Antes de nos cingirmos à exposição do aspeto verbal na LGP, importa conhecer os fatores que podem caraterizar os verbos de uma língua gestual. Segundo Johnson (2005) 112, na ASL 113 existem três tipos de verbos: os indicativos, os locativos e os neutros ou planos. Transpondo este pressuposto para a LGP, os primeiros referem-se aos que indicam o sujeito e o destinatário da ação, sendo exemplos DAR, PERGUNTAR, DIZER, ENVIAR 114 e BATER 115, por o seu início ser gestuado a partir do agente (ou da sua localização definida no espaço gestual) e em direção ao recetor. Os locativos representam ou executam-se no local exato onde se passa a ação e têm como exemplos práticos ANDAR, DOER 116, SUBIR e MERGULHAR. O último grupo engloba exemplos como COMER, AMAR, VIVER, CORRER e SONHAR e são considerados neutros ou planos por não sofrerem qualquer alteração aquando da sua execução, ou seja, não indicam sujeito, destinatário ou local da ação.
O tempo verbal é marcado por uma linha imaginária que marca os três tempos naturais e, na LGP (e noutras línguas gestuais), conforme a realização do gesto se vai afastando do corpo do gestuante, vai indicando tempos mais longínquos. O Presente é predominantemente não marcado, não apresentando modulações na gestualização do verbo, o qual tende a ser executado à frente do corpo. Em relação ao Passado, este pode ser marcado através de uma forma perifrástica, que pode variar entre o uso de adverbiais de tempo no início da frase (ONTEM, ANTEONTEM, ANTES, PASSADO, ANTIGAMENTE, entre outros) ou uma construção formada pela forma standard do verbo seguido de JÁ ou DE.FACTO; ou o próprio gesto do verbo pode sofrer modulações aquando da sua execução, como é o caso de VER, que tem uma forma específica para JÁ.VI ou TER.CONSEGUIDO.VER 117. Em relação ao Futuro, este apenas poderá ser marcado através do uso de construções perifrásticas, ora através do uso de um marcador temporal (FUTURO, AMANHÃ, DEPOIS.DE.AMANHÃ, DEPOIS) seguido do verbo, ora executando o verbo e um gesto específico que indica um futuro próximo, equivalente à forma da LP 118 ‘ir fazer alguma coisa’ e é o denominado na gíria dos profissionais da LGP como VA-VA.
Citando OLIVEIRA (2003), o aspeto “fornece informações sobre a forma como é perspectivada ou focalizada a estrutura temporal interna de uma situação descrita pela frase, em particular, pela sua predicação”, distinguindo-se do tempo verbal pela observação da ação através do seu interior, sendo o «núcleo aspectual» formado pelo «processo preparatório», pela «culminação» da ação e o seu «estado consequente».
Partindo desta explicação, importa fazer a ponte para a LGP, tendo em conta a modalidade visual desta língua e a sua forte componente expressiva. Na LGP, o aspeto verbal pode variar segundo diferentes parâmetros: o agente da ação, o manuseamento do objeto e a execução da ação.
O agente da ação reporta-se a quem faz, sendo as variações aspetuais marcadas pelas diferenças existentes entre pessoas e animais ou entre pessoas de faixas etárias distintas, nomeadamente bebés, crianças, adultos e idosos. O gestuante nativo da LGP é uma pessoa naturalmente alerta para qualquer tipo de estímulo visual, pelo que é inevitável que a forma da ação seja transmitida de maneira muito semelhante à realidade (ainda que importe realçar que, apesar de a LGP possuir muitos gestos icónicos, uma das suas propriedades linguísticas é a arbitrariedade). Verbos como COMER, BEBER, LAVAR-SE ou DORMIR variam segundo quem os executa, ou seja, uma mesma ação será gestuada de forma específica e distinta para cada um dos agentes, pois um cão, um pássaro (ou outra ave), um sapo, uma serpente e uma pessoa possuem características específicas da sua espécie e formas próprias de realizar cada uma das ações.
A LGP manifesta também variações aspetuais segundo o manuseamento do objeto e cuja base de execução está confrontada com as caraterísticas próprias das línguas de produção manual e receção visual que foram apresentadas para o primeiro aspeto específico e que podem ser associadas ao termo inglês manner 119. O objeto da ação pode ser manuseado segundo a sua particularidade alusiva à maneira como se faz, ou, por outras palavras, refere-se a alguns verbos transitivos, havendo a necessidade de se saber o que se faz, de forma a gestuar a execução da ação com base na sua forma original. Verbos como COMER, BEBER ou LAVAR sofrem modulações aquando da sua gestualização, pois depende da observância de como determinado objeto é manuseado. Em relação à primeira ação, por exemplo, é impreterível conhecer o que se está a comer, para o gestuante poder “imitar” o seu uso, logo o modo como algo está a ser comido deve ser transmitido em LGP, ainda que respeitando as regras de uso da língua: comer uma sandes é diferente de comer um bombom (no primeiro caso o gestuante ‘agarra’ uma sandes e dá dentadas e no segundo simula pegar num objeto pequeno e ir trincando pequenos pedaços), comer de faca e garfo distingue-se de comer uma sobremesa ou uma sopa com uma colher (os dedos em ‘N’ 120 de ambas as mãos ocupam o lugar dos talheres que levam a comida à boca e, para o último exemplo, é feito o movimento e a expressão de quem está a pegar numa colher) e comer uma cenoura difere da forma como se trinca uma maçã.
Em relação à execução da ação (e importa relevar que estes aspetos verbais equivalem de um modo mais direto ao explanado nas obras específicas sobre este tema na LP, ainda que não exista correspondência exata para alguns dos termos utilizados), Morales (2000) definiu nove aspetos verbais na LSE 121, os quais também existem na LGP: incoativo, ingressivo, continuativo, perfectivo, gradual, iterativo, pontual, frequentativo e distributivo.
O Aspeto Incoativo indica uma ação que está para começar, mas ainda não está feita, também denominada de incompleta (unrealized) ou ‘stop inicial’. A modulação existente no verbo consiste num movimento de início da execução do gesto, mas é feita uma paragem brusca. Normalmente a expressão facial é caraterizada pela boca aberta e, aquando da paragem, a boca fecha, seguida de bochecha cheia e movimento da cabeça para um lado e para o outro (indicando ‘não’) e o corpo move-se ligeiramente para a frente. Em relação às formas perifrásticas possíveis, uma bastante utilizada é a seguinte estrutura: verbo + VA-VA 122 (+ MAS / CONTRARIEDADE / INTERRUPÇÃO) + NEGAÇÃO/verbo2. Outra construção frequente é o uso de um gesto que significa ‘estar para fazer alguma coisa’ + verbo.
Uma ação que já começou mas que está numa fase incipiente é demarcada pelo Aspeto Ingressivo, sendo observada inclinação ligeira para a frente, podendo haver uma reduplicação do verbo. Outra forma possível de demonstrar este aspeto é através da composição: gesto simples que indica ‘algo que está a decorrer, mas começou há pouco tempo’ (+ localização) + verbo.
O Aspeto Continuativo está associado ao durativo da LP e expressa a ação na sua fase intermédia, centrando-se no tempo da execução duma ação. É transmitido através da reduplicação do gesto acompanhada por expressão facial, que pode variar entre bochechas cheias, boca aberta, sobrancelhas levantadas ou tensas. A repetição do verbo pode ser lenta ou rápida, consoante o ritmo da ação realizada que se pretende indicar. Com base no gesto ANDAR, podemos ter frases como: ONTEM MENINA ANDAR-ASP.CONT/RÁP para a frase da LP ‘Ontem a menina foi andando 123 rapidamente 124’; ou ONTEM MENINA ANDAR-ASP.CONT/LENT para ‘Ontem a menina foi andando 125 lentamente 126’.
O Aspeto Perfetivo refere uma situação concluída, tendo o processo já culminado. A sua modulação incide na ausência de movimento (ou movimento latente) na finalização do gesto ou pode ser usada uma forma perifrástica, marcada pelo uso de termos como PRONTO, CONCLUIR ou COMPLETO após a ação.
O Aspeto Gradual corresponde a um estado faseável que indica um desenvolvimento progressivo da ação, demonstrado através da gestualização lenta do verbo, com pausas entre cada uma das etapas, delimitando a forma visual da evolução. Um exemplo é ATÉ.AGORA CIDADE MESMA AUMENTAR-ASP.GRAD para a forma em português ‘Esta cidade tem crescido muito ao longo dos tempos’.
A referência a ações que se repetem várias vezes durante determinado período de tempo é concretizada pela especificidade do Aspeto Iterativo, através da repetição da ação de forma rápida, modulação possível nos verbos locativos. Para os planos, a forma mais comum é verbo + MUITAS.VEZES.
O Aspeto Pontual reporta-se a uma ação equiparada a um ponto no tempo, com uma duração escassa, sendo o verbo realizado de forma mais rápida que o gesto standard, sem repetições ou através da forma perifrástica DE.REPENTE + verbo.
Uma ação que se repete de forma habitual é transmitida pelo Aspeto Frequentativo, havendo uma repetição rápida do verbo e expressão ‘pá-pá-pá’ ou reduplicação lenta, com a língua de fora ou as bochechas cheias. Há ainda a possibilidade de expressar este aspeto através de formas perifrásticas, podendo variar entre o uso de SEMPRE + verbo, TODOS.OS.DIAS + verbo ou CONSTANTEMENTE + verbo.
Por fim, o Aspeto Distributivo indica a multiplicidade de beneficiários da ação e está associado a verbos indicativos (ou direcionais) ou alguns verbos de movimento. O gesto apresenta uma repetição distribuída por partes do espaço à frente do gestuante, cada uma delas correspondente a diferentes destinatários.
A existência de um rol aspetual no que concerne aos verbos na língua gestual portuguesa acaba por ser uma marca indelével de uma língua de produção manual/motora, devido à sua modalidade particular, centrando-se na forma visual das ações e/ou descrições. Para um uso exato desta língua, importa utilizar um léxico variado associado a uma expressão facial abundante e com recurso à localização dos elementos da frase no espaço gestual 127, por serem ferramentas bastante úteis para facilitar a concretização de ações de forma muito objetiva e clara, através de descrições fieis da realidade.
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