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Maria do Céu Gomes
Maria do Céu Gomes
Professora
Língua Gestual Portuguesa – Para o infinito e mais além!
Inserido Quarta-feira, 06 de Novembro de 2013
Autor: Maria do Céu Gomes
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Para os jovens surdos, alguns cursos universitários sempre foram encarados como tabus, quer pelas suas particularidades, quer pela sua elevada média de acesso. Um desses cursos era Medicina. Não se imaginava que um surdo, cujo raciocínio tivesse sido estruturado recorrendo à Língua Gestual Portuguesa como primeira língua, atingisse a excelência académica, devido às pressupostas dificuldades no português. Recentemente foram derrubadas todas essas ideias preconcebidas e uma surda de nascença entrou em Medicina, em Portugal!

Não foi um percurso comum. Os seus pais, quando diagnosticada a surdez, lutaram e não desanimaram. Procuraram informar-se, ir a congressos no país e no estrangeiro, de modo a saber qual o modelo linguístico e qual o modelo educativo que mais contribuiria para o desenvolvimento da sua filha.

Um dia, o pai, contou-me: “A minha filha costumava fazer um angustiante ruído de incompreensão, procurando desesperadamente comunicar. Deixou de o fazer 15 dias após termos iniciado a aprendizagem da LGP, pois esta língua permitiu-lhe aceder à comunicação”.

O pai e a mãe são exemplos de total dedicação à sua filha, tal como muitos outros pais de crianças e jovens surdos. Empenharam-se em dar-lhe uma educação bilingue desde tenra idade. Não deixaram essa tarefa unicamente para a escola. Encarregaram-se dessa educação, dia após dia, noite após noite, passo a passo, pedra a pedra. Primeiro a aprendizagem da língua gestual, depois a iniciação à leitura e à escrita, tudo de forma apelativa, explorando todas as valências e todas as possibilidades e acima de tudo, acreditando que era possível vencer.

A jovem foi desenvolvendo a sua capacidade de escrita e a sua autonomia. Andou até ao 8º ano em turma de surdos e a partir daí em turma de ouvintes. Conseguiu desenvolver competências que lhe permitiram integrar com sucesso os dois mundos – o surdo e o ouvinte. Este ano entrou em Medicina, sendo provavelmente a primeira pessoa com este percurso a conseguir tal feito. Está de parabéns!

Prevejo a continuação do sucesso académico e pressinto a esperança da comunidade surda poder vir a ter, finalmente, um médico que conhece profundamente a sua língua e cultura e com quem poderão comunicar naturalmente.

Nem todos os pais se empenham em aprender língua gestual ou em acompanhar diariamente os seus filhos no seu percurso educativo. Falta informação e apoio às famílias. Cabe ao Estado garantir aos alunos surdos uma educação bilingue de qualidade, independentemente de a criança ter pais mais ou menos presentes. É também função do poder político sensibilizar as famílias e dar-lhes formação. Jovens como esta poderão dar testemunho de que nascer surdo não tem que constituir necessariamente um problema. Como dizia King Jordan, reitor surdo da Universidade de Gallaudet, “os surdos podem fazer tudo os que os ouvintes fazem, exceto ouvir”.

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