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Ronice Müller de Quadros
Ronice Müller de Quadros
Professora e Investigadora
A Estrutura frasal da Língua Brasileira de Sinais
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Publicado em 2000
II Congresso Nacional da ABRALIN, Florianópolis. Anais do II Congresso Nacional da ABRALIN. Florianópolis: UFSC
Ronice Müller de Quadros
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Resumo

O presente trabalho apresenta a arquitetura da estrutura da frase da língua brasileira de sinais (LIBRAS) no contexto de investigação do programa gerativista (Chomsky, 1995). As análises envolvem desde a ordem das palavras às operações sintáticas incluindo posições A e A’. A partir disso, apresentam-se as duas representações da estrutura da frase da LIBRAS.

1. SVO como a ordem básica da LIBRAS

Iniciamos a investigação observando a ordem básica das palavras através da interação de elementos estruturais (advérbios, modais, auxiliares e negação). Foram observados os seguintes fatos 3:

  • todas as sentenças SVO são gramaticais sem informações adicionais:
    JOÃO GOSTAR MARIA
    O João gosta da Maria
    JOÃOa [aENVIARb CARTA MARIAb]conc
    O João enviou a carta para a Maria
  • OSV e SOV são ordens derivadas somente mediante alguma marca especial (presença de traços), tais como as marcações não manuais que coocorrem com as palavras:
    [MARIA]tópico JOÃO GOSTAR
    A Maria, o João gosta
    [MARIAb] JOÃOa [aENVIARb] CARTA
    Para Maria, o João enviou a carta
  • as demais combinações -- VSO, OVS e VOS – não são derivadas na LIBRAS, mesmocom a presença de alguma marca especial;
  • a extração de um objeto oracional para uma posição mais alta não é permitida:
    JOÃO PENSA [MARIA INTELIGENTE]
    *[MARIA INTELIGENTE]JOÃO PENSA
    O João pensa que a Maria é inteligente.
  • advébios temporais (advérbios de adjunção à IP) e de freqüência (advérbios de adjunção à VP) não podem interromper o constituinte VP que inclui o verbo e o objeto [VP[V NP]] na LIBRAS. Tais advérbios podem ser focalizados apresentando uma cópia em posição final:
    ONTEM JOÃO COMPRAR CARRO
    *JOÃO COMPRAR ONTEM CARRO
    ONTEM JOÃO COMPRAR CARRO [ONTEM]foco
    Ontem o João comprou um carro.
  • modais ocupam a posição entre IP(ou AgrP) e VP; e as restrições observadas são similares àquelas observadas com advérbios: (i) os modais não podem interromper a unidade VP; (ii) os modais podem ser focalizados apresentando-se duplicado na posição final da derivação; e (iii) como conseqüência de (ii), a matrix dos modais pode ser nula (para OSV e SOV: OS(M)VM, S(M)OVM; para SVO: S(M)VOM):
    JOÃO PODER COMPRAR CARRO
    *JOÃO COMPRAR PODER CARRO
    JOÃO PODER COMPRAR CARRO PODER
    JOÃO e COMPRAR CARRO PODER

A partir destes dados, determinou-se a posição sintática das categorias argumentais na LIBRAS.Apesar de serem observadas mudanças na ordem das palavras, a LIBRAS é uma língua de núcleo inicial. Assim sendo, propõe-se uma representação da estrutura frasal para a LIBRAS como resultante de um conjunto de projeções de Tempo e Concordância no espírito de Pollock (1989), mais tarde refinada por Chomsky (1991) e Chomsky e Lasnik (1993):
[AgrSP [AgrS’[AgrS [TP [T’ [T [AgrOP [AgrO’ [AgrO [VP [V’ [V ]]]]]]]]]]]]

2. Duas representações da estrutura da frase

Apesar dessa representação ter sido delineada, ao longo das análises observou-se a existência de uma assimetria entre duas classes verbais na LIBRAS que apresentam repercussão na estrutura. Essa assimetria é observada entre non-plain e plain verbs, ou seja, verbos com e sem concordância. Observou-se que além da assimetria morfológica, há uma assimetria sintática. Assim sendo, tornou-se necessário rever a representação da estrutura da frase proposta considerando um leque maior de construções que incluam tal assimetria.

Os fatos que identificam a assimetria entre as classes verbais na LIBRAS são os seguintes:

  • as sentenças com verbos que apresentam concordância (p.e., ENVIAR) parecem apresentar mais flexibilidade na ordem do que aquelas contendo verbos sem concordância
    (p.e., GOSTAR):
    JOÃO [MARIA] aENVIARb CARTA
    *JOÃO [MARIA] GOSTAR
  • as marcas não-manuais parecem ser obrigatórias com os verbos que apresentam concordância e opcionais com os verbos que não apresentam concordância:
    ??JOÃO aENVIARb CARTA MARIA
    JOÃO [aENVIARb CARTA MARIA]conc
    JOÃO GOSTAR MARIA
    JOÃO GOSTAR [MARIA]conc
  • os argumentos nulos com verbos com concordância são instâncias de uma língua prodrop, enquanto, não o são com verbos sem concordância:
    *JOÃO GOSTAR pro
    JOÃOa [aENVIARb] pro CARTA conc
  • a distribuição da negação é diferente entre sentenças contendo verbos com e sem concordância:
    *JOÃO NÃO DESIRE MARIA
    O João não gosta da Maria
    JOÃOa NÃO [aENVIARb CARTA MARIAb]conc
    O João não enviou a carta à Maria.

Para acomodar tal assimetria foi elaborada uma proposta que resulta da combinação entre o tratamento dado por Lasnik (1995) à assimetria da morfologia verbal para captar a distribuição morfológica dos verbos em diferentes línguas e o parâmetro para concordância proposto por Bobaljik (1995) que acomoda diferenças entre a manifestação de concordância entre as línguas.

Lasnik assume que verbos podem ser inseridos na derivação de duas formas: puros ou totalmente flexionados. Se os verbos forem inseridos totalmente flexionados, Infl é featural (contém traços a serem checados) (cf. Chomsky,1995). Por outro lado, se os verbos forem introduzidos puros na derivação, seus afixos serão inseridos independentemente em Infl e a associação destes afixos com o verbo será feita através da operação Merge, restringida pela condição de adjacência.

Bobaljik’s (1995) assume que se a afixação e merger se dão durante a derivação observando adjacência, a sintaxe é cega a elas. Assim, a sintaxe não irá projetar a categoria funcional de concordância na estrutura da frase. Por outro lado, se os afixos associados com os verbos são associados com traços, estes devem ser checados em Agr em algum ponto da derivação. Portanto, neste último caso, a sintaxe deve projetar a categoria de concordância. Com base nesta distribuição, Bobaljik apresenta o parâmetro de concordância que apresenta duas opções: as línguas podem fixar uma estrutura com o IP desmembrado em AgrP e TP ou apresentar somente IP.

Considerando a proposta de Lasnik (1995), nós observamos que os verbos sem concordância na LIBRAS apresentam um comportamento similar aos verbos que o autor refere como affixal, no caso do inglês, os verbos principais. As propriedades comuns observadas são as seguintes:

  • tais verbos não podem preceder a negação;
  • tais verbos não podem ser seguidos pela negação sem a presença de um auxiliar (no caso do inglês do-suporte, no caso da LIBRAS o auxiliar AUX);
  • tais verbos não podem preceder um advérbio adjunto à VP;
  • tais verbos podem ser apagados em sentenças subordinadas mediante identidade.

Com base nesta distribuição, nós propomos que os verbos sem concordância na LIBRAS são affixais, ou seja, tais verbos são inseridos puros na derivação. No sentido de Bobaljik, as derivações envolvendo tais verbos fixam o parâmetro sem projeção de concordância.

Em relação aos verbos com concordância, foi observado uma distribuição similar à distribuição dos verbos em sueco analisada por Lasnik como uma instância de verbos featural. Estes verbos incluem os verbos do francês e have e be do inglês. As características comuns entre tais verbos e os verbos com concordância na LIBRAS são as seguintes:

  • tais verbos precedem a negação quando apresentam traços fortes e a seguem quando apresentam traços fracos;
  • estes verbos não requerem do-suporte;
  • os verbos associados com traços fortes precedem advérbios adjuntos à VP;
  • tais verbos não podem ser apagados de orações subordinadas, salvo na presença de um auxiliar que garanta a identidade entre os verbos na oração principal e subordinada.

Diante de tais similaridades, nós assumimos que os verbos com concordância são featural, ou seja, eles são inseridos na derivação totalmente flexionados e, no caso, da LIBRAS, movem-se em LF para checagem dos traços (assim como no sueco). Considerando a proposta de Bobaljik, tais verbos acessam; portanto, o parâmetro de concordância com o desmembramento de IP em AgrP e TP.

Nós assumimos que as línguas apresentam as duas opções do parâmetro podendo marcá-lo e/ou não marcá-lo. No caso do inglês e da LIBRAS, as duas opções são possíveis dependendo de quais verbos sejam inseridos na derivação. Assim sendo, os verbos sem concordância na LIBRAS são affixal e, portanto, marcam o parâmetro com IP sem o desmembramento. Por outro lado, no caso dos verbos com concordância (featural), o parâmetro marcado determina o desmembramento de IP em AgrP e TP. Estas análises geram uma representação dual da estrutura da frase na LIBRAS.

As características analisadas por Bobaljik para cada opção paramétrica disponível são observadas com as classes verbais na LIBRAS confirmando, portanto, nossas análises.

Bobaljik observou que as línguas que marcam o parâmetro com o desmembramento de IP dispõem de um alvo para o movimento do objeto para uma posição mais alta quando o verbo é movido para fora de VP (cf. a generalização de Holmberg). Nós observamos que as derivações que contêm verbos com concordância na LIBRAS apresentam a possibilidade de ter o objeto movido para uma posição mais alta. Através da distribuição da marcação não-manual associada à negação, também observamos que este movimento acontece para o Spec de AgrO, após o verbo ter sido movido para AgrO (uma instância de movimento curto). A seguinte representação ilustra tais movimentos:
JOÃOa [AgrOP MARIAbi [AgrO aENVIARb]y] [NegP NÃO]neg [VP ti [V ty]]]

Interessante observar que com verbos sem concordância esta distribuição não é observada.

Outra característica apresentada por Bobaljik para línguas com o desmembramento de IP é que concordância e tempo podem coocorrer, diferentemente das línguas que apresentam somente IP, em que tais elementos estão em distribuição complementar. Os dados da LIBRAS apresentam esta mesma distribuição, ou seja, com os verbos com concordância, a coocorrência da concordância e da marca de tempo é derivada, enquanto que com os verbos sem concordância, isso não é possível (na LIBRAS há marcas temporais e auxiliares que são inseridos em Infl permitindo tais constatações). Os exemplos a seguir ilustram as duas alternativas:
JOÃO FUTUR0 [aENVIARb] CARTA (tempo futuro e concordância no verbo)
*JOÃO MARIA [I [FUTURO-TNS/ aAUXb]] GOSTAR (tempo futuro e auxiliar)

Mais uma característica apontada por Bobaljik para línguas que não apresentam o desmembramento de IP é que, nestas línguas, os verbos se mantêm em V, uma vez que Infl é adjacente a V. Nós assumimos que os verbos sem concordância na LIBRAS apresentam um afixo virtual que exige adjacência ao verbo e, por essa razão, as sentenças que apresentam tais verbos nesta língua têm tais verbos adjacentes a Ifl.

Considerando os fatos observados na LIBRAS, nós assumimos que a LIBRAS apresenta duas possíveis representações da estrutura da frase: uma com a projeção de IP para captar as derivações que apresentam verbos sem concordância, e outra com a projeção de AgrP e TP para acomodar as derivações que apresentam os verbos com concordância.

3 Categorias funcionais acima de IP

Concluí-se a representação das estruturas da frase na LIBRAS observando-se as construções interrogativas, as topicalizações e as construções focalizadas. Tais descrições oferecem subsídios para a determinação da representação completa da estrutura da frase da LIBRAS, incluindo as categorias funcionais relacionadas às posições não argumentais. Além disso, esta representação oferece suporte para estrutura básica SVO, assim como proposto anteriormente, uma vez que todas as mudanças da ordem das palavras resultam de operações relacionadas à checagem de traços.

Apresentamos a seguir algumas das propriedades intrínsecas das construções que envolvem posições não-argumentais.

Propriedades das construções-wh na LIBRAS:

  • o elemento-wh pode manter-se in situ ou ser movido para a posição de Spec de CP:
    [QUEM JOÃO GOSTAR]wh
    [JOÃO GOSTAR QUEM]wh
  • a direção do movimento-wh é para a esquerda
  • a marcação não-manual associada às derivações interrogativas se espalha obrigatoriamente sobre o domínio de c-comando de CP

Propriedades das construções focalizadas na LIBRAS:

  • FP envolve construções duplas com quaisquer núcleos dentro de IP:
    JOÃO PODER COMPRAR CARRO [PODER]foco
    JOÃO COMPRAR CARRO [COMPRAR]foco
    [QUEM JOÃO GOSTAR [QUEM]]wh
  • F está associado com o traço [+focus] que deve ser checado. IP deve mover-se para o Spec de FP para checagem deste traço:
    [FP [JOÃO PODER TOMAR CERVEJA]i hn
    O João pode tomar cerveja.
  • traço de F licencia o apagamento do núcleo em foco mediante identidade
    [FP [JOÃO e TOMAR CERVEJA]ihn
  • tais construções observam as restrições de ilha (Ross, 1967)

Propriedades das contruções topicalizadas na LIBRAS:

  • a marcação não manual de tópico é associada somente com o elemento topicalizado (caráter particular das adjunções):
    [TopicP CARRO]topic [CP QUEM COMPROU]wh
  • o deslocamento de constituintes para a esquerda pode ser uma sub-categoria da topicalização.

Nós concluímos que TopicP está acima de CP através da marcação não manual. Quando tais construções coocorrem, o tópico está necessariamente fora do escopo de CP, uma vez que a marcação não manual associada com o CP não se espalha sobre o tópico. TopicP é adjunto à CP com uma marcação não manual independente que coocorre somente com o elemento topicalizado.

Quanto a posição de FP, nós analisamos a distribuição das construções duplas e concluímos que tal categoria está situada entre CP e IP na estrutura frasal da LIBRAS. FP é projetada quando um elemento da sentença é enfatizado sendo associado com o traço [+foco]. Assim, IP (ou AgrSP) (que contém o elemento focalizado) move-se para o Spec de FP para a checagem do traço. Como observado através dos exemplos, os traços associados com o elemento focalizado licenciam o apagamento do elemento na oração principal (dentro de IP) associado com o traço [+foco]. Interessantemente, observamos que a marcação não-manual associada com o elemento focalizado no final da sentença se espalha sobre o traço de IP, uma vez que embora vazio, a marcação não-manual é preservada.

Considerando estas construções, nós podemos explicar as mudanças na ordem SVO. Por exemplo, FP como uma categoria independente à esquerda de IP, explica as construções SOV com verbos sem concordância. Esta derivação é originalmente SVO com o apagamento do verbo em IP licenciado por [+foco], ou seja, S(V)OV. No caso de SOV com verbos com concordância a operação é outra: o verbo move-se para AgrO licenciando o movimento do objeto para o Spec de AgrOP. Também vimos que algumas derivações OSV podem ser geradas por estarem associadas com tópicos (TopicP).

4. Representação das estruturas da frase

Se todas as análises apresentadas estiverem corretas, a representação das estruturas da frase na LIBRAS podem ser delineadas como em (1) (ver figura 1) e (2) (ver figura 2) a seguir.

Nós assumimos que há duas estruturas na LIBRAS, uma que apresenta somente IP e outra que inclui o desmembramento de IP em AgrSP, TP e AgrOP, para verbos sem concordância (plain) e verbos com concordância (non-plain verbs), respectivamente, sem quaisquer outras diferenças. Ou seja, as posições para CP, FP e TopicP são sempre acima da sentença (IP ou AgrSP) em posições A’ observando a seguinte hierarquia: [TopicP [CP [FP]]].

Notas

3 Para efeitos de simplificação, são usados glossas em português para os exemplos da LIBRAS. As marcas nãomanuais que coocorrem com as palavras são marcadas com colchetes. A concordância expressa em alguns verbos são marcadas por índices.

Bibliografia

BOBALJIK, J. D. The syntax of verbal inflection. Ph.D. Dissertation. MIT. MIT Working Papers in Linguistics. 1995.

BRAZE, D. Objects, Adverbs and Aspect in ASL. In Is the Logic Clear? Papers in Honor of Howard Lasnik. Kim, J-S. and Stjepanovic (eds.) University of Connecticut. Working Papers in Linguistics 8. 1997:21-54.

CHOMSKY, N. Some notes on economy of derivation and representation. In R. Freidin, ed.; Principles and parameters in comparative grammar. Cambridge. Mass.: MIT Press. Cambridge. 1991

_____ The Minimalist Program. MIT Press. Cambridge. 1995.

_____ & H. LASNIK Principles and Parameters Theory. In Syntax: An International Handbook of Contemporary Research. Walter de Gruyter. Berlin. 1993.

LASNIK, H. Verbal Morphology: Syntactic Structures Meets the Minimalist Program. In Evolution and Revolution in Linguistic Theory: Essays in Honor of Carlos Otero. Georgetown University Press. 1995.

MATSUOKA, K. Verb Raising in American Sign Language. In Lingua. Number 103. 1997:127-149.

POLLOCK, J.Y. Verb Movement, Universal Grammar, and the Structure of IP. In Linguistic Inquiry. Volume 20. Number 3. Summer. 1989:365-424.

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