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Entrevista com Isabel Correia
por porsinal     
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Terça-feira, 22 de Janeiro de 2013 às 20:52:49
Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Inglês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Doutora em Literaturas e Culturas Românicas, especialização em Culturas Ibéricas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Isabel Sofia Calvário Correia é professora adjunta na ESEC, diretora da Licenciatura em Língua Gestual Portuguesa e coordenadora da pós-graduação em Interpretação de LGP. Em entrevista exclusiva à plataforma porsinal, Isabel Correia destaca as mudanças na sociedade e a importância da LGP no ensino fundamental.

Por Sinal (PS): Ao invés de falarmos no seu percurso, falemos no caminho que há a percorrer. Como está a LGP no panorama nacional ?

Isabel Correia (IC): No meu entender, e se falarmos no público geral, há ainda um longo caminho a percorrer. A maioria das pessoas estão pouco ou, pior, mal informada. Ainda é comum ouvir-se falar em “linguagem gestual”; surdo-mudo, entre outros conceitos errados. Todavia, creio eu, já estivemos pior. O facto de alguns programas terem intérprete contribui para que as pessoas, pelo menos, se interroguem sobre o que se passa no “quadradinho”. Destaco, também que cada vez mais escolas e instituições solicitam à equipa de Língua Gestual Portuguesa (LGP) da Escola Superior de Educação de Coimbra (ESEC) sessões de sensibilização e divulgação, o que é positivo porque a LGP e a cultura surdas chegam por direita via às pessoas, o que nem sempre acontece…

PS: Como assim, nem sempre acontece ?

IC: Infelizmente, prova do desconhecimento e da desvalorização de que a LGP ainda é alvo, algumas pessoas sem formação acham-se no direito de “ensinar gestos”. Por exemplo, alguém que tenha frequentado um nível inicial de um curso livre de LGP entende que pode ensinar crianças, por exemplo, dando-lhes exemplos de algum vocabulário. Ora isso, por mais boa vontade que possa ter, é prejudicial para todas as partes. Com certeza que ninguém, sabendo meia dúzia de palavras em alemão, o vai ensinar a uma turma! Então por que o fazem com a LGP ? Só profissionais, licenciados, no ramo de leccionação têm verdadeiras aptidões para isto.

PS: Mas também talvez isso se deva à pouca divulgação científica da LGP…

IC: Sim, em parte, talvez. Científica, social e política. Porém, no que diz respeito à parte científica, saliento que já estivemos pior: estão para sair diversos artigos científicos relacionados com a LGP na revista EXEDRA (www.exedrajournal.com) da ESEC. As 1as Jornadas da LGP, também na ESEC, procuraram juntar diversas pessoas interessadas e especialistas no assunto, entre outros congressos que tem vindo a ocorrer no país. Em curso há a publicação de livros da especialidade. Já estivemos muito pior!

PS: Sim, mas eu falava de grandes eventos para um público mais abrangente.

IC: Bem, qualquer área científica pode não ser assim tão abrangente… sobretudo esta que está agora a despontar em âmbito universitário. Além disso, a falta de recursos impossibilita eventos de maiores dimensões. Mas, saliento, a internet está aí para quem a quiser consultar… Todavia, se o reconhecimento político da LGP e a restruturação do ensino para surdos fossem mais efectivos, talvez se acedesse mais a um público maior.

PS: Como assim reestruturação do ensino ? Temos um ensino bilingue…

IC: Sim, ainda a dar os seus primeiros passos. Mas, creio, falta reconhecer o trabalho dos docentes de LGP como formadores, estruturar a carreira dos intérpretes e, também, fornecer condições para que se possa dar formação a todos os profissionais que lidam com surdos. Na conjuntura actual do país é complexo, mas seria um grande passo se fosse criado, pelo Ministério da Educação, um código de recrutamento para os docentes de LGP que passariam a ser professores - que é o que profissionalmente fazem - e não técnicos. Da mesma forma, a grande instabilidade nos concursos de intérpretes e docentes não ajuda ninguém. Creio que este passo daria mais estabilidade e vontade a todos em aprender mais. Porque hoje em dia, alguém ir, voluntariamente, para uma formação… é complicado. Depois, aumentar a carga lectiva de LGP e alargar o ensino desta língua aos ouvintes seria mais do que uma mais valia…

PS: Mas que tipo de formação propunha ?

IC: Depende da franja de público. Mas acho que para todos os docentes de surdos haveria que insistir no seu conhecimento de LGP e também no manuseamento de materiais didácticos específicos para as disciplinas. Nos docentes de LGP, a formação em didáctica e linguística parece-me essencial, para os intérpretes em linguística e técnicas de interpretação/tradução. Poderia ser formação pós-graduada, que já vai havendo, ou então formação contínua.

PS: É fácil encontrar materiais bilingues ?

IC: Bem, já estivemos pior… Há cada vez mais livros de histórias inclusivos e nas escolas cria-se material interessante. … Falta, creio, validar-se esse material e difundi-lo no mercado. E falta, sobretudo, assentar questões terminológicas.

PS: Como assim ?

IC: A LGP é uma língua viva e serve os seus utilizadores. Novos gestos surgem com o avanço da sociedade, é assim em qualquer idioma. Todavia, quando falamos de domínios científicos, como a linguística, a física, a história e outros, é necessário recorrer a equipas de especialistas para se definirem termos: especialistas da área em questão, surdos, docentes de LGP, intérpretes e linguistas. Tenho esperança que isso em breve venha a acontecer… Como disse desde o início desta conversa, estamos a começar o caminho.

PS: Qual é o papel de um linguista no desenvolvimento da língua gestual ?

IC: A meu ver, um linguista desempenha um papel fundamental, no estudo e fixação da língua. O idioma, como meio de comunicação desenvolve-se pelo uso na comunidade, não é um linguista que o cria ou desenvolve. Todavia, se não tivesse sido Fernão de Oliveira em 1536 a escrever uma gramática do português, ter-se-iam seguido outras ? Como estaria a língua ? A norma ? Da mesma forma, como estariam as LG's sem Stokoe ? A investigação só é possível em equipa, conjugando diversas competências e aí entra o linguista: na fixação, na reflexão sobre a língua. Por exemplo, para se definir terminologias deve-se ter em atenção os gestuantes nativos e proficientes; os intérpretes; pessoas da especialidade e um linguista que estudará os processos de formação, entre outras coisas inerentes à língua.

PS: Como vê o papel do intérprete de LG na comunidade surda ?

IC: A definição imediata é a de ponte/meio de comunicação entre a sociedade ouvinte e o surdo e vice-versa. Aliás, este papel está regulamentado por uma lei própria. Todavia, na prática, a situação é mais complexa. O surdo tem de confiar no intérprete, este é um conceito chave e o profissional, por sua vez, tem de ter ética e brio profissionais, esquecendo a sua individualidade para que a comunicação seja fluida, sem prejuízos ou benefícios.

PS: Como vê a “dependência” da pessoa surda desse intérprete no acesso a muitos serviços essenciais, como seja, o contacto com médicos, bancos, etc ?

IC: Por vezes, os surdos, sobretudo se são idosos ou, do lado oposto, jovens, tendem a ver o intérprete como confidente. Esta relação pode resultar bem ou ser fatal para ambas as partes. Somos humanos e é difícil gerir as nossas vidas numa voz que não ouvimos. O mais seguro é o profissionalismo exemplar, é tentar esquecer que se é uma pessoa… Veja como é complicado, não ? Por isso é desafiante ser intérprete. Ao mesmo tempo exige uma responsabilidade enorme e um grande sangue-frio. Um intérprete de uma língua oral terá menos afectividades, suponho. Claro que a mensagem deve ser fiel, mas alguém que interpreta um inglês em Portugal está, de facto, a prestar um serviço a um estrangeiro. Um surdo é um estrangeiro no seu país, creio que, por isso, a sensibilidade, de ambas as partes, aumenta. O mais seguro é, repito, o distanciamento profissional, algo complexo, mas que, julgo, se adquire com prática, treino e dedicação.

PS: Qual o papel destas instituições nesse âmbito ?

IC: Que eu saiba nenhum. Creio que há uma desinformação, e, por vezes, desinteresse, em perceber que um surdo precisa de um intérprete para comunicar. Sei de casos em que foi difícil ao profissional entrar na consulta médica pois não percebia porquê ou para quê. É pura ignorância, e tratamento desigual, aliás, pensar que basta escrever num papel. O que se escreve é português, não LGP. A informação não chega em pleno ao surdo, por isso, há que reclamar sempre que é vedado o intérprete. Depois, não sendo comparticipado pelo estado, que seria o ideal, muitos surdos não tem possibilidade de os contratarem. Se houvesse sempre mais acessibilidade, como, por exemplo, painéis escritos, um surdo não veria a sua vez passar numas urgências por que não ouviu. Não é o ideal, repito, mas seria um passo.

PS: Não se encontram muitos surdos licenciados em áreas que não a da LGP. Como vê possível esta mudança de paradigma ? Que papel têm os diferentes “atores” (especialistas da área) nessa mesma mudança ? E qual o papel do surdo nesse contexto ?

IC: Bem, há uns tempos não havia surdos licenciados e ponto. Agora já há alguns e em outras áreas, como o Direito, a Psicologia, as Ciências da Educação, Artes. Mas isso implicou um enorme esforço. A questão é que o Ministério da Educação não financia intérpretes para outros cursos, apenas para LGP (reporto-me à realidade que conheço, as escolas públicas) e as instituições de ensino superior não tem verbas para comportar esses profissionais sem apoios… O que tentamos fazer na ESEC é pedir às alunas finalistas do ramo de interpretação que assumam essa função. Tem resultado bem, creio eu, mas não é a mesma coisa, claro, até porque elas são também estudantes e têm obrigações académicas. Talvez no futuro, se houver um grande número de surdos a concorrer e a entrar noutras licenciaturas, se possa dar mais um passo, intérprete para todos. Aliás, deixe-me apenas sublinhar que este ano lectivo, numa pareceria com a Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra (ESTESC) e a ESEC, há dois surdos num mestrado na área da saúde e têm uma intérprete. È um caso raro, mas há-de deixar de o ser…

PS: O facto de começarem a aparecer mais materiais inclusivos, deve-se, no seu entender, a quê ? A um maior interesse da sociedade em geral ou a uma necessidade de produzir esses mesmos materiais pois o que havia era francamente escasso ?

IC: Creio que, como acima já disse, se deve à escassez e necessidade dos profissionais. Muito há a fazer ainda nesse campo, nomeadamente a validação desses materiais por profissionais competentes.

PS: Como acha que os “ouvintes” veem a comunidade surda?

IC: Acho que não veem… ou veem mal. Os que não estão aí integrados, ou seja,a sociedade, em geral, creio eu, vê-os como deficientes. E mais nada. Alguns somam conceitos errados como linguagem gestual, mutismo, etc… Mas raramente os veem como diferentes eficientes. Mas isso está a mudar, sobretudo através das crianças que, como já referi, denotam cadavez mais interesse em comunicar com as mãos.

PS: Acha que há interesse por parte da sociedade “ouvinte” em aprender LGP ?

IC: Das crianças, sem dúvida. Da restante sociedade… acho que a desinformação ainda é muita…aliás, nós temos cursos livres e a procura não tem sido efetiva, talvez devido à crise ou apenas ao desconhecimento da mais valia que é saber mais esta língua…

PS: Defende que se inclua a LGP como língua opcional nos currículos escolares ?

IC: Sim defendo a mais de 100%! Porque não só é aprender mais uma língua que existe no território português, mas também, sobretudo, educa para a cidadania, respeito e conhecimento das diferenças. Uma criança ouvinte que gestue vê o mundo, em relação aos surdos, pela diferença positiva e não pelo preconceito.

PS: Em outros países como o Brasil, EUA e outros, o ensino da LG está difundido e divulgado como uma língua para todos. Em Portugal aparece quase como exclusiva da comunidade surda. O que acha que pode ser feito para mudar esta realidade e sobretudo a mentalidade das pessoas ?

IC: Estará assim tão difundido? Fomos pioneiros em reconhecer a LG na Constituição como língua de ensino e de expressão da comunidade surda. Será assim tão vulgar um brasileiro ouvinte saber/aprender libras ? Ou um americano ASL ? Tenho dúvidas… pode haver muita investigação, sim, há, mas focalizada… Temos também de nos valorizar… E a LGP está aí pra todos! Repare, há cursos livres, como disse… Mas, ainda seria mais abrangente se fosse introduzida como disciplina - ou como Atividade Extra Curricular, no 1º ciclo - no ensino regular obrigatório. Aí seria oferecida a todos a possibilidade de a aprender. A escolha estaria no público…

PS: Há algum intercâmbio de conhecimento entre Portugal e outros países, no que toca ao desenvolvimento de conceitos de ensino ou outros nesta área ? Acha que deveria haver ? Como poderia isso ser feito e quais os benefícios que daí poderiam advir ?

IC: Só posso falar em relação à ESEC. Dentro do país, em âmbito institucional, temos intercâmbios com instituições parceiras que forma alunos em LGP, como a Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto (ESE/IPP) e a Escola Superior De Educação De Setúbal (ESE/IPS). Também vamos tendo intercâmbios pontuais com o Intituto Politécnico de Leiria e esperamos efectivar ainda mais essas trocas com essa instituição e com outra, o Instituto Jacob Rodrigues Pereira. Tivemos o prazer de ter connosco já a Prof. Ronice Müller de Quadros e mantemos intercâmbios entre alunos e docentes com a Universidade de Utrecht, a Hogeschol Van Utrecht que forma intérpretes e desenvolve investigação em LG. Todos os intercâmbios, porque são partilhas, são benéficos para o desenvolvimento pessoal e académico.

PS: Em Portugal, a LGP é reconhecida na Constituição da República Portuguesa desde 1997. Onde estamos, passados 15 anos dessa medida ?

IC: Atenção: é reconhecida como língua de ensino e expressão cultural de uma comunidade, não é oficial… Estamos a caminhar! Repare, temos, agora, Escolas Bilingues; surdos licenciados, mestres, a tirar o doutoramento. Intérpretes e docentes de LGP com qualificação superior. Investigação em LGP. Novos glossários e dicionário. Parcerias, projectos em curso. Acho que ainda temos muito pela frente, mas… devagar se vai ao longe.

PS: Como vê a actuação das associações de surdos em Portugal ?

IC: As associações de surdos são um elo de coesão importantíssimo. São elas que muitas vezes representam a comunidade em altas instâncias. Hoje em dia com a internet, os SMS, não haverá tanto a necessidade de um lugar de encontro, por isso, acho, que as associações se devem unir cada vez mais e renovar o seu papel, promovendo a LGP para a sociedade e estando sempre do lado da comunidade fornecendo apoio, formação certificada, em suma, dizendo à sociedade ouvinte que os surdos existem.

PS: É neste momento diretora do curso de LGP na ESEC. Desde que o curso entrou em funcionamento, que problemas identifica no contacto com os alunos que o frequentam ?

IC: Creio que barreiras de comunicação não as há. Desde o primeiro dia em que entram na ESEC, os alunos surdos têm direito a uma intérprete que assegura a interpretação das aulas e também os acompanha aos serviços, encontros com professores e outras tarefas académicas e que caibam no exercício da sua profissão. Os docentes estão alertados para a especificidade destes estudantes e colaboram positivamente. A comunidade "esequiana" olha os alunos surdos com cada vez menos espanto, o que é positivo, pois significa que ver gestuar é algo natural. Destaco, também, que no lectivo anterior o dia da LGP foi celebrado em conjunto com os alunos e colegas docentes do curso de Arte e Design e para o ano haverá novas parcerias internas. Já organizámos as 1as Jornadas da LGP e outros eventos se hão de seguir.

PS: Vê-se como parte da Comunidade Surda? Qual é o seu papel?

IC: Grandes amigos meus dizem que sim. Eu também acho que sim. O respeito e admiração que tenho pela LGP é imenso. Por isso, sim, creio que faço parte dessa grande equipa que trato com dignidade e entrega. O meu papel, creio, é continuar a dar o melhor de mim, enquanto professora na ESEC e directora da licenciatura e da pós-graduação, procurando melhorar, sempre com a ajuda das minhas colegas, de surdos, de ouvintes, o ensino que se transmite. Procuro, dentro das limitações de tempo e outras, investigar ao máximo a LGP com o intuito de dar a descobrir uma língua fascinante e rica.

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