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Carlos Afonso
Carlos Afonso
Investigador
Formação de professores para a educação bilingue de surdos
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Publicado em 2008
Revista Saber (e) Educar N.º 13
Carlos Afonso
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Resumo

Ao longo do texto ir-se-á discutir os recentes avanços e recuos da educação de Surdos em Portugal, com enfoque numa perspectiva de bilinguismo e intermulticulturalismo crítico que advém de um paradigma sócio-antropológico da surdez. Irá defender-se, em particular, a formação pedagógica de professores Surdos como um passo imprescindível e inadiável na concretização de uma adequada educação bilingue de Surdos.

Introdução

Este texto corresponde a uma versão revista e actualizada da comunicação efectuada no Congresso Internacional de Educação Básica (CIEB) em Setembro de 2007. Nessa altura, de acordo com as características do público do Congresso, supostamente heterogéneo quanto ao conhecimento (teórico e prático) das questões relacionadas com a educação de Surdos, fizemos uma selecção de alguns aspectos que consideramos mais relevantes e que pudessem levar à inquietude e ao questionamento no sentido de uma melhoria. Assim, pareceu-nos ser pertinente a abordagem da formação de professores, terreno onde julgamos existirem, ainda, muitas necessidades, apesar de algumas vozes defenderem o contrário.

Mas, o que se pretendeu trazer de diferente à discussão? Talvez a relação entre os diferentes termos que compõem o título da própria comunicação pelo que julgamos conveniente ir tornando-os explícitos e pertinentes.

1. Surdez

Já noutros momentos nos referimos (Afonso, 2006) à dificuldade que existe, para nós ouvintes, em percebermos o que é ser Surdo e quais os aspectos específicos do seu funcionamento. Isto porque, para além duma característica física (perda auditiva) que é possível de ser quantificável através de exames, existe todo um conjunto de factores que levam a não ser possível explicitar e quantificar outras «perdas» e outros «ganhos». Aqui, como é evidente e temos referido frequentemente, existe um choque entre a concepção vulgar, tradicional, advinda de um paradigma médico-pedagógico que considera a surdez como um défice e uma nova concepção de um paradigma sócio-antropológico (Skliar, 2001) que afirma ser a surdez uma característica cultural. Esta situação conduz a que o Surdo deva ser entendido como membro de uma comunidade minoritária linguística e étnico-cultural própria representando, através da sua forma diferente de experienciar o mundo, uma mais-valia para a humanidade.

Isso pode parecer difícil de ser entendido por quem está menos familiarizado com estes assuntos até porque, nesta perspectiva, sendo a surdez essencialmente uma construção social, ela será diferentemente assumida por parte dos ouvintes e dos Surdos. Mesmo por estes últimos, não o será de igual forma, atendendo às suas características pessoais e envolvência familiar e social, mas podemos dizer que, globalmente, se começa a esboçar um Projecto Surdo de surdez. Este passaria pela construção de uma identidade pessoal como Surdo feita num processo de afirmação positiva da diferença, aquilo que alguns designam de «Deaf Pride» («Orgulho Surdo»). Ora este, na nossa opinião, pode tornar-se perigoso se representar um auto-fechamento numa comunidade surda, cristalizando-a e não assumindo um diálogo intercultural com ouvintes e com Surdos de diferentes grupos étnico-culturais e sociais que se tornaria enriquecedor para todos.

Esse projecto passa então, pela defesa de um parentesco cultural que levaria a que os marcadores culturais Surdos fossem mais fortes relativamente a outro tipo de diferenças e diversidades geográficas, étnicas, de género, sociais… Isso assentaria na existência de uma comunidade de Surdos de referência com a qual se teria uma maior filiação do que, por exemplo, com a família biológica ouvinte.

Esta situação e a predominância de casamentos endogâmicos facilitariam a construção, utilização e desenvolvimento de uma Língua comum, a Língua Gestual.

No entanto, sobre este assunto, emergem-nos algumas questões que se prendem com a forma como construir uma identidade de Surdo sabendo que, entre outros aspectos:

  • 95% dos Surdos são filhos de ouvintes;
  • existem diferentes formas de encarar a surdez por ouvintes e Surdos;
  • a sociedade é maioritariamente ouvinte;
  • o diagnóstico da surdez é efectuado muito tardiamente;
  • o atendimento aos Surdos raramente é precoce e é muito disperso;
  • grande parte dos profissionais que trabalham com Surdos não é competente em Língua Gestual.

 Assim, a construção identitária como Surdo pode ser muito tardia e até mitigada, nomeadamente pela interferência dos pais ouvintes. Nesse contexto, assume uma enorme importância o espaço da educação escolar, aos seus diferentes níveis.

Para além da aquisição de saberes e ferramentas básicas com predominância para a leitura e escrita, a escola tem um forte impacto na socialização de pares. Neste caso, se existirem grupos fortes de Surdos de várias idades que potencializem uma comunidade de experiência, será importante não somente para a aquisição mais natural da Língua Gestual, como para a construção identitária.

Segundo Góes (1996: 20), «para os jovens Surdos, a escola é menos um local de actividades para a incorporação de conhecimentos académicos e mais um ponto de encontro, uma oportunidade de contacto com outros Surdos».

No entanto, isso pode ser prejudicado pela eterna discussão sobre as melhores respostas educativas para Surdos, ou seja entre a integração plena e a parcial, as turmas de Surdos e as escolas especiais. Nos últimos anos, em Portugal, começa a ser assumido pelos responsáveis a importância e o conceito de educação bilingue para Surdos.

2. Educação bilingue de Surdos

Neste contexto, importa relembrar o que se entende por bilingue, ou seja, «considera-se bilingue a quem produz enunciados significativos em duas línguas, mostrando capacidade de uso em pelo menos uma das esferas de funcionamento linguístico – ler, escrever, falar ou compreender. Nessa redefinição, é assumido que não se deve configurar o funcionamento bilingue como mera soma de funcionamentos monolingues» (Góes, 1996: 13).

Isso implica, evidentemente, uma proficiência nas duas línguas que só pode existir se houver um processo normal de aquisição da primeira língua. No caso dos Surdos é assumido que essa 1ª Língua é a Língua Gestual Portuguesa sendo a Língua Portuguesa, na sua forma escrita, a 2ª Língua. Isto traz consequências enormes para o desenvolvimento da linguagem e do currículo tornando difícil, por exemplo, a situação de integração escolar plena em turmas de ouvintes.

Ora, isto coloca-nos várias questões:

  • Se a Língua Gestual é para a criança Surda a língua de aquisição natural, como fazer isso em contextos de famílias ouvintes? Que políticas de apoio à família dos Surdos?
  • Como favorecer a interacção entre pares Surdos de modo a facilitar a aquisição da LGP como 1ª Língua?
  • Como adquirir consciência linguística sobre a Língua Gestual havendo tão poucos estudos sobre ela?
  • Que metodologias usar para a aprendizagem da Língua Portuguesa como 2ª Língua na medida em que ela será o interface com a comunidade ouvinte?
  • Como estabelecer a relação entre as duas Línguas com características tão diferentes?

De referir, ainda, que consideramos o bilinguismo indissociável de um verdadeiro Bilinguismo cultural, ou seja, da capacidade «de se mover na cultura dominante e utilizar os mesmos instrumentos, facto que poderá contribuir para que a pessoa em formação possa (sobre)viver nessa sociedade, sem que isso implique o esmagamento e/ou desvalorização e esquecimento da sua cultura de origem» (Cortesão, 2003: 62). Isso deve conduzir à emergência de uma «voz» autónoma, distinta do ouvinte que passa pelas «narrações surdas» das suas próprias experiências, por produções artísticas e culturais específicas (teatro, dança, poesia, música, pintura…).

Noutros contextos (Afonso, 2004, 2007) defendemos que isso implica, ainda, reflectir sobre as possibilidade de construção de um currículo contra-hegemónico na educação de Surdos que rompa com a concepção e as práticas de um currículo hegemónico e homogéneo em que se concebe que se pode «ensinar a todos como se fossem um só». Com efeito, a inserção escolar dos Surdos faz-se, geralmente, por referência a um currículo hegemónico, pretensamente imutável, pelo que as alterações propostas se situam basicamente nas condições de acesso ao currículo utilizando, eventualmente, a LGP como ferramenta de ensino e não na efectiva construção de um novo currículo que, tendo em conta a especificidade dos Surdos não se transforme num factor de exclusão, mas de diferenciação positiva.

Para esta abordagem interessa também situar o contexto português e nele especificamente destacar a nova legislação da Educação Especial recentemente publicada (Decreto-lei nº 3/ 2008) 1. No que respeita à educação de Surdos substitui o Despacho normativo nº 7520/98 e assenta, essencialmente, na criação de uma rede de agrupamentos de escolas/ escolas secundárias de ensino bilingue para alunos Surdos, a ser definida por despacho ministerial. Constitui-se, assim, uma resposta educativa especializada para crianças e jovens Surdos que passa pela sua concentração em grupos/turmas de alunos Surdos tendo como objectivo principal aplicar metodologias e estratégias de intervenção interdisciplinares que sejam adequadas às suas características e permitam o seu desenvolvimento linguístico e social. Assume -se, deste modo, que a educação dos Surdos «deve ser feita em ambientes bilingues que possibilitem o domínio da LGP, o domínio do português escrito e, eventualmente, falado, competindo à escola contribuir para o crescimento linguístico dos alunos surdos, para a adequação do processo de acesso ao currículo e para a inclusão escolar e social» (artigo 23º, ponto 1).

Estas escolas têm, pois, como objectivos, de acordo com o artigo 23º (ponto 25):

  1. Assegurar o desenvolvimento da LGP como primeira língua dos alunos surdos;
  2. Assegurar o desenvolvimento da língua portuguesa escrita como segunda língua dos alunos surdos;
  3. Assegurar às crianças e jovens surdos, os apoios ao nível da terapia da fala, do apoio pedagógico e do reforço das aprendizagens, dos equipamentos e materiais específicos bem como de outros apoios que devam beneficiar;
  4. Organizar e apoiar os processos de transição entre os diferentes níveis de educação e de ensino;
  5. Organizar e apoiar os processos de transição para a vida pós-escolar;
  6. Criar espaços de reflexão e partilha de conhecimentos e experiências numa perspectiva transdisciplinar de desenvolvimento de trabalho cooperativo entre profissionais com diferentes formações que desempenham as suas funções com os alunos surdos;
  7. Programar e desenvolver acções de formação em LGP para a comunidade escolar e para os familiares dos alunos surdos;
  8. Colaborar e desenvolver com as associações de pais e com as associações de surdos acções de diferentes âmbitos, visando a interacção entre a comunidade surda e a comunidade ouvinte.

 A concentração de alunos Surdos, defendida neste diploma, não abrange somente a sua colocação no mesmo espaço escolar, mas também que o seu percurso, quer ao nível do pré-escolar quer dos ensinos básico e secundário seja feita em grupos e turmas de alunos Surdos, de modo a ser possível desenvolver a Língua Gestual como 1ª Língua e aceder ao currículo nesta Língua, sem prejuízo da sua participação com os alunos ouvintes em actividades de expressão (lúdicas e culturais) desenvolvidas com turmas de ouvintes ou na comunidade escolar.

Esta resposta educativa pode, até em certos aspectos, considerar-se como discordante das orientações gerais consignadas na Declaração de Salamanca. Apesar desta perspectiva não ser totalmente nova na medida em que surge na sequência do já referido despacho normativo nº 7520/98, o que é facto é que a sua concretização prática está, ainda, muito distante.

Com efeito, não se encontra definitivamente clarificada a futura rede de escolas bilingues e sobre ela não foram, tanto quanto sabemos, ouvidos representantes de professores e pais de alunos Surdos. Em muitos casos, a cumprir-se o que consta de algumas propostas, isso implicará grandes alterações nas deslocações de alunos podendo passar, inclusivamente, pela necessidade de um regime de semi-internato. Será que se têm em conta as consequências negativas de tal situação que foram um dos baluartes da luta pela integração de alunos nas escolas do seu meio familiar?

Por outro lado, apesar de se assinalar que «as respostas educativas devem ser flexíveis, assumindo carácter individual e dinâmico, e pressupõem uma avaliação sistemática do processo de ensino e de aprendizagem do aluno surdo, bem como o envolvimento e a participação da família» (artigo 23º, ponto 10), não está explícito o tipo de apoio que possa ser prestado a alunos cuja opção educativa por parte dos pais não seja bilingue. Encontram-se nesta situação, por exemplo, os alunos com implante coclear.

É, ainda, de realçar que, mercê das alterações na forma de colocação de docentes na educação especial (criação de grupos de recrutamento específicos) e no desaparecimento das Equipas de Coordenação dos Apoios Educativos (ECAE) gerou-se uma indefinição sobre a continuidade das Unidades de Apoio a Surdos (UAS) que delas dependiam. Assim, alguma evolução que tinha sido conseguida com a sua criação foi-se perdendo e os docentes e outros profissionais foram novamente dispersos pelos diferentes agrupamentos de escolas.

Esta situação é reflexo do não consenso generalizado sobre as melhores respostas educativas e curriculares para a educação de Surdos e, nomeadamente, para a sua transformação. Tivemos oportunidade de verificar isso mesmo nas entrevistas que realizamos aquando da Tese de Doutoramento (Afonso, 2004). Os entrevistados tiveram alguma facilidade em apontar erros e necessidades do presente, mas quando confrontados com as eventuais alterações ficaram limitados às reivindicações de mais recursos e não conseguiram ver um novo enquadramento para a educação de Surdos.

Assim, os entrevistados pareciam defender mais ou menos claramente a presença dos Surdos nas escolas regulares, mas pouco mexeriam na essência destas escolas ou, quando muito, introduziam-lhe alguns aspectos que fazem parte do discurso instituído da Educação Especial. Dessa forma, pensamos que o discurso ainda não ultrapassou uma etapa de contestação, eventualmente por colagem ao «grito» de auto-determinação dos Surdos. Esta situação faz-nos pensar que a possibilidade de emergência de um «currículo contra-hegemónico» (Connell, 1999) ainda não é uma necessidade sentida e nem sequer se coloca ao nível do seu discurso que, curiosamente, parece preocupar-se com o cumprimento, por parte dos Surdos, de um currículo hegemónico de uniformização dos ouvintes, mas com o recurso à Língua Gestual. É quase como se a luta dos Surdos na educação escolar se resumisse a provar que também são capazes de atingir os mesmos patamares dos ouvintes, desde que lhes seja permitido usar uma outra Língua. Ora, esta atitude não é crítica relativamente ao próprio currículo e à forma como ele se torna «daltónico» à diferença.

A acrescentar a esta situação verificam-se lacunas na formação de professores especializados na área da surdez nomeadamente ao nível das suas competências em Língua Gestual Portuguesa.

3. Profissionais para a Educação bilingue de Surdos

A nova legislação para a educação especial (Decreto-lei nº 3/ 2008) apresenta, neste campo, algumas novidades embora nos pareça que a proposta de lei que se encontrava em discussão pública no momento em que participamos no CIEB fosse mais inovadora e de uma ruptura consequente.

Assim, o Decreto-lei nº 3/ 2008 considera no seu artigo 23º (ponto 5) que os agrupamentos de escolas/escola da rede de escolas de ensino bilingue para alunos Surdos integram:

  1. Docentes com formação especializada em educação especial, na área da surdez, competentes em LGP (docentes surdos e ouvintes dos vários níveis de educação e ensino), com formação e experiência no ensino bilingue de alunos surdos;
  2. Docentes surdos de LGP;
  3. Intérpretes de LGP;
  4. Terapeutas da fala

 Verificamos, aqui, pela primeira vez, em discurso oficial e legislativo, a referência explícita a docentes Surdos na senda do que vimos a defender há algum tempo. Faz-se, igualmente, a distinção entre docentes Surdos dos vários níveis de ensino e docentes Surdos de Língua Gestual Portuguesa.

A necessidade dessa distinção torna-se mais clara quando no ponto 14 do mesmo artigo 23º é referido que a docência dos grupos ou turmas de alunos surdos seria assegurada por «docentes surdos ou ouvintes com habilitação profissional para leccionar aqueles níveis de educação e ensino, competentes em LGP e com formação e experiência no ensino bilingue de alunos surdos».

Assim, há uma redefinição de papéis eliminando-se o tradicional professor de ensino regular e remetendo as suas funções de leccionação das áreas curriculares para o professor especializado em surdez que assegura, assim, a turma/grupo. Há, aqui, uma recentração deste docente novamente na sua área de formação inicial, o que não acontece neste momento, e a sua colocação no eixo da acção educativa, dentro da sala de aula. É uma alteração muito grande relativamente ao que acontece, por exemplo, no apoio à deficiência mental ou visual, o que realça mais uma vez a especificidade da Educação de Surdos.

Esta proposta vai ao encontro de muitas opiniões que questionavam a necessidade de uma formação adequada dos professores que trabalham com Surdos advogando, inclusivamente, que deveria existir uma selecção a priori daqueles que poderiam ser chamados a essas tarefas. Ora, esta questão fica ultrapassada na medida em que sendo agora a Língua Gestual assumida como primeira língua estes professores não teriam formação adequada para tal. Parece, assim, terminar-se com as turmas de integração de alunos ouvintes e Surdos. Se, por um lado, isto pode representar um factor positivo, por outro, pode estreitar, em nome de uma suposta melhor preparação, a abertura de toda a escola às pessoas com surdez remetendo-os de novo para um gueto.

Uma outra novidade deste diploma é que, assumindo-se que o currículo deve ser leccionado em Língua Gestual, o professor ouvinte pode transformar-se, essencialmente, em professor de Língua Portuguesa, ou seja, da 2ª Língua, sendo a restante aprendizagem assegurada por um docente surdo.

Compreendemos que, face à situação actual, o diploma estabeleça que na ausência de um docente surdo habilitado se recorra a um formador/docente surdo de LGP, mas não concordamos com a sua eternização.

No actual contexto, esse formador é, ainda, visto, em muitas situações, apenas como um «auxiliar do professor ouvinte» tendo como função ser um modelo linguístico e cultural. Ora, o caminho que agora se abre é de que seja o docente Surdo o titular da turma, pois pode leccionar todas as áreas curriculares do nível de ensino para o qual está habilitado 2.

Perante esta situação confrontamo-nos com uma nova profissionalidade docente que exige um novo processo de formação, dado que os actuais formadores de LGP não a têm e não é legitimo esperar que sejam transpostos para novas funções sem que ela lhes seja dada. Isso implica pensar-se no seu enquadramento profissional antecipando a resolução de alguns problemas que eventualmente irão surgir ao nível de concursos, colocação nas escolas, lugares de quadro, etc. Não se pode, por conseguinte, esquecer que a formação de docentes Surdos é, deste modo, uma necessidade urgente para a construção de uma Educação bilingue para Surdos sob pena de se manterem os actuais pressupostos.

Essa formação deve, por conseguinte, conduzir à construção de um perfil profissional docente à semelhança do que acontece com os ouvintes e com hipótese de acessos a várias áreas curriculares e níveis de ensino.

Isso irá repercutir-se, também, como um desafio às escolas que actualmente formam docentes já que deve ser nelas que este processo é desenvolvido. Acontece, porém, que a formação de pessoas com necessidades educativas especiais e nomeadamente, surdas não é habitual o que acarreta constrangimentos e dificuldades devido à falta de experiência da comunidade educativa (docentes, alunos, funcionários). Perceber o funcionamento destes jovens ou adultos Surdos, por vezes, não é fácil quando não se tem formação específica para tal, pois determinados comportamentos podem ser facilmente mal interpretados.

Por outro lado, sendo a profissão docente exigente quanto ao domínio da língua portuguesa (oral e escrita) é difícil alguns entenderem como um formando que tem lacunas nesta área, por não ser a sua primeira língua, pode querer aceder a esta profissão. Importava, portanto, que estivesse muito bem definido qual o perfil profissional destes docentes e a tipologia de alunos com quem vão trabalhar.

Outro constrangimento deriva da falta de recursos próprios de apoio, nomeadamente de intérpretes de Língua Gestual, tornando-se difícil às instituições de formação suportar esses gastos.

Ao nível do percurso formativo existem também indefinições. Face à actual legislação (Decreto-lei nº 43/2007), para se ser professor tem que se frequentar dois ciclos de estudos. O primeiro correspondente a uma Licenciatura em Educação Básica e um segundo ciclo de profissionalização numa área específica correspondendo à educação pré-escolar, 1º ciclo e 2º ciclo generalista ou específico.

Ora, como deve ser o percurso destes candidatos a docentes Surdos? Não se trata de uma formação especializada na medida em que a sua tarefa será de leccionação das diferentes áreas curriculares de uma turma, mas por outro lado, onde fica a formação epecífica que habilite para conhecer o funcionamento e trabalhar com Surdos? Será que terão de fazer um percurso em três patamares: Licenciatura em Educação Básica + mestrado profissionalizante num nível de ensino + especialização?

Atrevemo-nos a considerar a necessidade da definição por parte dos responsáveis ministeriais de um percurso que passasse por um mestrado profissionalizante em educação bilingue de Surdos após a Licenciatura em Educação Básica.

É preciso, também, ter em conta que deve haver alterações nas lógicas de formação de docentes de modo a que seja possível (a nível de formandos e formadores) romper com um olhar «daltónico» perante a diferença e com uma visão médico-pedagógica que concebe o surdo como um deficiente. Só assim, ele como aluno de uma escola de formação e como futuro docente pode ser encarado de forma positiva.

Em síntese, podemos considerar que a educação bilingue de Surdos implica, no contexto actual, novas etapas de desenvolvimento que ultrapassam os muros da escola básica para exigirem novos desafios à sociedade, nomeadamente às escolas de ensino superior que formam docentes.

Nesse contexto, a formação científica e pedagógica de Surdos como docentes é uma necessidade urgente que deve suscitar amplos debates e respostas adequadas na certeza de que o contributo das escolas de formação representa para elas mesmas uma mais-valia.

Notas

1 Na altura do CIEB esta legislação encontrava-se ainda em discussão pública.
2 Esta perspectiva aparecia muito mais explicitamente definida na proposta de lei que estava em discussão tendo a versão final ficado menos clara

Bibliografia

Afonso, Carlos (2004). «Dos Discursos e das Possibilidades de Construção de um Currículo Contra-hegemónico na Educação de Surdos». Tese de Doutoramento em Ciências da Educação. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto (não publicado)

Afonso, Carlos (2006). Surdez: factor de exclusão social? In Actas do Encontro de Intervenção Social: saberes e contextos. Porto: ESE de Paula Frassinetti, pp. 19-26

Afonso, Carlos (2007). «Currículo Contra-hegemónico na Educação de Surdos – síntese de um estudo». Investigação em Educação Inclusiva (vol. 2). Lisboa: FEEI

Connell, Robert W. (1999). Escuelas y justicia social. Madrid: Ed. Morata

Cortesão, Luiza (2003). «Cruzando conceitos», in David Rodrigues (org). Perspectivas sobre a inclusão. Da educação à sociedade. Porto: Porto Editora, 57-72

Góes, Maria Cecília (1996). Linguagem, surdez e educação. Campinas: Editora Autores associados

Skliar, Carlos (org) (2001). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação

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