de pesquisa Libras e Ensino, que tem por finalidade comparar a oferta da disciplina de Libras em licenciaturas de duas instituições públicas. A etapa que aqui se apresenta tem por objetivo discutir o impacto da disciplina de Libras nas crenças iniciais dos licenciandos no que diz respeito aos conceitos de Surdez e da Língua de Sinais, a partir de questionários aplicados ao final da disciplina, no ano de 2016, nas duas instituições. A partir da análise das respostas coletadas, foi possível perceber mudanças na percepção dos licenciandos tanto em relação a características estereotipadas e depreciativas em relação à surdez como no que concerne ao estatuto das línguas de sinais como línguas naturais.

1. Introdução

Este artigo traz resultados do projeto de pesquisa Libras e Ensino, Etapas UDESC e UEMS, discutindo alguns impactos da disciplina de Libras nos cursos de licenciatura dessas universidades. Para tanto, buscou-se analisar as respostas dadas pelos licenciandos a uma das perguntas que compõem um questionário entregue ao final da disciplina durante o ano de 2016. Ao todo, o questionário foi aplicado em 11 turmas das duas universidades, em um total de 84 respondentes na UDESC e 67 respondentes na UEMS, totalizando 151 respondentes. O questionário era composto de 5 perguntas. Neste artigo analisamos as respostas à seguinte pergunta: Quais conceitos foram desconstruídos sobre os surdos e a língua de sinais durante sua formação? O que você acreditava que era verdade, e que foi modificado após a disciplina de Libras? Para realizar tal análise, revisitamos diversos estudos acerca da surdez e da Libras, conforme segue.

Muitos pesquisadores da área da surdez já escreveram a respeito da história da educação de surdos, tais como Strobel (2008); Lane (1992); Skliar (1998). Através desses trabalhos é possível perceber que as pessoas surdas, durante milhares de anos, foram representadas pelos olhares dos não surdos como inferiores, incapazes, isolados, desprovidas da capacidade de pensamento, em que “a surdez representa a falta e não a presença de algo” (LANE, 1992, p. 23).

Sacks (1998) afirma que, antes de 1750, a situação da grande maioria das pessoas natissurdas era uma calamidade: não desenvolviam a fala e consequentemente ficavam limitadas à comunicação, inclusive com os familiares e dispunham do auxílio de gestos rudimentares, sendo isolados “até mesmo da comunidade de pessoas com problemas, privados de alfabetização e instrução, [...] forçados a fazer os trabalhos mais desprezíveis, [...]considerados pela lei e pela sociedade como pouco mais que imbecis” (SACKS, 1998, p.27).

Segundo Sacks (1998), a realidade das pessoas surdas começou a mudar a partir do encontro do abade Charles-Michel de l'Épée com a língua de sinais utilizada por surdos pobres que viviam nas ruas de Paris. Para o religioso, o acesso aos surdos e, consequentemente, a possibilidade desses terem acesso à Palavra de Deus era possível através da língua de sinais, que era vista por ele enquanto mímica e universal (SACKS, 1998, p.30). Cabe ressaltar que, na Idade Média, as pessoas surdas eram proibidas de receber comunhão, uma vez que os religiosos acreditavam que era impossível aos surdos confessarem seus pecados.

L´Epée, em 1755, fundou a primeira escola gratuita para surdos, denominada Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris, hoje Instituto Nacional de Jovens Surdos de Paris. O trabalho do abade foi de grande importância para a comunidade surda, que, apesar de não entender que a língua dos sinais era de fato uma língua, foi o pioneiro a entender a importância da mesma no processo de educação dos seus

alunos. O método utilizado pelo religioso era denominado sistema de “sinais metódicos”, que consistia em utilizar os sinais que aprendeu com os surdos, associado à gramática da língua francesa. Além do pioneirismo em educar as pessoas surdas utilizando a língua de sinais, L´Epée treinou vários professores surdos. É sabido que até o momento da morte do religioso, em 1789, vinte e uma escolas para surdos foram criadas pelos professores formados em toda a Europa (SACKS, 1998, p. 31).

Já em meados do século XIX, os educadores de surdos perceberam que a tentativa de “dialetizar” a linguagem gestual estava condenada ao fracasso (LANE, 1992, p. 108). Muitas escolas de surdos nos Estados Unidos e na França estavam adotando a língua oral majoritária e abandoando a língua minoritária, a língua de sinais, no processo educacional dos estudantes surdos.

Como parte desse cenário de substituição da língua de sinais pela língua oral, vários professores de surdos reuniram-se em Milão, na Itália, em 1880, para deliberarem a respeito do melhor método para ensinar as pessoas surdas. Os 164 delegados presentes, à exceção dos americanos, votaram a favor do abandono da língua de sinais e adoção da língua oral para a educação das pessoas surdas.

Calvet (2002, p. 12) afirma que “a história de uma língua é a história dos seus falantes”. Neste sentido, até o final da década de 1960, a língua de sinais e as pessoas surdas eram vistas de forma desprestigiada. Foi a partir dos estudos do americano Willian Stokoe que esse quadro começou a mudar. Stokoe, ao pesquisar a ASL (Língua de Sinais Americana), concluiu que essa língua satisfazia os critérios linguísticos de uma língua de verdade. Sacks (1998) comenta que de início os estudos de Stokoe foram percebidos como loucura pelos estudiosos da época, porém, anos mais tarde, esses estudos foram acolhidos e uma “dupla revolução” estava acontecendo: “uma revolução científica, atentando para a língua de sinais e seus substratos cognitivos neurais, e como ninguém jamais pensara antes em fazer, e uma revolução cultural e política” (SACKS, 1998, p. 90).

É a partir desse reconhecimento linguístico que a comunidade surda procura o reconhecimento cultural e político: sujeitos pertencentes a um grupo linguístico minoritário. Lane (1992) afirma que “a educação é o campo de batalha onde as minorias linguísticas ganham ou perdem seus direitos” (LANE, 1992, p. 103) e, na atualidade brasileira, a luta por uma educação bilíngue, que considere as especificidades culturais dos surdos e que dê o direito a esses sujeitos de aprenderam a língua de sinais como primeira língua e a língua portuguesa como segunda língua, é a maior bandeira das comunidades surdas organizadas.

No Brasil, o primeiro passo dado na direção da educação bilíngue foi o reconhecimento da Libras (Língua Brasileira de Sinais) através da Lei federal 10.436/02 que no Artigo primeiro afirma:

Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados.

Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual- motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil(BRASIL, 2002).

Em 2005, a referida Lei foi regulamentada através do Decreto 5626/05, que dispõe, entre outros, a respeito da formação de professores para o ensino da língua de sinais, da formação de tradutores e intérpretes de língua de sinais, do acesso à língua portuguesa e à língua de sinais, e da inclusão da disciplina de Libras de forma obrigatória nos cursos de licenciatura e fonoaudiologia e de forma optativa nos demais cursos do ensino superior.

Um dos grandes dilemas que a educação bilíngue para surdos enfrenta é a forma como ela pode ser implementada, uma vez que a política oficial adotada pelo MEC é a Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação inclusiva, que busca adotar formas de evitar a exclusão escolar, incluindo todos os alunos na escola regular. Nesse sentido, observa-se que, mesmo com todas as discussões a respeito das pessoas surdas enquanto comunidade linguística, para o Estado, a Educação Especial ainda tem a responsabilidade de gerir o processo educacional das pessoas surdas (LODI, 2013, p. 53).

Esse dilema está ainda longe de ser resolvido; entretanto, existe um consenso: a necessidade da formação de professores que atendam esse alunado. Este artigo se propõe a este objetivo: analisar a importância da disciplina de Libras nos cursos de licenciatura, no sentido de levar os alunos a repensar os conceitos de surdez e de língua de sinais, buscando diminuir estereótipos construídos. Esta pesquisa caracteriza-se como qualitativa, de levantamento de dados a partir da aplicação e análise de questionários, com perguntas abertas e fechadas. Neste artigo, analisa-se uma das questões a partir de referencial teórico que trata de representações em torno da surdez e das línguas de sinais.

2. Representações em torno da surdez

Historicamente, como vimos, as pessoas surdas foram narradas pelas pessoas não surdas sob vários espectros. Lane (1992, p. 33), de uma forma geral, entende que existem duas formas de se representar a surdez: a partir de um modelo de enfermidade (surdez enquanto deficiência física) e a partir de uma modelo cultural (surdez enquanto cultura).

A surdez no modelo da enfermidade é percebida como a “falta de som”, precisando ser medicalizada para que as pessoas surdas “alcancem” o ideal da comunidade majoritária: ouvir. Essa perspectiva é adotada principalmente pela classe médica, primeira a dar o diagnóstico para os pais de surdos, que em 95% dos casos são ouvintes. Esses profissionais, muitas vezes, alertam que a aquisição da língua de sinais atrapalha o processo do “ensino” da língua oral para os surdos. A esse respeito Claudio et al. (2016) aponta:

Os sujeitos surdos, nesta perspectiva [visão clínico-terapêutica] são posicionados em desvantagem, se comparado à maioria da população ouvinte, pois há uma busca pela normalização do surdo, percebido como alguém que ao receber o Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI) ou Implante Coclear poderá ouvir, e só a partir disso integrar-se a sociedade ouvinte” (CLAUDIO, GUARINELLO ; SHELP, 2016, p. 31).

Já a surdez como modelo cultural, ao contrário da perspectiva anterior, é percebida enquanto experiência visual, num modo de se organizar em comunidade que compartilha língua, cultura e história. Nessa forma de organização, a adesão de um membro a esse grupo não está atrelada a laudos médicos, mas pela materialização da cultura e língua de sinais na vida do sujeito surdo (LANE, 1992, p.34).

Lane (1992), na sua discussão em relação às representações da surdez pelas pessoas ouvintes especialistas na área, investigou publicações a respeito de avaliações psicológicas aplicadas em crianças e adultos surdos, e identificou características conforme mostradas no quadro 1 abaixo:

SOCIAL COGNITIVA COMPORTAMENTAL EMOCIONAL
Admiração
Dependente da
A-social
Infantil
Fechado
Competitivo
Consciência fraca
Crédulo
Dependente
Desobediente
Irresponsável
Isolado
Moralmente atrasado
Rígido
Tímido
Submisso
Sugestionável
Desintegrado
Conceptualmente fraco
Concreto
Céptico
Egocêntrico
Falhas externas
Falhas internas
Fraco discernimento
Introspecção: nenhuma Linguagem: nenhuma Linguagem pobre Mecanicamente inapto
Ingênuo
Raciocínio estreito Autoconsciência fraca
Astuto
Pensamento confuso Alheado
Pouco inteligente
Agressivo
Andrógino
Consciente
Hedonista
Imaturo
Impulsivo
Falta de iniciativa
Pouco interesse Desenvolvimento motor lento
Personalidade pouco desenvolvida
Possessivo
Rígido
Caminha arrastando os pés
Teimoso
Desconfiado
Inconfidente falta de Ansiedade
Depressivo
Emocionalmente perturbado
Imaturo
Falta de empatia
Explosivo
Frustrado
Facilmente irritável Caprichoso
Neurótico
Paranoico
Apaixonado
Reações psicóticas
Sério
Temperamental
Sem sentimento

Fonte: LANE (1992, p. 47)
Quadro 1: Características (LANE, 1992)

Através do quadro, acima, é possível perceber que várias características depreciativas foram atribuídas às pessoas surdas. A essa relação interacional entre os atributos e estereótipos, Goffman (1980) denomina estigma. Para o autor:

O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso (GOFFMAN, 1980, p.13).

Para o autor, a sociedade categoriza as pessoas e os atributos que lhe são comuns, e a partir dessa categorização determina o que é natural e normal. O autor afirma ainda que, ao conhecermos um estranho, de primeiro prevemos sua “identidade social”, formada através das preconcepções que temos a respeito desse sujeito, e que dizemos como ele deveria ser. Entretanto, as categorias e atributos que o indivíduo realmente tem são denominados pelo autor como “identidade social real”. Nessa perspectiva, podemos entender que o estigma está presente nas relações sociais, geradas pela desconexão entre a identidade social e a identidade social real.

Passados vinte e cinco anos dos estudos feitos por Lane (1992), catalogando as diversas representações atribuídas às pessoas surdas e após tantas conquistas, ainda paira a dúvida: “seria possível que nos dias atuais as pessoas surdas ainda carreguem estigmas inerentes a sua condição?”. Essa é a questão que este artigo quer analisar, tomando como entrevistados alunos dos cursos de licenciatura, matriculados em duas universidades públicas estaduais.

3. Língua de sinais e seu estatuto linguístico

Conforme já mencionado acima, existe uma relação entre a história dos falantes com a história das suas línguas (CALVET, 2002). Sendo assim, é pertinente que neste trabalho apresentemos também a forma como a língua de sinais vem se constituindo como língua e a forma que os não usuários dessa língua a percebem.

Apesar de os estudos de Stokoe, na década de 1960, demonstrarem que as línguas de sinais preenchiam todos os requisitos que a linguística exige das línguas orais, ainda há um grande desconhecimento e estranhamento das pessoas ouvintes a respeito dessa língua de modalidade gestual- visual. A respeito desse estranhamento Sacks (1998) aborda:

[...] Nossa extraordinária dificuldade até mesmo para imaginar uma gramática espacial, uma sintaxe espacial, uma língua espacial – imaginar um uso linguístico no espaço – pode originar-se do fato de que “nós” (os ouvintes, que não nos comunicamos por sinais), não dispondo de nenhuma experiência pessoal de “gramaticar” o espaço ( e não possuindo, de fato, nenhum substrato cerebral pra tal), somos fisiologicamente incapazes de imaginar como seria isso (assim como não conseguimos imaginar como seria ter um rabo ou enxergar em infravermelho) (SACKS, 1998, p.88).

Quadros e Karnopp (2004) afirmam que os estudos linguísticos a respeito das línguas de sinais contribuem para desmistificar conceitos errôneos sobre elas, tais como: a incapacidade da língua de sinais expressar conceitos abstratos; as línguas de sinais são iguais em todos os países; as línguas de sinais, no que diz respeito à estrutura gramatical são subordinadas as línguas orais e as línguas de sinais são superficiais linguisticamente inferiores às línguas orais.

Gesser (2009), em seu livro denominado “Libras, que língua é essa?”, se propõe, de forma pedagógica, a elucidar as diversas crenças e preconceitos atribuídos à língua de sinais. A autora explica aos seus leitores que a língua de sinais não é universal, não é artificial, que não é uma mímica, que possui uma gramática, que é capaz de expressar conceitos abstratos, entre outros. O que nos chama a atenção é que as duas publicações apresentadas, em pleno século XXI, ainda se prestam a desmistificar a língua de sinais, como que na tentativa de ainda provar que elas são uma língua de verdade, pois segundo a autora “ [...] nas ondas das boas novas também se infiltram as velhas práticas e os velhos discursos” (GESSER, 2009, p. 79).

4. Os dados encontrados

As disciplinas de Libras ministradas pelas professoras autoras nas duas universidades possuem cargas horárias que variam entre 34, 36, 54 e 68 e horas, e a dificuldade em oferecer uma formação que contemple todas as especificidades de professores que atuarão com alunos surdos já foram problematizadas e suas limitações apresentadas e publicadas, conforme Rech e Sell (2016).

Assim, passamos a uma nova etapa: questionar se, para além das limitações já apresentadas, seria possível encontrar contribuições significativas, que cooperassem para que possíveis estereótipos construídos socialmente pudessem ser diminuídos ou realmente descontruídos. Para tal, ao final de cada disciplina, os alunos recebiam um questionário, composto por cinco questões. Neste artigo, analisamos a seguinte questão: Quais conceitos foram desconstruídos sobre os surdos e a língua de sinais durante sua formação? O que você acreditava que era verdade, e que foi modificado após a disciplina de Libras?

Pudemos perceber que alguns conceitos apareceram com maior frequência nas respostas. Sendo assim, optamos por fazer uma análise qualitativa, elencando oito conceitos desconstruídos durante a disciplina que obtiveram maior frequência nas respostas, quais sejam: Todo surdo é mudo, Libras é universal, Surdo é incapaz, Limitação da Língua de Sinais, Sujeito inferior/subalterno, Normalização do Surdo, Surdez como doença/deficiência, Leitura Labial.

Há três pontos na análise que precisam ser observados. O primeiro é que em uma mesma resposta foi possível encontrar mais de um conceito desconstruído. Em segundo lugar, além dos oito conceitos que elencamos aqui, outros conceitos desconstruídos aparecem nas respostas, mas com menor frequência e possivelmente ligados à ênfase que cada professora atribuiu aos assuntos em suas aulas 3.

Por fim, enquanto fazíamos a análise dos dados encontrados, percebemos a importância não somente de classificar os principais conceitos desconstruídos, mas também de registrar os termos utilizados pelos licenciandos, pois suas respostas podem dizer muito sobre as representações que tinham em relação ao surdo e à Libras não só para esse estudo, mas para futuras pesquisas. Por isso, dispomos a seguir os oito conceitos descontruídos que mais aparecerem nas respostas, bem como os termos utilizados pelos estudantes para cada um dos conceitos. Nesse sentido, procuramos elencar as diferentes maneiras como os licenciandos registraram suas respostas 4, excluindo aquelas muito semelhantes ou idênticas. Em alguns casos, aparece apenas parte da resposta dada, com o recorte da parte que destaca o conceito desconstruído, conforme análise que apresentaremos.

O primeiro conceito descontruído é que todo surdo é mudo, conforme as respostas abaixo:

Todo surdo é mudo

  • Pessoas surdas eram também mudas.
  • Todo o surdo é mudo.
  • Todo surdo tinha também deficiência vocal.
  • Não sabia que o surdo podia falar se a oralização fosse trabalhada.
  • Que a pessoa surda desde a infância poderia aprende a oralidade.
  • Sempre ouvi falar em surdo/mudo.
  • Acreditava que era correto dizer “surdo-mudo”.
  • Um conceito que pode parecer bobo, mas é muito importante é a própria nomenclatura: surdo. A comunidade desprovida desse conhecimento muitas vezes o chama de surdo-mudo ou de outras palavras que acabam sendo pejorativas.
  • Que não existe surdo mudo
  • Eu acreditava que o deficiente auditivo era mudo e surdo.
  • Eu desconstruí o conceito de que a pessoa que nasce surda é muda, quando na verdade ela somente não fala porque não escuta
  • Antes de cursar a disciplina de Libras, eu acreditava que todos os surdos eram mudos, mas com os estudos teóricos compreendi que isso é um grande mito e que existem várias gradações da surdez.
  • Que existem só surdos e não surdos mudos

Podemos observar que, apesar de todas as discussões da atualidade, as pessoas surdas são vistas socialmente pelo viés clínico, existindo uma relação entre surdez e mudez, atribuindo, mesmo sem perceber, uma “dupla deficiência” aos surdos. Wrigley (1996, p.8) afirma que “a surdez diz menos à audiologia do que a epistemologia”; nesse sentido, o autor discute que o grau de surdez pouco importa, pois os surdos definem-se de forma linguística e cultural (WRIGLEY, 1996, p. 16). Para além da questão de nomenclatura, ainda é possível ver atributos de surdez e deficiências em outras respostas como abaixo:

Surdez enquanto doença/deficiência

  • Que era impossível se comunicar com alguém com essa deficiência.
  • Que a surdez é uma doença, um defeito, mas aprendi com essa matéria que os surdos não são doentes, eles são diferentes, pessoas que falam outra língua.
  • Via a surdez como uma deficiência, porem hoje depois de leituras e aulas vejo que é apenas uma diferença que não transforma o indivíduo em incapaz.
  • Quebrei alguns preconceitos de que a surdez é uma doença, sendo que ela pode (e deve) ser entendida como uma identidade sobretudo política.
  • O surdo não deve ser visto como um deficiente, mas como um indivíduo que se comunica com uma língua diferente.
  • Que o surdo não é um deficiente, apenas não escuta.
  • Que o surdo era deficiente quando na verdade ele é apenas diferente.
  • Que não se deve chamar o surdo de deficiente auditivo (...)
Nas respostas apresentadas, é possível observar termos como doença, doente e incapaz, em que o sujeito é representado com base no que falta, e não na presença de algo, conforme já denunciava Lane (1992, p. 23). Este autor afirma ainda que “aplicar um modelo de enfermidade aos membros de um grupo é considerá-los e ter atitudes para com eles, particularmente, com respeito ao nosso conceito cultural de deficiência física” (LANE, 1992, p. 33). Nesse viés, talvez, as respostas que usaram o termo deficiência sejam na ótica negativa, pois apesar de todos os avanços nas discussões no que diz respeito ao que significa ser uma pessoa com deficiência, sabe-se que no senso comum esse conceito é carregado de noções depreciativas.
Na sequência, Lane (1992, p. 33) reflete que ao atribuir o conceito de enfermidade a um determinado grupo, muitas vezes buscam-se recursos para minimizar as dificuldades enfrentadas pelos seus membros. É provável que, no inconsciente dos respondentes do questionário, diversas práticas de normalização, como próteses auditivas e a leitura labial, sejam vistas como formas de “superação” da enfermidade. A esse respeito, temos as seguintes respostas:

Leitura Labial

  • Que todos os surdos leem lábios.
  • Que todo surdo sabia ler os lábios.
  • (...) que todo surdo podia fazer leitura labial.
  • Eu acreditava que falar devagar para que o surdo pudesse ler os meus lábios poderia resultar em comunicação.

Normalização do surdo

  • Todo surdo poderia usar aparelho auditivo.
  • Que todo surdo poderia aprender a língua portuguesa com facilidade.
  • Que eles aprendem português como nós.
  • Achava que os surdos conseguiam acompanhar textos normalmente.
  • Eu acreditava que todos os surdos tinham o sonho de ouvir, de colocar aparelho auditivo, que na verdade nem sempre eles desejam essa opção.
  • E que todos poderiam utilizar aparelho para evitar a surdez.
  • Que todos os surdos tinham o sonho de escutar; que o aparelho de amplificação do som era um sonho de consumo para todos.
  • Que as pessoas surdas não gostam de música
  • Eu pensava que alguns surdos esperavam ansiosamente pelo aparelho auditivo.
  • Vários conceitos foram desmistificados após o estudo da disciplina entre eles que nem todo surdo deseja se tornar ouvinte por meio da cirurgia.
  • Acreditava que todo surdo poderia ser ouvintizado, no sentido que independente da fisiopatologia de sua surdez não havia dificuldades para oralização. Foi desconstruída também a questão de ser ouvinte é normal.
  • Para mim todos os surdos eram iguais, eu não sabia que existiam surdos que não gostam de conviver com a comunidade surda. Na disciplina aprendi que assim como os ouvintes, os surdos possuem suas identidades.

Gesser (2009) afirma que a leitura labial, assim como o desenvolvimento da fala pelo surdo, precisam de treinos intensos para ser desenvolvidos, e que alguns surdos possuem mais habilidades do que outros. Os aparelhos auditivos, por sua vez, não ajudam o surdo a ouvir melhor, mas amplificam o som de todo o ambiente, possivelmente dando melhores resultados para pessoas idosas, que gradativamente perderam a audição, ou para pessoas surdas com resíduos auditivos maiores (GESSER, 2009, p. 74).

Percebe-se, portanto, que é de extrema importância desmistificar essa questão, pois, por exemplo, em sala de aula, alunos surdos precisam ter relações comunicativas significativas com seus pares e com os professores, e isso passa a ser possível quando a língua de sinais está envolvida em todo o processo educacional.

Anteriormente, apresentamos um quadro com características sociais, cognitivas, comportamentais e emocionais depreciativas atribuídas aos surdos e catalogadas por Lane (1992). Surpreendentemente, nas respostas apresentadas pelos alunos, encontramos vários enunciados que podem ser categorizados de duas formas: surdo como incapaz e surdo como sujeito inferior/subalterno:

Surdo como incapaz

  • Surdos só fazem Libras.
  • Desconhecia que os surdos poderiam escrever e entender o português escrito.
  • Surdos podem desenvolver a oralização, não sabia que era possível.
  • Que a aprendizagem de um aluno surdo era inferior a de um aluno ouvinte.
  • Que os surdos possuem atrasos mentais.
  • Que os surdos sofriam de certa limitação para algumas coisas.
  • Não tinha noção das coisas que [os surdos] eram capazes de fazer.
  • Aprendi que o surdo é uma pessoa como qualquer outra, porém com especificidades e prioridades um pouco específicas.
  • Eu achava que eles não tinham capacidade de fazer certas coisas e de desempenhar alguns serviços.
  • (...) que eles (surdos) não aprendem.
  • (...) pensava que eles não tinham capacidade de aprender ou estudar em uma escola regular; não percebia que eu como futura professora poderia ter alunos surdos.
  • que eram incapazes de realizar grande número de ações, que não conseguiam aprender.
  • Meu pensamento era que o surdo não poderia aprender e se socializar com outros e o que vi e aprendi é que eles são iguais a nós e que eles tem sua cultura, sua intimidade e com certeza somos nós que temos que aprender com eles.
  • Tinha em mente que os surdos não eram capazes de ter uma formação acadêmica, e durante as aulas foi quebrado em mim esse tabu e que são pessoas capazes de se formarem e serem ótimos profissionais.
  • Acreditava que a pessoa surda não fosse capaz de aprender a Língua Portuguesa.
  • Que por ser surdo a pessoa não conseguiria aprender nada em língua portuguesa, mas vejo que podem aprender a escrever.

Surdo como Sujeito inferior/subalterno

  • Surdos não tinha vida social, eram limitados e até “coitadinhos”.
  • Que por sua condição os surdos fossem menos capazes intelectualmente.
  • De que era um coitadinho.
  • Que o surdo era uma pessoa de baixa estima.
  • Acreditava que o surdo não poderia ter uma vida “normal” e depois disso percebi o quanto são independentes e que é capaz como qualquer outra pessoa.
  • (...) que os surdos não são coitados.

As respostas apresentadas sugerem que os respondentes organizam suas concepções a respeito das pessoas surdas com base nas faltas, nas incapacidades. Mas o que motiva tais pensamentos? Lane (1992,
p. 26) apresenta uma possibilidade:

Esses pensamentos incorretos surgem do nosso egocentrismo. Ao imaginar a surdez, eu imagino o meu mundo sem som – um pensamento aterrorizador e que se ajusta razoavelmente ao estereótipo que projetamos para os membros da comunidade dos surdos. Eu estaria isolado, desorientado, incomunicável e incapaz de receber comunicação. Os laços com outras pessoas estariam desfeitos (LANE, 1992, p.26).

Mesmo com menor incidência, as concepções equivocadas em relação à Libras também foram encontradas, conforme apresentamos a seguir:

Libras é universal:

  • A língua de sinais é igual em todas as partes do mundo.
  • Libras era língua universal.
  • Que em todos os países se usava a mesma sinalização.
  • Foi desconstruída e modificada a visão e pensamento de que a língua de sinais é única (...)
  • Que a libras é uma língua oficial que possui uma gramática própria e que ela é uma língua de sinais utilizada somente no Brasil em outros países tem sua própria língua de sinais (... ).
  • (...)e que a língua de sinais era única em todo mundo.
  • Também, que a língua de sinais não é universal, ou seja, para cada país existe sinais distintos, assim como cada língua falada possui suas próprias palavras distintas.
  • Primeiro que Libras, esse nome é usado apenas no Brasil.
  • Achava que a língua de sinais era a mesma para todos os países, mas cada país tem a sua própria língua de sinais.
  • De fato existem muitos conceitos que foram desconstruídos, como por exemplo: que a língua de sinais era universal e utilizada por todas as pessoas surdas e não é bem assim, além de existir variedades de uma região para outra, também ela é modificada de um país para outro.
  • Descobri que a Libras não é uma língua universal.

Limitação da Língua de Sinais

  • (...) que a Libras não conseguiria expressar tanto quando se é necessário para comunicação.
  • Que Libras é uma língua natural, que apresenta estrutura gramatical própria.
  • (...) que uma frase em português e em libras sua concordância são alteradas.
  • Que a Libras era uma extensão do português oral.
  • Que a língua de sinais era muito mais fácil do que é na verdade.
  • Que se comunicam por gestos ou mímica.
  • Os conceitos desconstruídos foram sobre a língua de sinais ser gestos/mímica (...)
  • Um dos conceitos que foram desconstruídos foi o de pensar que bastava saber o alfabeto em libras e já seria capaz de conversar com um/a surdo/a.
  • Eu infelizmente acreditava que a libras não possibilitava a completa comunicação por parte de quem a utiliza, e isso é um absurdo, pois ela é uma língua completa.
  • (...) de que a Libras é constituída por sinais e gestos comuns, sendo que são sinais convencionados culturalmente.
  • que a língua de sinais não é a mesma coisa que gesto.
  • (...) de que a Libras é padrão em todas as regiões do Brasil e não havendo variação como na língua do ouvinte.
  • (...) de que a Libras eram gestos sem sentido, não compreendia que é bem simples, de que fato é um modo é um jeito diferente para se comunicar, mas que é de suma importância para eles e para nós também de que foi importante conhecer Libras para nós educadores.
  • Acreditava que a língua de sinais era gestos e mímicas.
  • Eu não achava que a libras era diferente da língua portuguesa, achava que era língua portuguesa em Libras.
  • Que a língua de sinais era limitada (...).
  • Que (a Libras) é uma língua verdadeira (...).
  • Acreditava que os surdos se comunicavam por gestos, pensava que a Libras era apenas letras do alfabeto (...).

Nas respostas apresentadas, percebe-se que, embora a Lei 10.436/2002 já exista há 16 anos, e os estudos de linguistas como William Stokoe já apresentem mais de 50 anos de existência, ainda prevalece a ideia de uma língua de sinais universal, limitada e decorrente das línguas orais.

Considerações finais

Como é possível perceber pelas respostas dos alunos, ainda há, por parte da sociedade, um desconhecimento da condição do sujeito surdo, quando ainda se acredita que todo surdo é mudo, atrelando-se à condição da surdez uma incapacidade mental/intelectual. No mesmo sentido, ainda impera uma ideia de surdez como deficiência, cuja solução passa pela normalização do surdo, com o uso de aparelhos auditivos, ao mesmo tempo em que parece delegar o esforço de comunicação apenas para o surdo, através da oralização e da leitura labial, num esforço unilateral.

As respostas dos licenciandos têm apontado também para a desconstrução de uma ideia de uniformidade da condição do surdo. Isso pode ser percebido em respostas que se utilizam de quantificadores universais do tipo TODO para caracterizar esse sujeito, como, por exemplo, todo surdo é mudo, todo surdo faz leitura labial, todo surdo sabe Libras etc.

Cientes de que há uma relação entre as crenças e as atitudes, e que elas regulam nosso modo de agir (LAMBERT e LAMBERT, 1975, p.100), a inserção da disciplina de Libras nos currículos de licenciatura, apesar de suas cargas horárias reduzidas, tem sido importante para ajudar na desconstrução de conceitos como os aqui elencados em relação à surdez e à Libras, uma vez que leva os licenciandos, futuros professores de surdos, a refletirem sobre suas crenças, sobre esse tema e, quiçá, em sujeitos que contribuirão socialmente para a diminuição de percepções equivocadas que vêm diminuindo as pessoas surdas há anos.

Notas

3 Como exemplo podemos citar a desconstrução da eficiência da educação inclusiva para sujeitos surdos. Nesse quesito, encontramos respostas como “Foi descontruída a ideia de que todos os surdos tinham acesso à educação, mesmo ela sendo inclusiva”; “A respeito do método de educação inclusiva, que parecia ser o melhor antes de expostas as dificuldades de sua aplicação”. O fato de ter aparecido somente nas respostas de licenciandos de uma das universidades pode ter a ver com a ênfase dada pela professora ao assunto.
4 É importante observar que possíveis erros ortográficos e gramaticais dos alunos foram mantidos nas respostas aqui elencadas.

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