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O povo que aprendeu língua gestual para falar com os seus surdos
por porsinal     
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Terça-feira, 26 de Julho de 2016 às 18:26:50
Em Bengkala, no Bali, 46 dos seus 2.000 habitantes não ouvem. Os vizinhos têm abordado este assunto com pragmatismo.

No pátio de uma casa com galinhas e gatos sem cauda, numa vila remota no norte de Bali, no seu casamento, os bailarinos Nyoman e Pindu dançam sem ouvir músicx\a. A aldeia, a 85 km do aeroporto de Denpasar x - três horas na melhor das hipóteses - no outro lado da ilha, e a 10 quilómetros da piscina natural pública Air Sanih, está suficientemente longe no mapa que mesmo na cidade mais próxima, Singaraya, poucos conhecem a sua história.

Bengkala é muito parecida com qualquer outra vila em Bali. As mulheres, com cestas de frutas e lenha sobre as cabeças, passando pelos caminhos de palmeiras finas e culturas de açafrão, gengibre e mandioca. Anciãos com desenhos saong e sandálias, passam a manhã na sombra. Cheira a incenso e água de rosas que emana de um templo hindu extravagante e colorido. Soam intermitentes buzinas das motos com quatro membros da família em cima. E sabe a bakso - uma sopa de almôndegas - vendida nas bancas da rua.

A particularidade Bengkala é que dos seus pouco mais de 2.000 habitantes, 46 são surdos desde o nascimento. Tudo devido a um gene dominante na aldeia.

Em 1995, um artigo na revista Nature explicava que 2% dos habitantes de Bengkala tem "uma profunda surdez neuro sensorial não-sindrómica devido a uma mutação autossómica recessiva no lócus DFNB3" Por outras palavras, em Bengkala, quem não pertence a uma família totalmente surda, tem um filho, um irmão, um vizinho ou um amigo que não ouve.

Os seus habitantes têm abordado este traço genético com pragmatismo. Quase todos usam língua gestual.

Viagem à cidade inclusiva

A cena poderia repetir-se em qualquer outro lugar no mundo. É hora do recreio e algumas crianças de uniforme – calças vermelhas e gravata - atravessam a rua aos pulos para o lanche. A loja em frente à escola que tem de tudo um pouco é gerida por uma senhora de cabelos brancos, pele reluzente e um sorriso irregular que parece acostumado aos seus pequenos clientes. De longe, uma adolescente de saia de pregas e meias brancas faz gestos com as mãos e senhora responde da mesma maneira. No portão da escola, dois adultos conversam em língua gestual. A lojista explica que conseguem comunicar-se: "Isto é comer" descreve, levando os dedos amontoados à boca, "e assim, beber", continua, com os dedos estendidos.

57% dos moradores de Bengkala usa a língua gestual, embora apenas 2% não ouça, explica a investigadora Connie De Vos, do Instituto de Psicolinguística Max Planck, que para a sua investigação passou 12 meses na aldeia, divididos em várias estadias de cinco anos. Graças a isso, "os surdos Bengakala não enfrentam as mesmas desigualdades sociais que muitas comunidades urbanas", conclui De Vos no seu livro Sign languages in village communities: Anthropological and linguistic insights, onde é coautora e que inclui exemplos, além deste de Bali, da língua gestual rural na Austrália, Gana, Índia, Israel, Jamaica, México, Turquia e Tailândia. "A integração dos vizinhos surdos de Bengkala também reflete que têm a mesma probabilidade de se casar e oportunidades de trabalho semelhantes", acrescenta.

Além disso, todos na aldeia adoram o Deus da Surdez, que creem viver no cemitério local e que dotou aqueles que não ouvem com mais força física e mais sensibilidade. E os surdos não são considerados inferiores, argumenta De Vos no livro.

Aldeias bilíngues em harmonia

Durante gerações, as populações com grande número de surdos têm adotado a língua gestual para viver em harmonia com os seus vizinhos e tornaram-se, naturalmente, bilíngues. O caso mais famoso é o da Ilha Martha's Vineyard, na costa de Massachusetts, mitificada como uma utopia para os surdos, uma vez que, devido à grande presença de pessoas surdas, até o século XIX em todos dominavam a língua gestual. O catálogo línguas do mundo Ethnologue reconhece atualmente 136 línguas gestuais. Linguistas estimam que o número poderá chegar às 400, dados do jornal The Boston Globe.

Em Bengkala, também tem sido passado de pais para filhos uma língua gestual própria: o Kata Kolok. “Por exemplo, aqui dão-se graças passando uma mão sobre a outra"e “Espanha é expresso imitando um toureiro com a sua capa" diz Wisnu Giri coordenador pedagógico do "SD Negeri 2", a escola inclusiva local.

Surdos. Não mudos.

Numa das disciplinas da escola inclusiva é hora da Matemática. Uma menina sorridente com tranças mostra o resultado à professora. Na parede um grande alfabeto da língua gestual. Dos 16 alunos da aula, dois são surdos. Não foi sempre assim. Em Bengkala, com poucos recursos, apenas cinco dos adultos são alfabetizados, detalha Matt Alesevich num artigo para a revista VICE. "A situação dos surdos, ao contrário de outras minorias linguísticas é complicada pelo fato de que muitas vezes eles são vistos como pessoas com deficiência", explica Lorraine Leeson da Comissão Europeia, no relatório A Língua Gestual na Educação na Europa.

O coordenador Wisnu aprendeu a língua gestual através do seu melhor amigo Nyoman. Como se nada fosse, explica: "É normal, passamos todo o dia juntos". Toda a família do casamento de Nyoman e Pindu é surda. Têm três filhas: Darish de 17anos, Sumarni de 16 e Nadi com 11.

A dança dos surdos

Sobre as portas e as paredes de pintura roxa da casa há fotografias e recortes de revistas do casamento, com elegantes vestidos balineses, grinaldas pomposas e maquilhagem colorida. São de seu espetáculo. Pertencem ao grupo de dançarinos Janger Kolok (a dança dos surdos), uma aposta criativa e de superação que praticam na aldeia com membros de três gerações. Todo um desafio de coordenação considerando que dançam sem ouvir a melodia.

"Devemos aprender com essas pessoas de que é possível que uma comunidade inteira pode usar a língua gestual, mesmo que, embora não a dominem por completo, possam ter um conhecimento básico tanto da língua como das pessoas surdas", argumenta o antropólogo surdo Annelies Kusters, autor de um livro sobre a comunidade rural de língua gestual Adamorable no Gana, que acaba de lançar um documentário sobre a interação entre ouvintes e surdos no Mumbai, na Índia.

Kusters especializou-se em estudos da surdez depois de ser diagnosticada, já em adulta com problemas de audição. Ela diz que foi " afundar ou nadar", e escolheu a segunda opção. Sonha que um dia a línguagem gestual "estará em toda parte: em disciplinas escolares, nas universidades, na televisão, mas também que as pessoas se mostrem mais abertas à interação com gestos". Se quisermos, como em Bengkala, até dançar sem música.

 

Fonte: El País

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