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Um deputado diferente em Valongo
por porsinal     
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Quarta-feira, 07 de Junho de 2017 às 02:54:08
Armando Gabriel Teixeira Baltazar, tem 66 anos e uma vida dedicada à intervenção civica, sobretudo na defesa dos direitos dos surdos, uma vez que desde os treze anos não ouve. Desde 2013 que é o primeiro deputado municipal surdo em Valongo.

Armando Baltazar foi galardoado com o International Social Merit Award 2nd Class pela World Federation of the Deaf (WFD), pela sua extraordinária dedicação à causa das Pessoas Surdas e pela sua contribuição para o desenvolvimento da WFD, no XVI Congresso da WFD, Durban, África do Sul em Julho de 2011. Foi ainda Prémio de Mérito, no ano de 2005, da Federação Portuguesa das Associações de Surdos pelo trabalho desenvolvido em prol da Comunidade Surda, isto só para referir duas das inúmeras distinções que lhe foram atribuidas.

Como surgiu a experiência no associativismo, sobretudo em relação à presidência da Associação de Surdos do Porto?
Armando Baltazar – Eu fiquei surdo porque tinha que ficar, ou seja foi a sina, o fado, que o destino deu à minha vida. As pessoas por vezes, associam certos números a certas superstições. Mesmo não sendo supersticioso tenho de referir que a minha surdez surgiu no próprio dia em que fiz treze anos de idade. A partir daí o meu número preferido é o…13.
Quanto ao lidar com a minha surdez, profunda e bilateral, mentalizei-me fortemente para “eu não posso aprender a ouvir, a Sociedade poderá aprender a LGP, por isso o problema é “deles” (ouvintes) que se esforcem para comunicar comigo da forma que melhor entenderem”. Claro que eu também me esforço.
Comecei a conviver com a Comunidade Surda tinha 15 anos. A “minha” comunidade era então uma comunidade totalmente discriminada, subalternizada, humilhada mesmo, e fiz promessa a mim mesmo de que enquanto viver a minha vida será totalmente dedicada a pugnar por todas as condições que possibilitem às pessoas surdas o acesso à cidadania plena numa verdadeira inclusão… Por isso desde aí tenho sido um dos elementos que vem liderando a comunidade surda portuguesa.

O trabalho que tem sido feito tem sido positivo?
AB – Sempre, desde criança, orientei a minha vida pelos meus sonhos. Nem todos consegui realizar mas foram mais os conseguidos que os não atingidos. Mas estes continuam a fazer parte do meu quotidiano, pelo que tenho mesmo de acreditar numa sociedade igualitária onde as pessoas surdas beneficiem de tudo da mesma forma que os restantes cidadãos. Uma utopia? Deixem-me sonhar aliás como, e bem, escreveu António Gedeão em 1956: “Eles não sabem, nem sonham, / que o sonho comanda a vida, / que sempre que um homem sonha / o mundo pula e avança / como bola colorida / entre as mãos de uma criança”.
Posso frisar que muita coisa mudou, aliás tem sido uma luta coletiva duma comunidade “sui generis”, ainda muito há a melhorar, pelo que espero as futuras gerações lutem como a minha pugnou.
Mas nestes 51 anos de luta apraz-me dizer que a situação mudou como da noite para o raiar da alvorada… o dia já não está tão longe… Por isso valeu a pena !

Na sua opinião como tem evoluído a sociedade no sentido de criar condições iguais para todos os cidadãos?
AB – Relativamente às pessoas portadores de deficiência e/ou incapacidades é primordial a abertura da Sociedade na criação de uma sociedade inclusiva, tais como a aceitação das diferenças individuais, a valorização de cada pessoa, a convivência dentro da diversidade humana, a aprendizagem através da cooperação.
Claro que só uma verdadeira inclusão social permitirá a criação de condições que refere, pois como escreveu Sassaki: “a inclusão social pode ser conceituada como o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, nos seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos”, ou seja deveres e direitos para todos.
É isto, o meu sonho não apenas para as pessoas surdas e/ou com outras deficiências ou incapacidades, mas para todos os cidadãos. Uma utopia? Deixem-me sonhar pois não conheço a palavra impossível.

Durante a sua vida sentiu-se prejudicado pelo facto de ser “diferente”?
AB – Quem não sentiu isto na sua vida? Confesso que inúmeras vezes senti, sinto e sei que no futuro sentirei discriminação/exclusão social. Mas também considero que a maior parte dessa discriminação/exclusão é feita de forma involuntária por parte da Sociedade. Falta de consciencialização, falta de sensibilização, falta de informação, relativamente aos cidadãos ditos “diferentes”, às nossas formas de viver e de estar no mundo. As ONG’s representativas das Pessoas portadoras de Deficiência fazem o possível para que esta situação seja corrigida, mas sem a colaboração e a disponibilidade dos poderes públicos e da Sociedade continuarão a existir situações de discriminação, voluntárias (poucas) e involuntárias.

JNR – No que se refere à política, como surge numa lista à Assembleia Municipal?
AB – A minha vida tem sido corrida a um ritmo vertiginoso… para além das ocupações profissionais, associativas, familiares, sociais ainda consigo tempo para a política. Sim desde setembro de 2013 que sou o primeiro membro da comunidade surda a ser eleito para um cargo público, como número dois da lista do Partido Socialista à Assembleia Municipal de Valongo.
A oportunidade surgiu aquando da pré-candidatura. Solicitei uma reunião ao atual presidente da Câmara de Valongo, José Manuel Ribeiro, um político já meu conhecido há anos e dono de uma forte sensibilidade e contínua atenção pelo tema da inclusão, na qual lhe transmiti a minha preocupação pela necessidade de criar condições para tornar Valongo um Concelho mais solidário e inclusivo, propondo-me colaborar com ele talvez como Provedor do Cidadão com Necessidades Especiais. No entanto José Manuel Ribeiro considerou que a minha disponibilidade e conhecimentos seriam mais adequados num órgão deliberativo e assim se consumou a minha eleição como deputado municipal. E o que mostra mais a sensibilidade e a dignidade, pessoais e políticas, de José Manuel Ribeiro é que quando me formulou o convite nada me pediu em troca, apenas referiu: “Baltazar pugna pelas tuas ideias e ideais… sê tu próprio”.
O apoio público formulado pelo então Secretário-Geral do PS, José António Seguro, uns dias antes das eleições autárquicas também me transmitiu força e confiança. Ambos, José Manuel Ribeiro e António José Seguro, mostram uma nova forma da classe política olhar para as pessoas com portadoras de deficiência, nomeadamente para a Comunidade Surda.

Acha que Valongo já ganhou algo com uma “voz” diferente na Assembleia Municipal?
AB – Por que não? Aliás, creio mesmo que no momento da minha eleição a Assembleia Municipal ficou mais rica, mais heterogénea, mais diversificada, com um elemento “diferente” e que só com uma língua diferente tem acesso à plena comunicação. E por arrastamento o nosso Concelho também ficou mais aberto ao tema da inclusão, pois venho detetado uma crescente preocupação por este tema em inúmeros quadrantes públicos e/ou privados.
Como referi numa entrevista pouco após a minha eleição, repito que “Apesar da minha surdez, ou por motivo da minha surdez…, sempre perspetivei o conceito de cidadania fortemente “ligado” à noção de direitos, especialmente os direitos políticos, que permitem ao indivíduo intervir na direção dos negócios públicos do Estado, participando de modo direto ou indireto na formação tanto do governo, como das autarquias e na sua administração, seja ao votar (indireto), seja ao concorrer a um cargo público (direto).”
Tento dignificar ao máximo o cargo para que fui eleito, através da procura incessante da criação de condições para tornar Valongo um Concelho mais solidário e inclusivo, não apenas para as Pessoas Surdas e/ou com deficiências e incapacidades, mas para todos os munícipes, naquilo que eu considero ser a verdadeira inclusão: em princípios ainda considerados incomuns, tais como a aceitação das diferenças individuais, a valorização de cada pessoa, a convivência dentro da diversidade humana, a aprendizagem através da cooperação.
Considero que o objetivo da política é uma coisa fácil e que pode proporcionar felicidade a quem a exerce com dignidade. Basta ter em atenção a necessidades e os anseios de quem nos elegeu e pugnar pela satisfação dos mesmos.

Mas certamente que ainda não está tudo feito no concelho para criar condições para quem tem deficiência. O que faz mais falta?
AB – Muito se fez mas muito há a fazer. Não apenas em Valongo mas também em Portugal, na Europa e no Mundo.
O principal será a mudança de mentalidades que permita se avance em direção ao conceito do desenho universal ou desenho para todos. Visa a conceção de objetos, equipamentos e estruturas do meio físico destinados a ser utilizados pela generalidade das pessoas, sem recurso a projetos adaptados ou especializados, e o seu objetivo é o de simplificar a vida de todos, qualquer que seja a idade, estatura ou capacidade, tornando os produtos, estruturas, a comunicação/informação e o meio edificado utilizáveis pelo maior número de pessoas possível, a baixo custo ou sem custos extras, para que todas as pessoas e não só as que têm necessidades especiais, mesmo que temporárias, possam integrar-se totalmente numa sociedade inclusiva.
Em Valongo, atualmente, constato nos poderes públicos e nas forças políticas, vontade de se avançar mais e mais. Sabe-se bem que a escassez de disponibilidades financeiras é um óbice a tal. Mas estou confiante que as gerações futuras, com ou sem deficiência, já irão viver num Concelho mais inclusivo, mais igualitário e com menos barreiras.

Sente-se acarinhado pelos outros deputados municipais?
AB – Se ser aceite e ser tratado como igual, se ser considerado mais um entre todos, apesar da minha “diferença”, é ser acarinhado tenho de referir que sim. Desde o primeiro dia que me senti na Assembleia Municipal em plano de igualdade e isto só demonstra que a totalidade dos deputados municipais, independentemente das suas cores políticas, está totalmente aberta à inclusão. E tenho orgulho em frisar que as relações políticas se têm transformado em relações de amizade, não apenas com os colegas da minha bancada mas, e também, com colegas deputados de outros partidos.

"É impossível para aqueles que não conhecem a língua gestual perceberem a sua importância para os Surdos, a sua enorme influência sobre a felicidade moral e social dos que são privados da audição e a sua maravilhosa capacidade de levar o pensamento a intelectos que de outra forma ficariam em perpétua escuridão. Enquanto houver dois Surdos no mundo e eles se encontrarem, haverá o uso da língua gestual.."

J.Schuylerhong

Fonte: Jornal Novo Regional

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