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Entrevista com Ronice Müller de Quadros
por porsinal     
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Quinta-feira, 23 de Fevereiro de 2012 às 05:18:33
A porsinal esteve em Lisboa à conversa com a Drª. Ronice Müller de Quadros, numa das suas passagens por Portugal e pela Universidade Católica Portuguesa.

Os seus trabalhos sobre o ensino da criança surda sugerem que a língua de sinais (libras) deve ser ensinada como língua materna e o Português como segunda língua. Por que razão é importante que assim seja?

Os estudos da aquisição de línguas de sinais com crianças surdas, filhas de pais surdos, apresentam várias evidências de que a aquisição da linguagem nestas crianças acontece seguindo padrões normais de desenvolvimento. Isso já não é observado quando crianças surdas são privadas do acesso à língua de sinais, sendo expostas exclusivamente à língua falada. Assim, as crianças surdas têm a oportunidade de desenvolver sua linguagem de forma natural e espontânea por meio de uma língua de sinais, mas não por meio de uma língua falada. Como a aquisição da linguagem acontece de forma natural na língua de sinais e essa língua torna-se a língua de comunicação direta e eficiente, então é nessa língua que a criança surda precisa ser ensinada. A língua que é falada no país onde se encontra será, portanto, sua segunda língua com acesso à leitura e à escrita. Na escola, a criança surda estará aprendendo essa segunda língua com técnicas específicas para o seu ensino para surdos. Além de uma segunda língua, ela é uma língua em uma segunda modalidade. Assim, torna-se fundamental garantir a formação dos professores que irão ensinar esta segunda língua para surdos.

Dadas as especificidades da língua de sinais, é possível através da aprendizagem da mesma, desenvolver todas as capacidades de linguagem?

Os estudos da aquisição da língua de sinais apresentam evidências de que a aquisição da linguagem está garantida àqueles que nascem expostos às línguas de sinais. Tanto filhos surdos de pais surdos, como filhos ouvintes de pais surdos, adquirem a linguagem usando a língua de sinais dos seus pais (Pettito, 2002; Mayberry, 2010; Quadros et al. 2011).

Quais os processos envolvidos na aquisição da língua de sinais? Em que se distinguem da aquisição/aprendizagem da Língua Portuguesa?

A aquisição de língua de sinais acontece como a aquisição de quaisquer outras línguas, ou seja, as crianças estão em contato com pessoas que usam esta língua e a adquirem sem a presença de instrução explícita. No caso da língua portuguesa ou de qualquer outra língua falada, as crianças necessitam de instrução explícita para aprendê-las.

A língua de sinais brasileira (Libras) é radicalmente diferente da Língua Gestual Portuguesa. Num momento em que entra em vigor o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entre Portugal e o Brasil, quais as hipóteses de se avançar para um processo semelhante entre a Libras e a LGP? Existem estudos nesse sentido?

As línguas de sinais do Brasil e de Portugal são realmente muito diferentes. São línguas de sinais que podem ser aprendidas pelos surdos brasileiros e surdos portugueses para que possamos garantir trocas sociais e acadêmicas. A oportunidade de haver projetos bilíngues intermodais entre os dois países é muito interessante. Essa seria a forma de aproximar ainda mais as parcerias entre os dois países relacionadas aos estudos das línguas de sinais. Na verdade, é uma grande vantagem termos línguas de sinais tão distintas, pois isso torna a relação de pesquisa ainda mais interessante. Por exemplo, no momento estamos com uma parceria entre a UFSC e a UCP para a realização de pesquisas com crianças adquirindo a LGP e a LP que poderão ser comparadas e contrastadas com as crianças adquirindo a Libras e a LP no Brasil. Como as duas línguas de sinais são diferentes, poderemos analisar contrastes e concluir questões relativas à especificidade e a universalidade das línguas de sinais. O fato de termos a LP em comum facilita a nossa relação. Assim, não vejo como problema que as línguas de gestuais sejam diferentes, mas sim como vantagem. Com certeza teremos muito a contribuir com os estudos de línguas de sinais no mundo se produzirmos pesquisas comparativas com a LGP e a Libras.

Em Portugal, os organismos públicos só agora começam a despertar para a necessidade de criar mais acessibilidades para a comunidade surda. Qual é, actualmente, a situação no Brasil?

No Brasil, temos a Lei 10.436 de 2002 que é uma lei que reconhece a Libras como língua nacional. Essa Lei contou com um Decreto que a regulamentou, Decreto 5626 de 2005. As ações previstas neste decreto são altamente favoráveis a consolidação da Libras no Brasil. A exemplo disso, tivemos a criação do Curso de Letras Libras para formar professores de Libras e para formar Tradutores e Intérpretes de Libras em nível de graduação (Licenciatura e Bacharelado). Tivemos fomento para formar pesquisadores na área da Educação de Surdos, na área da Linguística aplicada à Libras e na área dos Estudos da Tradução e Interpretação para o desenvolvimento de estudos relativos a tradução e interpretação de Libras. Tivemos também a contratação de professores de Libras para atuar em vários cursos de formação de professores em todas as áreas da educação, nas universidades brasileiras. Esses tipos de ações tem tido impacto direto na vida dos surdos brasileiros.

Nesse sentido, o que pode Portugal aprender com o Brasil; e vice-versa?

O Curso de LGP da UCP já é fruto de uma visita à UFSC. Eu acredito que Portugal pode aprender sobre como multiplicar a formação de pesquisadores e de formadores de profissionais em todas as regiões do país, assim como tem nos a ensinar sobre como sustentar as associações de surdos. Além disso, podemos sim estabelecer parcerias para avançar nos estudos das duas línguas de sinais contribuindo uns com os outros.

Nos últimos anos tem vindo algumas vezes a Portugal, nomeadamente a convite da Universidade Católica. Que percepção tem do desenvolvimento da Língua Gestual Portuguesa?

O grande avanço da UCP foi abrir um espaço de formação de professores de LGP específico aos surdos portugueses. É fundamental planejarmos ações para formar os próprios surdos sobre a sua língua para garantir que esse conhecimento seja devidamente disseminado. Além disso, ao formar professores de LGP, estamos também abrindo o espaço para formar pesquisadores de LGP que sejam “sinalizantes” nativos desta língua.

Que sugestões deixa ao nosso país para uma melhor integração da comunidade surda?

Os surdos precisam ter oportunidade de acesso à formação para se tornarem tão qualificados quanto as demais pessoas do seu país. Com a devida qualificação, os surdos passam a estar a frente das mesas de discussão, bem como do ensino e da pesquisa, relativos às questões diretamente relacionadas com sua língua. Assim, eles deixam de ser convidados e passam a ser participantes ativos dos processos de decisão. Para que isso aconteça, os processos de seleção e promoção devem ser na sua língua, ou seja, na LGP. Essa é a chave para a formação de surdos qualificados. A UCP está fazendo isso com o Curso de LGP. Lembro que jamais a Língua Portuguesa pode ser o fator de exclusão de surdos. Isso não significa que a Língua Portuguesa não tenha um papel importante na formação dos surdos portugueses, mas sim que não seja a razão de sua exclusão. Para isso, os espaços precisam ser previstos na LGP.

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