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Bilinguismo e Aprendizado de Segunda Língua entre os Intérpretes de Língua de Sinais
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Publicado em 2011
RVCSD - Revista Virtual de Cultura Surda e Diversidade, Edição nº 07
Maria Cristina Pires Pereira
Resumo

Este artigo traz uma revisão de literatura e, ainda, uma proposta reflexiva sobre os intérpretes de língua de sinais (ILS), com aprendizado adolescente ou adulto da língua de sinais, e sua inserção nos estudos sobre o aprendizado de segunda língua e bilinguismo. O objetivo principal desta incursão teórica é entender de que forma articulam-se algumas discussões e pesquisas já existentes com o campo recente da interpretação de língua de sinais. Para tanto, utilizo-me, principalmente da sistematização de Butler e Hakuta (2004) como referência para conjeturar sobre algumas categorias de aprendizes de Libras (língua de sinais brasileira) e suas possíveis inserções em tipologias de indivíduos bilíngues.

Panorama sobre o bilinguismo e as línguas de sinais

Na grande área da Linguística, as pesquisas que tratam do bilinguismo e de aquisição/aprendizado de segunda língua são, relativamente, abundantes, existindo, inclusive publicações e linhas de pesquisa voltadas exclusivamente para estes temas. Há um grande volume de trabalhos que tratam da aquisição bilíngue por crianças (HOUWER, 1995; MÜLLER, 1998; BHATIA E RITCHIE, 1999; MEISEL, 2004, e outros) e, embora estas investigações ajudem-nos a compreender melhor este fenômeno no seu aspecto mais amplo, as descobertas relacionadas a estes estudos nem sempre têm se mostrado eficazes na compreensão do bilinguismo adulto. Quando o aprofundamento de pesquisa visa abordar indivíduos ouvintes, que aprendem a língua de sinais a partir da adolescência, não há, praticamente, produção acadêmica nesta especificidade.

Diante deste panorama, empreendi, neste texto, uma revisão de literatura que possa relacionar-se aos tipos de bilinguismo passíveis de serem detectados em intérpretes de língua de sinais (ILS), ouvintes, conjecturando sobre seu aprendizado de língua de sinais, como segunda língua, na adolescência ou idade adulta. Inicialmente, o foco são os intérpretes de língua de sinais, que não sejam filhos de pais surdos (Children of Deaf Adults – CODAs) e adultos, por aproximar-se de minha própria experiência. Embora citados em alguns trechos, ILS CODAs merecem investigações mais detalhadas, à parte, por sua intricada complexidade.

É necessário que, primeiramente, o ponto central da discussão, os indivíduos bilíngues sejam definidos. Devido à densidade do assunto e diversas abordagens utilizadas por vários teóricos é difícil chegar a uma conceituação consensual, então optei pela definição, a seguir, que caracteriza os bilíngues como:

…indivíduos ou grupo de pessoas que obtêm habilidades comunicativas em diversos níveis de proficiência, nas formas oral e escrita, com o propósito de interagir com falantes de uma ou mais línguas em uma determinada sociedade. Do mesmo modo, o bilinguismo pode ser definido como o estado psicológico e social de indivíduos ou grupo de pessoas que resulta das interações via língua(gem) no qual dois ou mais códigos linguísticos (incluindo dialetos) são utilizados para a comunicação (BUTLER e HAKUTA, p.115, 2004).1

Acrescento que, além de “… níveis de proficiência, nas formas oral e escrita”, graças aos avanços nas investigações linguísticas, temos que considerar a forma sinalizada. Este lapso, encontrado, inclusive, em definições de outros linguistas, traz evidências de que os estudos sobre bilinguismo, em sua maioria, remetem à modalidade oral (vocal). Questões, tais como: bilinguismo bimodal e monomodal (entre línguas de sinais) são escassamente abordados e, quando realizados, priorizam crianças surdas (EMOREY, BORISTEIN e THOMPSON, 2005; BAKER e VAN DEN BOGAERDE, 2008; GROSJEAN, 2008, dentre outros).

Os estudos emergentes sobre a aquisição, aprendizado e interações entre línguas que incluam, ao menos, uma língua de sinais, o bilinguismo bimodal, assim conceituam este fenômeno: “… uma forma de bilinguismo de língua minoritária na qual os membros da comunidade adquirem e utilizam tanto a língua minoritária (língua de sinais) quanto a língua majoritária na sua forma escrita e, às vezes, falada ou até mesmo sinalizada” (GROSJEAN, 2008, p 221-2) 2. Este trecho gerou uma incerteza quanto ao entendimento de que, se além de uma língua de sinais, o bilinguismo bimodal se constituiria da aquisição/aprendizado também de uma língua majoritária vocal na forma sinalizada ou se poderia referir-se a uma língua de sinais majoritária e, então, não constituiria mais bilinguismo bimodal, pois se tratariam de duas línguas na mesma modalidade, sinalizada. Diante desta dúvida, recorri ao esclarecimento do autor que informou que, em sua definição estava referindo-se a:

- “majority language” quer dizer “língua oral” em suas modalidades oral (spoken) e escrita (written).

- “or even signed form” quer dizer o que chamamos de francês sinalizado (em inglês, signed English ou Pidgin Sign(ed) English). Ver: http://deafness.about.com/cs/signfeats2/a/pidginsign.htm (GROSJEAN, comunicação pessoal, 11 de junho de 2009). 3

O que confirma a primeira hipótese de que mesmo uma língua vocal [na modalidade] sinalizada é considerada como a segunda língua no caso do bilinguismo bimodal. Não entrarei aqui na discussão sobre as línguas orais sinalizadas, assunto muito produtivo, mas que merece uma abordagem ampla e detalhada. Para os fins deste artigo, considero a definição de Grosjean (2008).

Um ponto a não esquecer, no escopo das investigações sobre bilinguismo => bilinguismo bimodal, é que “bilíngues bimodais ouvintes têm sido esquecidos do corpo de pesquisas linguísticas sobre o bilinguismo, talvez por causa do reconhecimento, relativamente recente, pela comunidade linguística, de que as línguas de sinais são línguas humanas completas (BISHOP e HICKS, 2005, p. 189) 4. Adiciono a observação de que, em geral, os ILS têm sido muito pouco estudados e sua interface com o bilinguismo ainda apresenta enormes lacunas, especialmente ao que concerne à apropriação de uma segunda língua perto da idade adulta vindo a ser considerado tão proficiente a ponto de chegar a ser um intérprete interlingual.

Com o objetivo de entender melhor este tema, proponho como base desta reflexão, a tipologia apresentada em Butler e Hakuta (2004):

TIPOS ÊNFASE DA DIFERENCIAÇÃO
Equilibrado e Dominante (Peal e Lambert, 1962). Relação entre as proficiências entre as duas línguas.
Composto, Coordenado e Subordinado (Weinreich, 1953). Organização e acesso dos códigos linguísticos e suas unidades de significado.
Precoce (simultâneo ou sequencial) e Tardio (Genesee et al., 1978). Idade de Aquisição/aprendizado. Período crítico de aquisição de linguagem.
Incipente, Receptivo e Produtivo. Habilidade funcional.
Aditivo e Subtrativo (Lambert, 1974/75). Enriquecimento da L2 (sem perdas da L1) = aditivo; L1 é substituida pela L2 = subtrativo.

Elite e Popular (Fishman, 1977);
Circunstacial e Eletivo (Valdés e Figueroa, 1994).

Estatuto da língua (maior ou menor prestígio, línguas minoritárias, línguas de poder).
Bicultural, Monocultural, Acultural, Desculturalizado (Hamers e Blanc, 2000). Identidade e pertencimento cultural.

Tabela SEQ “Tabela” \*Arabic 1 – TIPOLOGIA DE INDIVÍDUOS BILÍNGÜES (Adaptada de Butler e Hakuta, 2004, 116-7)

A tabela 1 nos mostra uma visão geral de tipos de indivíduos bilíngues, categorizados, através dos tempos, por diversos estudiosos do assunto. Esta sistematização não é única, existem outros modos de encarar o fenômeno do bilinguismo, porém é uma classificação muito abrangente e, baseada nisto, a escolhi como fio condutor ao qual me reportarei na análise. A tipologia, sucintamente, apresenta os indivíduos bilíngues:

  • Equilibrado e Dominante: o indivíduo bilíngue equilibrado manifesta uma proficiência equivalente em ambas as línguas, o dominante possui uma das línguas com maior proficiência (dominância).
  • Composto, Coordenado e Subordinado: em bilíngues compostos dois ou mais códigos linguísticos são armazenados em uma unidade de significado; nos coordenados cada código linguístico é posicionado separadamente e, finalmente, nos bilíngues subordinados um dos códigos linguísticos só é acessado por meio da unidade de significado do código de outra língua.
  • Precoce (simultâneo ou sequencial) e Tardio: o bilinguismo precoce simultâneo adquire as duas (ou mais) línguas praticamente ao mesmo tempo, em tenra idade, sendo difícil precisar quando cada idioma começa a ser adquirido e o espaço de tempo entre eles; o bilíngue precoce sequencial é aquele em que é possível detectar o início do contato com a segunda (em termos cronológicos) e primeira (em termos de importância cognitiva e uso) línguas e o tardio, definido segundo os parâmetros da idade crítica de aquisição de língua(gem) é aquele que adquire/aprende a segunda língua após esta fase.
  • Incipiente, Receptivo e Produtivo: domínio funcional em que a proficiência é segmentada desde o aprendizado, incipiente, em que apenas algumas frases formulaicas são, geralmente, decoradas, passando ao estágio receptivo em que há a compreensão do que é enunciado na L2, mas sem, ainda, condições de respostas até o bilíngue produtivo que é capaz de não só compreender, mas também, produzir enunciados significativos e situados de acordo com o contexto.
  • Aditivo e Subtrativo: no bilíngue aditivo o aprendizado da L2 melhora sem que haja perda da sua L1, no caso do bilíngue subtrativo na medida em que ocorre o aumento do desempenho na L2 há uma perda na proficiência da L1.
  • Elite e Popular; Circunstancial e Eletivo: distingue-se o bilíngue de elite como sendo aquele que fala a língua de maior prestígio na sociedade onde vive e outras línguas adicionais que podem elevar mais ainda o seu conceito, já o bilíngue popular tem uma língua minoritária e menos prestigiada como seu idioma principal e, geralmente, não chega a uma alta proficiência na língua mais conceituada. Estes conceitos relacionam-se com o bilíngue circunstancial em que a primeira língua já não é suficiente para suprir as necessidades de um determinado grupo e este deve aprender uma segunda língua, enquanto o bilíngue eletivo, sem as forças da circunstância, escolhe aprender uma língua e decide como irá aprendê-la.
  • Bicultural, Monocultural, Acultural, Desculturalizado: relativamente ao pertencimento cultural dos bilíngues temos os indivíduos biculturais, que pertencem às duas culturas; monoculturais (L1), que se identificam somente com sua cultura de origem; aculturais (L2), que adotam a cultura de sua segunda língua e os desculturalizados, que têm um pertencimento ambíguo e uma perda da identidade (anomia) (HAMERS e BLANC, 2000, p.26).

Segundo os próprios autores desta sistematização, Butler e Hakuta (2004), este quadro não representa uma mera categorização fechada, pois não há como delimitar fronteiras precisas entre indivíduos bilíngues dentro da mesma dimensão e, mesmo, entre as classificações. No próximo segmento, considerando o arcabouço teórico apresentado, irei propor considerações a respeito do bilinguismo a partir das situações de contato mais corriqueiras dos ILS com as pessoas surdas e a língua de sinais.

Considerações sobre o bilinguismo dos intérpretes de língua de sinais i

Inicialmente, a título de fornecer aos leitores um panorama geral, registrarei, embora não seja o meu foco neste artigo, breves apontamentos sobre o bilinguismo de ILS iniciado na infância. Desconsiderarei, para fins deste levantamento, a situação em que as famílias optam por utilizar a língua oral, pelo motivo óbvio de que, nesta situação, não existirá o contato e interações em língua de sinais para provocarem o surgimento de bilinguismo infantil. Entretanto, não se deve esquecer que, em muitos casos, a opção inicial pela língua oral não se mantém por muitos anos, devido às dificuldades de comunicação, ao fracasso escolar, dentre outros, e a língua de sinais começa a ser utilizada, em diversos graus pela família. Esta opção tardia pelo bilinguismo doméstico encerra muitas variáveis, dignas de estudos em separado: a adoção da língua de sinais apenas por alguns membros da família, o tipo de língua de sinais utilizada em diferentes contextos (várias possibilidades de intersecção entre a língua oral e a língua de sinais), etc. A seguir, uma visão rápida, de duas categorias, envolvendo filhos e irmãos de pessoas surdas, de possíveis futuros intérpretes com um contato desde a primeira infância:

- Filhos de pessoas surdas

Divulgados dos Estados Unidos da América para o mundo com a sigla CODAs (Children of Deaf Adults), já constam em algumas pesquisas sobre aquisição bilíngue bimodal (BISHOP e HICKS, 2005), porém a relação dos CODAs, que se tornaram intérpretes, ainda não foi explorada suficientemente, com: a proficiência adulta, a adequação a níveis linguísticos (CODAs interpretando no ensino superior ou em contextos técnicos: jurídico, médico, etc.), dentre outros. Aqui seriam, provavelmente, os casos mais frequentes de bilíngues equilibrados, precoces e biculturais.

- Irmãos de pessoas surdas

Não é incomum que, ao menos no Brasil, a simples categorização dos CODAs não dê conta de muitos outros contextos significativos de contato e aprendizagem da língua de sinais brasileira (Libras): tanto os irmãos quanto outros familiares (mães, primos, tios, etc.) são comuns em cursos de interpretação e relatam várias relações com a língua de sinais. No caso, falando sobre aquisição na infância, existem pessoas que cresceram sinalizando com o(s) irmãos(s) surdo(s) e adquirem grande proficiência bilíngue, fato ainda não contemplado devidamente nas pesquisas. É importante lembrar que, mesmo entre irmãos de pessoas surdas, o bilinguismo pode se desenvolver somente a partir da adolescência ou idade adulta por diversas razões: aceitação tardia da língua de sinais, pouco contato e interações significativas (e consequente baixa proficiência geral), etc. Nestes casos, seria possível prever bilíngues precoces sequenciais, monoculturais e com aspectos variantes entre eletivos e circunstanciais.

Dentre o bilinguismo estabelecido a partir da idade adulta, bimodal, entre os ILS, a primeira consideração é de que interações com parentes surdos podem, também, ser um fator importante no estabelecimento de um bilinguismo nos ILS.

- Contato familiar

O desenvolvimento da língua de sinais como segunda língua pode ocorrer devido a um parentesco, mesmo que distante, com alguma pessoa surda. É corriqueira a pergunta feita a ILS: “te interessastes por esta atividade porque tens alguém surdo na família?”, mostrando a forte associação que existe no senso comum entre parentesco e consequente busca por formação profissional, no caso em que envolve as pessoas surdas, talvez um ranço caritativo? Outro ponto atraente para mais investigações. Algo ainda não considerado, mas extremamente importante, é a quantidade de mães de surdos que aprendem a Libras e vão além, tornando-se ILS, fato aqui no país, tão comum ou mais do que os filhos de surdos. Na situação mais comum, mães de surdos, teríamos casos frequentes de bilíngues tardios, dominantes (na língua vocal), provavelmente circunstancial e monocultural.

- Contato religioso

Desde tempos remotos a atividade missionária, de diversas religiões, é um propulsor de atividades bilíngues: aprendizado, traduções, interpretações (DESLISLE e WOODSWORTH, 2003). No âmbito das línguas de sinais, e porque não dizer, em praticamente qualquer língua minoritária (caso de inúmeras línguas indígenas, tribais, aborígenes) existe um propósito bem definido: divulgar e, se possível, converter à religião em questão. Nestes casos, um convívio intenso, na maioria dos casos, é verificado em comunidades de prática religiosa e que se estende a eventos sociais. Este convívio possibilita interações significativas de longa duração, inseridas na vida cotidiana: festas de recepção de sacramentos, bazares e chás beneficentes, visitação familiar, viagens e frequência a congressos religiosos, etc. Esta coexistência próxima tende a propiciar elevados níveis de proficiência. Muitos dos ILS considerados, pelas pessoas surdas, como os mais hábeis em língua de sinais, provêm de grupos religiosos, daí poder ser antevisto um grande número de bilíngues tardios, equilibrados e elite. O aspecto cultural, em outros casos também, mas principalmente aqui, revela-se um dos pontos mais interessantes, pois alguns ILS, imersos na comunidade surda, ultrapassam a biculturalidade e desenvolvem características de indivíduos bilíngues aculturais e, em alguns casos, desculturalizados. Um caso, sem dúvida, ainda ignorado nas investigações.

- Contato profissional

Os contatos profissionais com a língua de sinais e as pessoas surdas têm que ser divididos em duas classes: professores e demais técnicos. Os professores de surdos são um dos grupos de maior contato com as pessoas surdas desde tempos remotos. Em muitos casos, são o modelo de língua de sinais que as crianças surdas têm, pois a maioria delas é advinda de famílias ouvintes não sinalizantes. Embora nem sempre alcancem um nível desejado de proficiência, são considerados pela sociedade leiga como “intérpretes naturais”, uma das razões, talvez, para serem classificados em algumas políticas educacionais como “professores-intérpretes”. Entre os professores é possível antever o encontro de indivíduos bilíngues tardios, monoculturais, dominantes (na língua vocal) e com necessidade de maiores pesquisas para determinar se eletivos ou circunstanciais. Quanto aos demais técnicos, considero psicólogos, fonoaudiólogos, assistentes sociais, pessoal administrativo de escolas, etc., as características seriam as mesmas dos professores com um grande diferencial: o nível de proficiência. Não é muito comum encontrarmos profissionais técnicos entre os ILS, e que pode evidenciar uma alta incidência de bilíngues incipientes ou, quando muito, receptivos neste grupo.

- Alunos em aprendizado formal

Mais recentemente, a partir das duas últimas décadas, há um crescimento significativo de aprendizes formais de Libras. O oferecimento de cursos livres de Libras pela Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) muito contribuiu para a expansão do aprendizado desta língua em todo o país. O fator determinante, porém, foi o reconhecimento como meio legal de comunicação e expressão, no Brasil, por meio da Lei 10.436/02, e sua consequente regulamentação, pelo Decreto 5626/05, que proporcionaram que esta língua entrasse em cena no ambiente acadêmico por meio de cursos de extensão e, principalmente, como componente curricular obrigatório para os cursos de licenciatura. Alunos com aprendizado formal em cursos livres, recentemente, estão firmando-se como ILS e ainda não existem registros de alunos com aprendizado formal em disciplinas de graduação que tenham, apenas com esta formação, conseguido atingir os patamares de proficiência exigidos para um ILS. Apesar dos dois tipos de aprendizado, cursos livres e disciplinas de graduação, ter pontos em comum, os objetivos dos alunos demonstra indícios de ser radicalmente diferente e não deve ser descartada a hipótese de que a formação de professores de Libras deva considerar este um forte motivo para considerarem-se escolhas de metodologias diferenciadas para tratar cada um destes públicos. Enquanto nos alunos de cursos livres podemos inferir indivíduos bilíngues que passam pelos estágios incipiente, receptivo e produtivo, conforme sua proficiência vá aumentando, e também tardios, biculturais e eletivos, já nos alunos que têm contato com a Libras em disciplinas de graduação ainda não tenho conhecimento de nenhum levantamento sobre estes aprendizes, devido, provavelmente, à legislação não estar ainda totalmente implantada.

Todas as considerações aqui delineadas são apenas esboços acerca desta temática, mas necessários para que o mundo acadêmico volte sua atenção para temas de pesquisa tão desprovidos de produção e, consequentemente, embasamento, principalmente no que tange ao ensino da Libras como segunda língua.

Observações finais e sugestões para futuras pesquisas

Os cruzamentos feitos neste estudo, sobre a tipologia de indivíduos bilíngues e um provável reflexo nos ILS com aprendizado de língua de sinais a partir da adolescência, carecem, ainda, de um embasamento quantitativo maior e evidências de resultados de pesquisas empíricas. No entanto, as reflexões aqui tecidas podem ser a linha condutora para apontar novos e não-desbravados caminhos de investigação.

Os estudos sobre o bilinguismo e a aquisição/aprendizado de língua de sinais, como segunda língua, por indivíduos ouvintes adultos são praticamente inexistentes. No Brasil, o Decreto 5626/05 institui a Libras como disciplina curricular:

Art. 3o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

§ 1o Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o curso normal de nível médio, o curso normal superior, o curso de Pedagogia e o curso de Educação Especial são considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o exercício do magistério.

§ 2o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto.

A partir desta iniciativa governamental é necessário que haja a contrapartida de produção de conhecimento acadêmico que possa descrever e embasar o aprendizado da língua de sinais para milhares de estudantes que estão frequentando aulas de Libras. Tendo em vista estas considerações, e também o aprendizado informal de Libras, elenco, a seguir, alguns temas de investigação em que existem grandes lacunas de conhecimento formal que possa auxiliar ao desenvolvimento desta área:

  • Estudo longitudinal de processos de aquisição/aprendizagem de Libras por ouvintes, tanto em contexto informal, com família, na comunidade, quanto em contexto formal de aulas.
  • Quais as metodologias de ensino de segunda língua que estão sendo utilizadas pelos professores de aulas formais em cursos livres e de ensino regular? Quais as consequências que cada método deixa na proficiência dos aprendizes ouvintes de língua de sinais? Qual destes métodos propicia a proficiência requerida aos ILS?
  • Se existem e quais são os maiores diferenciais no aprendizado informal e formal de língua de sinais em vários aspectos: nível e velocidade de aquisição de proficiência linguística, pertencimento cultural, percentual de aprendizes que chegam a ser ILS, etc.
  • Como a língua de sinais, deve ser estudada em cursos de formação de ILS, além de seu aspecto linguístico: do mesmo modo apresentado nos cursos de primeira e segunda línguas ou por meio de alguma metodologia especial visando os intérpretes?

Muitas outras questões podem ainda surgir a partir destas problematizações, o que é necessário são pesquisadores que adotem o bilinguismo e o aprendizado de segunda língua dos ILS como tema catalisador de investigações. Os retornos destas pesquisas serão muito úteis não só como parte da construção do conhecimento sobre esta área, como também e muito importante, como base para a decisão do processo de ensino adotado em cada caso, voltado para cada especificidade.

Notas

1 As traduções constantes neste artigo são de responsabilidade de Maria Cristina Pires Pereira.
2 Trecho original: …is a form of minority language bilingualism in which the members of the community acquire and use both the minority language (sign language) and the majority language in its written form and sometimes spoken or even signed form.
3Trecho original:

- (…), “majority language” veut bien dire “oral language” dans ses modalités orale (spoken) et écrite (written).

- “or even signed form” veux bien dire ce qu’on appelle le français signé (en anglais, signed English or Pidgin Sign(ed) English). Voir: http://deafness.about.com/cs/signfeats2/a/pidginsign.htm (GROSJEAN, comunicação pessoal, via correio eletrônico, 11 de junho de 2009).

4 Hearing bimodal bilinguals have been missing to some degree from the body of linguistic research on bilingualism, perhaps because of the relatively recent recognition by the linguistic community that sign languages are complete human languages (BISHOP e HICKS, 2005, p. 189).
i Agradeço à ministrante do Seminário de Pesquisas Avançadas em Língua de Sinais, Ronice Müller de Quadros, por seus pertinentes comentários sobre o trabalho de conclusão de disciplina que originou este texto na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

[i]* Agradeço à colega Silvana Aguiar dos Santos pelos debates e idéias que este tema suscitou entre nós e que tanto qualificaram este texto.

Bibliografia

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