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Ronice Müller de Quadros
Ronice Müller de Quadros
Professora e Investigadora
Educação de surdos: efeitos de modalidade e práticas pedagógicas
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Publicado em 2004
In: Mendes, E. G.; Almeida, M. A.; Williams, L. C. de A. (Org.). Temas em educação especial IV. São Carlos: EdUFSCar, p. 55-61
Ronice Müller de Quadros
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Resumo

Ao longo dos anos do meu trabalho, tenho percebido que os insights teóricos nas áreas da educação e da lingüística em relação à educação de surdos se traduzem em práticas de ensino nas conversas que tenho com os professores e instrutores de língua de sinais. Assim, este texto apresenta uma característica diferenciada das demais produções que tenho feito, ele enfatizará exatamente estas práticas que temos pensado a partir das reflexões sobre a educação de surdos dentro e fora da sala de aula numa perspectiva bilíngüe.

Os percursos para se pensar em práticas pedagógicas educacionais bilíngües

Breve histórico

Como a língua de sinais é uma das experiências visuais mais intimamente ligadas à identificação dos grupos surdos, sempre foi e ainda é alvo de manifestação de tensão entre os grupos envolvidos manifestando a delimitação de fronteiras. Historicamente vemos que a educação de surdos esteve voltada para as questões lingüísticas. No caso do Brasil, a educação de surdos está permeada pela discussão do ensino do português (oral e/ou escrito) e o uso da língua de sinais. Obviamente que tais discussões estão contextualizadas política, cultural e socialmente.

A educação de surdos imprime visões do oralismo, da comunicação total, do bilingüismo. Oralismo no sentido clínico-terapêutico para tratar a falta de audição dos surdos e fazê- los falar trazendo como conseqüência a proibição da língua de sinais e a tentativa de desintegração do Ser Surdo. Comunicação total no sentido da instauração da ‘nova ordem’ diante do fracasso do oralismo e juntamente como o movimento na área dos estudos da linguagem com foco na ênfase da comunicação: o importante é comunicar seja lá como for. Bilingüismo como uma quebra de paradigma rompendo com o clínico-terapêutico e abrindo um campo com enfoque social, cultural, político. A partir do bilingüismo se retomou a discussão da “educação” na educação de surdos.

No entanto, há várias experiências de educação bilíngüe 2 que continuam reproduzindo um modelo de reparação e de tratamento da pessoa surda (Quadros, 1997; Skliar 1997, 1998). A língua de sinais é utilizada como meio para ensinar a língua portuguesa e não enquanto razão que se justifica por si só: direito da pessoa surda de usar a sua língua, uma língua que traduz a experiência visual. As representações descritas anteriormente que tratam a língua enquanto um sistema mais rudimentar chamado de “gestos” faz parte de várias experiências educacionais. Perpassam assim, todos os estereótipos mencionados, utilizando a língua visualespacial apenas como um recurso a mais, mas jamais a reconhecendo em sua completude lingüística.

Interessante observar que nas experiências mais avançadas relatadas pelas escolas que atendem surdos, a resistência que ainda persiste em relação à língua de sinais está relacionada com a interação científica. Os profissionais não acreditam que através da língua de sinais seja, de fato, possível discutir os avanços científicos e tecnológicos que cabem a escola trabalhar. Assim, delega-se à escrita o papel de assumir tal função. Mais uma vez, perpassa-se a sobreposição do português (língua da maioria) à língua de sinais, como aconteceu ao longo da história da educação de surdos (ver Fischer e Lane, 1993). No entanto, essa situação reflete muito mais uma realidade relacionada com o ensino da língua portuguesa no ensino regular que não deixa de ser fracassado da mesma forma, observando-se, é claro, suas peculiaridades. O ensino da língua portuguesa enquanto língua materna atravessa um momento de
crise, porque se está percebendo que a ênfase dada à escrita é total, negligenciando-se o papel fundamental da língua falada e da própria leitura (Cagliari, 1997; Bagno, 1997). Passam-se anos e anos ensinando-se normas para se escrever bem, mas não se fala da língua, sobre a língua e de todas as possibilidades que a língua apresenta na vida das pessoas. Não se instiga o aluno a manipular a língua enquanto instrumento de saber-poder das relações sociais. Como a educação de surdos prioriza da mesma forma o ensino da escrita utilizando todas as propostas de ensino do português da educação regular, obviamente o fracasso também é observado. Agrava-se o fracasso dos alunos surdos, tendo em vista que essa escrita nem sequer relaciona-se com a língua de sinais, mas sim com uma língua que a ele é estranha (situação comumente observada especialmente em classes regulares de ensino).

Ao longo da história da educação de surdos no Brasil sempre houve uma preocupação exacerbada com o desenvolvimento da linguagem. Essa preocupação, não menos importante que quaisquer outras na área da educação, tornou-se quase que exclusiva, perdendo-se de vista o processo educacional integral da criança surda. Há várias razões para tal fato, dentre elas, o fato das crianças serem surdas tornava fundamental a discussão sobre o processo de aquisição da linguagem, tendo em vista que tal processo era traduzido por línguas orais-auditivas. As crianças surdas dotadas das capacidades mentais precisavam recuperar o desenvolvimento da linguagem e por essa razão, até os dias de hoje, há pesquisas que procuram um meio de garantir o desenvolvimento da linguagem em crianças surdas através de métodos de oralização. “Fazer o surdo falar e ler os lábios permitirá o acesso à linguagem”, frase repetida ao longo da história e que tem garantido o desenvolvimento de técnicas e metodologia altamente especializadas 3.

Entretanto, apesar de todo esse empenho, os resultados que advém de tal esforço foram drásticos. A maior parte dos adultos surdos brasileiros demonstram o fracasso das inúmeras tentativas de se garantir linguagem através da língua oral-auditiva do país, a língua portuguesa. Todos os profissionais envolvidos na educação de surdos que conhecem surdos adultos admitem o fracasso do ensino da língua portuguesa, não somente enquanto língua usada para a expressão escrita, mas, principalmente, enquanto língua que permite o desenvolvimento da linguagem.

Muitos desses adultos surdos buscam inconscientemente “salvar/resgatar” o seu processo de aquisição da linguagem através da língua brasileira de sinais - língua de sinais brasileira. A raça humana privilegia tanto a questão da linguagem, isto é, a linguagem é tão essencial ao ser humano que, apesar de todos os empecilhos que possam surgir para o estabelecimento de relações através dela, os seres humanos buscam formas de satisfazer tal natureza. Os adolescentes, os adultos surdos, logo quando se tornam mais independentes da escola e da família, buscam relações com outros surdos através da língua de sinais. No Brasil, as associações de surdos brasileiras foram sendo criadas e tornando-se espaço de “bate-papo” e lazer em sinais para os surdos, enquanto as escolas especiais “oralizavam” ou as escolas “integravam” crianças surdas nas escolas regulares de ensino. Percebe-se, aqui, um movimento de resistência por parte dos surdos a um processo social, político e lingüístico que privilegiou o parâmetro do normal. Os surdos buscam através da língua a constituição da subjetividade com identidade surda em que o reconhecimento da própria imagem acontece através das relações sociais entre surdos determinando a significação do próprio eu. Portanto, a aquisição da linguagem é fundamental para que o sujeito surdo possa reescrever-se através da interação social, cultural política e científica.

Do reconhecimento do status da língua de sinais aos estudos da aquisição da linguagem

As pesquisas sobre a aquisição da linguagem avançaram muito a partir dos anos 60. Os estudos envolvendo a análise do processo de aquisição de várias crianças começaram a indicar a universalidade desse processo (Fletcher & Garman, 1986; Ingram, 1989; Slobin, 1986). O estudo da Língua de Sinais Americana - ASL - começou exatamente neste mesmo período através de uma descrição realizada por Willian Stokoe, publicada em 1965 pela primeira vez (Stokoe et alli, 1976). Esse trabalho representou uma revolução social e lingüística. A partir dessa obra, várias outras pesquisas foram publicadas apresentando perspectivas completamente diferentes do estatuto das línguas de sinais (Bellugi & Klima, 1972; Siple, 1978; Lillo-Martin, 1986) culminando no seu reconhecimento lingüístico nas investigações da Teoria da Gramática com Chomsky (1995:434, nota 4) ao observar que o termo “articulatório” não se restringe a modalidade das línguas faladas, mas expressa uma forma geral da linguagem ser representada no nível de interface articulatórioperceptual incluindo, portanto, as línguas sinalizadas.

Quase que em paralelo a esses estudos, iniciaram-se as pesquisas sobre o processo de aquisição da linguagem em crianças surdas filhas de pais surdos (Meier, 1980; Loew, 1984; Lillo-Martin, 1986; Petitto, 1987). Essas crianças apresentam o privilégio de terem acesso a uma língua de sinais em iguais condições ao acesso que as crianças ouvintes têm a uma língua oral-auditiva 4. No Brasil, a língua de sinais brasileira começou a ser investigada na década de 80 (Ferreira-Brito, 1986) e a aquisição da língua de sinais brasileira nos anos 90 (Karnopp, 1994; Quadros, 1995) 5.

Todos esses estudos concluíram que o processo das crianças surdas adquirindo língua de sinais ocorre em período análogo à aquisição da linguagem em crianças adquirindo uma língua oral-auditiva. Assim sendo, mais uma vez, os estudos de aquisição da linguagem indicam universais lingüísticos. O fato do processo ser concretizado através de línguas visuais-espaciais, garantindo que a faculdade da linguagem se desenvolva em crianças surdas, exige uma mudança nas formas como esse processo vem sendo tratado na educação de surdos.

A aquisição da linguagem em crianças surdas deve acontecer através de uma língua visual-espacial. No caso do Brasil, através da língua de sinais brasileira. Isso independe de propostas pedagógicas (desenvolvimento da cidadania, alfabetização, aquisição do português, aquisiç ão de conhecimentos, etc.), pois é algo que deve ser pressuposto. Diante do fato das crianças surdas virem para a escola sem uma língua adquirida, a escola precisa estar atenta a programas que garantam o acesso à língua de sinais brasileira mediante a interação social e cultural com pessoas surdas. O processo educacional ocorre mediante interação lingüística e deve ocorrer, portanto, na língua de sinais brasileira. Se a criança chega na escola sem linguagem, é fundamental que o trabalho seja direcionado para a retomada do processo de aquisição da linguagem através de uma língua visual-espacial 6. Digo que a aquisição da linguagem é essencial, pois através dela, mediante as relações sociais, se constituirá os modos de ser e de agir, ou seja, a constituição do sujeito. Como mencionado por Góes (2000:31), a produção de significados em relação ao mundo da cultura e a si próprio é um processo necessariamente mediado pelo outro, é efeito das relações sociais vivenciadas (...) através da linguagem.

Nesse sentido, o currículo deveria estar organizado partindo de uma perspectiva visual-espacial para garantir o acesso a todos os conteúdos escolares na própria língua da criança, pois a língua oficial da escola precisaria ser, desde o princípio, a língua de sinais brasileira. É a proposição da inversão, assim está-se reconhecendo a diferença. A base de todo processo educacional é consolidada através das interações sociais. A língua passa a ser, então, o instrumento que traduz todas as relações e intenções do processo. Os discursos em uma determinada língua serão organizados e, também, determinados pela língua utilizada como a língua de instrução. Ao expressar um pensamento em língua de sinais, o discurso utilizado na língua de sinais utiliza uma dimensão visual que não é captada por uma língua oral-auditiva, e, da mesma forma, o oposto é verdadeiro. Além desse nível de representação lingüística, os discursos vão expressar relações de poder. Ao optar-se em manter a língua portuguesa como a língua referencial da educação de surdos, já se tem indício das intenções perpassadas em função dos efeitos sociais que se observam. Assim, prestar atenção nos interlocutores dos alunos surdos, também passa a apresentar papel crucial, pois os discursos reproduzidos nas línguas utilizadas representam as relações existentes na escola.

Na linha de análise da Góes (2000), é interessante mencionar a problematização a respeito da constituição da subjetividade/identidade surda ao analisar os casos de alunos surdos adquirindo a língua de sinais com pessoas ouvintes (casos típicos em escolas especiais e escolas regulares onde há uma preocupação com a língua de sinais). A autora aponta que esse processo é constituído de forma cruzada, híbrida, em que a língua de sinais é misturada com o português.

(...) Os interlocutores ouvintes apresentam grande heterogeneidade na capacidade de usar a língua de sinais, mas geralmente constroem, nos diálogos, formas híbridas de linguagem, compostas de elementos das duas línguas, em enunciados subordinados às regras da língua majoritária, além de se apoiarem em vários recursos gestuais. Ocorre, então, uma certa diluição dos sinais numa gestalt de realizações lingüísticas, que interfere na aquisição em processo e na compreensão de que se trata de uma língua, distinta da língua oral. (Góes, 2000:41-42)

Assim sendo, a atenção ao processo de aquisição da linguagem requer também a observância dos interlocutores que a criança surda terá ao interagir na língua de sinais.

Letramento

Quando se reflete sobre a língua que a cria nça surda usa, a língua de sinais brasileira, e o contexto escolar, também se pensa em letramento 7. As crianças surdas têm sido alfabetizadas através de um processo similar às crianças ouvintes que dispõem do português como língua materna. Os professores desconhecem a experiência visual surda e suas formas de pensamento que são expressas através de uma língua visual-espacial: a língua de sinais. Vimos até aqui que as crianças surdas adquirem a linguagem passando pelos mesmos processos observados na aquisição de crianças ouvintes adquirindo uma língua falada. Em relação à aquisição da leitura e escrita, as crianças passam pelos diferentes níveis desse processo mediante interação com a escrita construindo hipóteses e estabelecendo relações de significação que parecem ser comuns a todas as crianças (Ferreiro e Teberosky, 1985). Esse mesmo processo deve acontecer com as crianças surdas. Entretanto, as crianças surdas devem estabelecer visualmente relações de significação com a escrita.

Considerando a escrita de sinais, forma escrita que é formada por unidades que correspondem às configurações de mão, os movimentos e as expressões faciais gramaticais em diferentes pontos de articulação que formam palavras mediante algumas combinações, o processo de letramento vai se desenvolver em crianças surdas mediante a interação com a escrita da língua de sinais, ou seja, com grafemas, com sílabas e com palavras que representam diretamente a língua de sinais brasileira. No entanto, essa escrita não é alfabética, mas ideográfica. Assim, a criança surda não precisará chegar no nível alfabético para ser considerada alfabetizada. Pesquisas que analisam a aquisição de uma segunda língua escrita alfabética em alunos alfabetizados em uma escrita ideográfica teriam que ser consideradas em estudos futuros em relação ao processo de alfabetização de surdos no português.

A partir dos vários estudos sobre o estatuto de diferentes línguas de sinais e seu processo de aquisição, muitos autores passaram a investigar o processo de aquisição por alunos surdos de uma língua escrita que representa a modalidade oral-auditiva (Andersson, 1994; Ahlgren, 1994; Ferreira-Brito, 1993; Berent, 1996; Quadros, 1997; entre outros). A aquisição do sueco, do inglês, do espanhol, do português por alunos surdos é analisada como a aquisição de uma segunda língua. Esses educadores e pesquisadores pressupõem a aquisição da língua de sinais como aquisição da primeira língua e propõem a aquisição da escrita da língua oral-auditiva como aquisição de uma segunda língua. O impacto disso é muito mais significativo do que se imagina. O fato de a língua falada passar a ter uma representação secundária representa também uma inversão. Nesse sentido, capta-se uma das diferença essenciais do ser surdo.

Implicações lingüísticas na educação de surdos

As implicações do reconhecimento do direito lingüístico dos surdos de terem acesso à sua língua são pelo menos as seguintes:

  1. a aquisição da linguagem;
  2. a língua enquanto meio e fim da interação social, cultural, política e científica;
  3. a língua como parte da constituição do sujeito, a significação de si e o reconhecimento da própria imagem diante das relações sociais (no sentido de Vygotsky, 1978);
  4. a língua enquanto instrumento formal de ensino da língua nativa (ou seja, alfabetização, disciplinas de língua de sinais como parte do currículo da formação de pessoas surdas);
  5. a língua portuguesa como uma segunda língua (alfabetização e letramento)

Uma proposta educacional para surdos deve considerar, entre outras questões fundamentais, essas implicações lingüísticas. Considerando o contexto de inclusão em escolas regulares de ensino, surge uma série de problemas na educação de surdos. O primeiro grande entrave é a questão da linguagem: como a escola regular vai garantir o processo de aquisição da linguagem através da língua de sinais brasileira? A partir dessa questão surgem tantas outras... Quem serão os interlocutores das crianças surdas na escola comum? Como a escola vai garantir o acesso aos conhecimentos escolares na língua de sinais brasileira em escolas que utilizam o português como língua oficial?

Como a escola regular de ensino vai garantir ao aluno surdo o seu processo de alfabetização na escrita da língua de sinais brasileira? Como será a ele garantido o acesso ao português com estratégias de ensino baseadas na aquisição de segunda língua?

Os estudos sobre as línguas de sinais trazem a inauguração de um novo olhar sobre o estatuto destas línguas a partir dos efeitos de modalidade: a língua é visualespacial diferentemente de uma língua oral-auditiva. Pensar sobre todos esses aspectos e as suas conseqüências dentro da sala de aula implicam em reestruturação curricular. Depois de discutir tais aspectos com os professores de surdos e instrutores de língua de sinais começamos a pensar nas práticas educativas. Assim, a seguir, vamos estar listando algumas das nossas incursões.

Algumas sugestões de práticas pedagógicas visuais

Alguns dos objetivos a serem considerados ao se propor atividades na educação de surdos envolvem os aspectos culturais, aspectos específicos da organização da língua de sinais brasileira essencialmente visuais e algumas características específicas dos textos escritos na língua portuguesa. A partir disso, considerar-se-ão os seguintes objetivos nas atividades propostas logo a seguir:

  1. Oportunizar a internalização das culturas e identidades surdas através do domínio da língua de sinais brasileira 8.
  2. Propiciar o desenvolvimento da estrutura gramatical da língua de sinais brasileira.
  3. Propiciar o acesso às diferentes funções e usos da língua de sinais brasileira: informal, formal, poético e diferentes tipos de narrativas surdas.
  4. Descobrir a textualidade nas produções em sinais.
  5. Desvendar a textualidade nas produções escritas em português.

I - Aquisição da linguagem e internalização das culturas e identidades surdas com adultos surdos

  • atividades de rotina em sinais
  • brincadeiras e jogos em sinais
  • realização de experiências em sinais
  • hora do conto em sinais
  • passeios
  • atividades diversas com as comunidades surdas locais
  • mini-palestras dadas por outras pessoas surdas das comunidades locais ou de outras comunidades nacionais e internacionais

II - Acesso aos aspectos formais da língua de sinais brasileira de forma implícita (mais tarde, de forma explícita) através de atividades lúdicas. Aspectos a serem explorados (com base em Quadros & Karnopp, 2003):

  • configurações de mãos;
  • alfabeto manual
  • uso de uma mão
  • usos de ambas as mãos com a mesma configuração
  • uso de ambas as mãos com configurações diferentes,
  • uso de movimentos simétricos, uso de movimentos alternados,
  • exploração dos pontos de articulação dentro do espaço de sinalização
  • marcação de plural,
  • de intensidade,
  • de modo,
  • de tempo,
  • de forma,
  • de tamanho,
  • classificadores,
  • incorporação de negação
  • exploração do uso do espaço (organização de objetos e referentes presentes e não-presentes);
  • uso da marcação de concordância nos verbos com concordância
  • uso dos elementos necessários para marcação de concordância com verbos sem concordância (auxiliar, ordem linear, topicalização, foco)
  • uso de estruturas complexas (interrogativas, relativas e condicionais)
  • uso de topicalização
  • uso de estruturas com foco
  • uso de marcação não-manual gramatical para realização de concordância, perguntas QU e sim/não, negação, topicalização e foco
  • Emprego de relações de significado no nível lexical (antonímia, sinonímia, homonímia, polissemia, etc.)
  • Exploração dos aspectos relacionados ao significado da sentença (significado da estrutura, ambigüidade, pressuposições, etc.)
  • Exploração de implicaturas
  • Figuras de linguagem
  • Formas de linguagem de polidez

III – Acesso às diferentes funções e usos da linguagem

  1. Conversação com diferentes pessoas da comunidade com níveis diferenciados de formação
  2. Exploração de jogos dramáticos
  3. Acesso à mini-palestras, à aulas em vídeo, à jornais televisionados, etc.
  4. Exploração de relato de estórias
  5. Hora do conto
  6. Poesias
  7. Momentos de conversa sobre fatos históricos da comunidade surda e da sociedade brasileira

IV – Explorando a arte da língua de sinais

  1. Produzir estórias usando o alfabeto manual
  2. Produzir estórias usando os números
  3. Produzir estórias usando configurações de mãos específicas
  4. Produzir estórias sobre pessoas surdas
  5. Produzir estórias sobre pessoas ouvintes
  6. Produzir estórias com pessoas surdas no mundo dos ouvintes
  7. Produzir estórias com pessoas ouvintes no mundo dos surdos
  8. Relatar estórias, contos e fábulas explorando os jogos de posições do corpo e direção dos olhos para estabelecimento de personagens

Percursos educativos

As proposições apresentadas instigam novos olhares diante das redes que se formam entre os diferentes campos de investigações. Pensar em diferentes formas de ensinar e aprender considerando diferentes formas de pensar, de expressar, de ver o outro, nos redimensiona e nos provoca no sentido de busca e de encontro. Os efeitos de modalidade provocam novos olhares sobre a pedagogia. As línguas de sinais nos contextos em que são usadas pelas pessoas surdas apresentam diferentes vieses de uma possível pedagogia, a pedagogia visual. Podemos brincar, podemos ler, podemos sentir, podemos perceber o mundo, podemos aprender, podemos ensinar através do visual que organiza todos os olhares de forma não auditiva.

Para concluir este trabalho, escolhi as palavras de Miranda (2001) que através da sua experiência visual conseguiu captar brilhantemente a importância das interações entre os surdos enquanto decisivas na construção da subjetividade e identidade dos surdos:

Considerando que a cultura surda mostra uma nostalgia curiosa em relação a uma “comunidade imaginária”e que é barbaramente ou profundamente transformada, senão destruída no contato com a cultura hegemônica, ela age como reguladora da formação da identidade surda, que se reaviva novamente no encontro surdo-surdo. Este encontro é um elemento chave para o modo de produção cultural ou de identidade, pois implica num impacto na “vida interior”, e lembra da centralidade da cultura na construção da subjetividade do sujeito surdo e na construção da identidade como pessoa e como agente pessoal. (Miranda, 2001) 9

Notas

2 Educação bilíngüe implica na utilização de duas línguas em espaços diferentes dentro da escola. Há vários tipos de bilingüismo que não serão considerados aqui em função da presente proposta limitar-se às implicações de forma geral. Cabe ressaltar que todas as discussões sobre educação bilíngüe no mundo estão impregnadas de questões políticas, sociais e culturais (ver Skliar, 1997a, b,c).
3 Note que aqui se percebe claramente o caráter clínico-terapêutico de tais propostas.
4 Privilégio porque representam apenas 5% das crianças surdas, ou seja, 95% das crianças surdas são filhas de pais ouvintes e que, portanto, na maioria dos casos, não dominam uma língua de sinais.
5 Para mais detalhes sobre a aquisição da linguagem por crianças surdas através da ASL e da língua de sinais brasileira ver Quadros (1997).
6 Neste caso, poder-se-ia redefinir o papel do fonoaudiólogo nas instituições que atendem surdos. Não mais como àquele que tem a função de trabalhar com a oralização, mas como àquele que trabalhará com a linguagem e seus distúrbios gerados pelo fato das crianças terem acesso a língua de sinais brasileira tardiamente e , também, com os distúrbios de linguagem comuns às crianças que adquirem uma língua falada só que em sinais (na linha da lingüística clínica, mas com uma língua visualespacial).
7 Usamos letramento na concepção utilizada por Soares (2001:18): letramento é o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita. O termo letramento está relacionado, então, a habilidade em usar diferentes tipos de textos escritos, compreende-los, interpreta-los e extrair informações deles. Por outro lado, o termo clássico “alfabetização” limita-se ao domínio da leitura e escrita e é o termo utilizado para referir à aprendizagem da leitura e escrita na série inicial.
8 Entende-se “identidade” no sentido explicitado por Silva (2000:69): como o conjunto de características que distinguem os diferentes grupos sociais e culturais entre si. No campo dos estudos culturais, a identidade cultural só pose ser entendida como um processo social discursivo. No caso específico dos surdos, entende-se cultura surda como a identidade cultural de um grupo de surdos que se define enquanto grupo diferente de outros grupos. Como diz Perlin (1998:54), os surdos são surdos em relação à experiência visual e longe da experiência auditiva.
9 Grifo meu.

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