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Hugo Manuel Marques Ferreira
Hugo Manuel Marques Ferreira
Engenheiro Informático
A Língua Gestual: Uma forma de Comunicação
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Publicado em 2002
Departamento de Engenharia Informática - Universidade de Coimbra
Hugo Manuel Marques Ferreira
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

Apresenta-se, de forma sintética, a essência da língua gestual, qual a sua história, as suas características e o que ela representa para aqueles que a usam. Este trabalho poderá ser útil a todos aqueles que desconhecem a língua e poderá funcionar como objecto de motivação para um posterior aprofundamento do conhecimento da língua e da cultura daqueles que a usam.

Introdução

Quantos de nós sabem “dizer” uma palavra em língua gestual (LG)? Quantos de nós conseguem comunicar com uma pessoa com dificuldades auditivas? Quantos de nós sabem que existe uma língua própria para falar com essas pessoas?

Hoje em dia muitas pessoas ainda desconhecem esta forma de comunicação. Muitos ainda lhe chamam linguagem e não língua, fazendo-o incorrectamente. A LG é, actualmente, uma língua estabelecida, semelhante a outras, com tempos verbais, com um sistema sintáctico, morfológico e fonológico. Mas nem sempre foi assim. Outrora as pessoas que tinham dificuldades auditivas eram consideradas inferiores e em alguns países, ao abrigo da constituição da altura, não eram vistas como pessoas. Desta realidade surgiu a necessidade de criar uma língua que aproximasse todas as pessoas.

O presente artigo pretende sensibilizar as pessoas para uma “nova” língua e uma nova cultura que emerge cada vez mais à nossa volta. Para tal começo por falar um pouco sobre a história da LG. Seguidamente descrevo a língua em si, para no final falar um pouco sobre aqueles que a usam. Para além de inúmeros VLWHV que fazem referência à LG, existe em Portugal um dicionário sobre a LG que se chama Gestuário da Língua Gestual Portuguesa, do Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência.

Um pouco de história

Todos nós sabemos que na pré-história, o Homem não “nasceu” a falar. Só através da sua evolução e desenvolvimento é que nasceu a língua falada. A língua que, actualmente, grande parte dos Homens pratica.

As primeiras referências à educação dos surdos reportam ao séc. VIII pela mão do Arcebispo de York, mas é a Frei Ponce de Léon (1520-1584), considerado o primeiro professor de surdos, que é confiada a educação de várias crianças surdas da nobreza espanhola. Naquela época os mudos/surdos não eram reconhecidos como pessoas nos termos da lei, e a aprendizagem de uma língua era essencial para que essas crianças pudessem herdar os títulos e as propriedades das suas famílias.

Quarenta anos após a morte de Frei Ponce de Léon, João Pablo Bonet publicou um livro intitulado “Reduccion de las letras y arte para enseñar a hablar los mudos” (1620). Este foi o primeiro livro de ensino da LG (sinais) a surdos e mudos, contendo o alfabeto manual.

João Pablo Bonet dava grande importância à expressão e ao treino oral nos primeiros anos de vida do sujeito, nunca excluindo a comunicação gestual. A primeira intervenção pedagógica consistia em ensinar as letras do alfabeto gestual através da sua forma escrita. Seguidamente era ensinada a pronúncia e articulação das letras para, finalmente, se entrar nas estruturas gramaticais. Neste percurso educativo a incorporação de gestos, de modo a clarificar o sentido das palavras, era muito importante.

Mais tarde, no séc. XVIII, em Paris, é fundada a primeira escola pública para surdos. O seu fundador foi o abade Charles Michel de L’Epée, considerado a figura mais relevante na educação dos surdos. Esta iniciativa surgiu quando lhe foi solicitado o ensino do catolicismo a duas gémeas surdas. O abade compreendeu que era possível a expressão do pensamento através de gestos tão bem como na língua falada. Desta forma começou a aprender e a desenvolver a LG com os seus alunos e foi então criado um sistema generalizado de gestos. Este novo sistema combinava os gestos praticados pelos surdos com a Gramática Gestualizada Francesa. Este sistema permitiu que os surdos lessem e escrevessem francês, possibilitando o acesso dos surdos à instrução.

Mas L’Epée não compreendeu que a LG era uma língua completa, capaz de expressar o mesmo que a língua falada. Ele, por escassez de conhecimentos, reconhecia que a LG era desprovida de gramática. Este equívoco persistiu por sessenta anos até que Ambroise Bébian Roch, discípulo do Abade Sicard, um brilhante gramático que sucedeu L’Epée, reconheceu que a lígua gestual era autónoma e completa.

No mesmo século, na Alemanha, Samuel Heinicke ensinava crianças surdas, criando em 1778 uma escola em Liepzig. A sua metodologia (e a dos seus seguidores) era diferente. Estes consideravam que a primeira prioridade no ensino de crianças surdas era a linguagem falada e que a linguagem gestual podia prejudicar esta aquisição.

A partir deste momento criaram-se dois grandes grupos: aqueles que defendiam a aprendizagem da língua oral, tendo o gesto como suporte (metodologia combinada) e aqueles que privilegiavam o oralismo puro, não permitindo o recurso ao gesto.

Em 1817 surge a primeira escola de surdos nos Estados Unidos, pela mão de Thomas Hopkins Gallaudet, tendo como professor Laurent Clerc que fora ensinado pelo discípulo do Abade L’Epée.

Mais tarde, em 1864, é aprovada uma lei nos Estados Unidos que permite a transformação de um Instituto numa Universidade para surdos. Paralelamente a esta acção, outras escolas foram sendo criadas utilizando os métodos orais de ensino, numa altura em predominavam as escolas onde era ensinada a metodologia combinada.

Novamente nos Estados Unidos os dois grupos entravam em conflito, argumentando cada um, as suas ideias. Dois novos “rivais” surgiam: Edward Miner Gallaudet, defensor do método combinado, e Alexander Graham Bell, defensor da oralidade.

Devido aos vários conflitos existentes na altura, em 1880 no Congresso Internacional de Educadores de Surdos, realizado em Milão, aprovou duas resoluções:

"Considerando a inquestionável superioridade da fala sobre os gestos para o conhecimento mais perfeito da linguagem, o método oral deve ser preferido ao método gestual."

"Considerando que o uso simultâneo dos gestos e da fala têm a desvantagem de ser nocivo à fala, à leitura labial e à precisão das ideias, o método oral deve ser o preferido."

Apesar destas resoluções (levadas a cabo em todos os países europeus), Edward Gallaudet conseguiu restringir a sua aplicação e manteve o ensino do método combinado, formando igualmente professores nesse método, acentuando cada vez mais a rivalidade existente entre os dois métodos de ensino.

Na Europa todos os países se mantiveram fiéis ao oralismo e após a Segunda Guerra Mundial, o progresso da tecnologia deu um novo ímpeto ao oralismo. Foram criados aparelhos com o intuito de melhorar os níveis de audição e de desenvolver as capacidades das pessoas surdas.

Mas, apesar da utilização destes materiais e de métodos inovadores e conceituados do oralismo tais como: o método “materno-reflexivo” de Van Uden e o método “Verbo-tonal” de Guberina, os surdos continuavam a demonstrar fraca aptência e desenvolvimento relativamente aos não-surdos.

Na década de 60 surge o primeiro estudo linguístico sobre a LG efectuado por William Stokoe, Klima e Bellugi. Este estudo visava demonstrar as características que fazem da LG uma língua equivalente à verbal, com uma gramática própria tanto a nível fonético, como a nível fonológico e semântico, contrariando o conceito adquirido no Congresso de Milão, no qual a LG era considerada como sendo pobre, rudimentar e sem estrutura.

A partir deste e de outros estudos, a LG passa a ser considerada a primeira língua dos surdos relegando a oral para segunda língua, surgindo assim a implementação de uma educação bilingue.

Gestos que falam...

Falar da LG é, antes de mais, falar de um tipo de linguagem que não difere muitos das outras formas de linguagem.

Entendendo que qualquer linguagem é uma forma de comunicação que exterioriza todos os nossos conhecimentos, podemos reconhecer que, em princípio, falar por gestos ou por outra forma, será o mesmo, com as dificuldades inerentes a cada processo de comunicação. Com certeza que duas pessoas falantes se conseguem comunicar sem problemas consideráveis. O choque surge quando estes dois grupos decidem falar entre si. Esta comunicação torna-se extremamente difícil sem a presença de um intérprete.

Para comunicar com uma pessoa com dificuldades auditivas existe, para além da língua, um conjunto de posturas que poderão ser úteis na comunicação:

Ser Visível

  • Provoque a atenção da pessoa antes de falar.
  • Mantenha a face bem iluminada, pois facilita a leitura labial.
  • Mantenha-se a uma distância confortável.
  • Conserve a cabeça direita e não se volte enquanto fala.
  • Não esconda a boca com os dedos, cigarros, etc.

Ser Claro

  • Fale com clareza, mas sem GRITAR. Gritar dificulta a leitura labial.
  • Mantenha-se afastado de fontes de ruído.
  • Usar frases simples e curtas.
  • Articular bem os gestos, sem exagerar os movimentos articulatórios, de forma a não os alterar.
  • Não ser estático, pelo contrário ser o mais expressivo possível.
  • Utilizar toda espécie de apoios à linguagem: imagens, esquemas, resumos, dramatizações, quadro negro, caderno, retroprojector, slides, computadores, etc.

Ser Conciso

  • Centre-se no tema de conversa e não divague.
  • Certifique-se de que o tradutor compreende o assunto desde o início da conversa.
  • Não mude de assunto sem avisar.

Ser Paciente

  • Esteja preparado para repetir algumas palavras. Em alguns casos, tente reformular a frase ou alterar alguns vocábulos. Nunca diga “Deixe lá, era pouco importante”. A outra pessoa pode-se sentir humilhada.

A LG é uma verdadeira língua, com um léxico e uma gramática própria, assim como a língua Portuguesa ou outra língua. Existe ainda a ideia de que a LG não existe, não é completa e muitos a tratam, erradamente, como uma linguagem.

Esta língua difere de todas as outras no aspecto, talvez, mais importante das mesmas: não se baseia em palavras. É uma língua de movimentos, de espaço, de expressões, do sentir verdadeiramente aquilo que se quer expressar e “dizer”. É uma língua extremamente rica. No plano da verbalização a LG apresenta a maior parte das características que se encontram nas outras línguas. Segundo António Vieira Ferreira: “Esta atinge a verbalização autêntica das operações intelectuais fundamentais que uma língua autoriza: ela permite julgar, argumentar, demonstrar, refutar e raciocinar” (LQ Gestuário da Língua Gestual Portuguesa).

Os conhecimentos sobre o uso da LG datam de há pelo menos 2000 anos. Neste momento existirão tantas, ou talvez mais, línguas gestuais que faladas, na Europa.

A LG não é internacional. Cada país, ou comunidade, possui uma LG própria, testemunha de uma cultura e modo de vida que é exclusiva dessa mesma comunidade ou país.

Gramática da LG

À semelhança de outras línguas, a LG tem a sua própria sintaxe, a sua organização e sequencialidade de gestos, no espaço e no tempo da sua realização.

Sistema Fonológico

Este sistema estuda as configurações e os movimentos envolvidos na produção dos gestos.
Os principais parâmetros deste sistema são:

  • Configuração de Mão: são as diversas formas que a mão toma na realização de um sinal. Cada forma representa um sinal.
  • Movimento: para que este seja realizado é necessário haver um objecto e um espaço. Na LG a mão do executante representa o objecto, enquanto que o espaço em que o movimento se realiza é a área em torno do executante. O movimento pode ser analisado tendo em conta as variações do movimento das mãos, pulsos e antebraços. O mesmo pode ainda ter várias direcções e ser mais rápido, mais tenso ou mais frouxo.
  • Ponto de Articulação: refere-se ao local do corpo do executante em que o gesto é realizado. Este espaço vai desde o topo da cabeça até à cintura, sendo que alguns são precisos, tais como a ponta do nariz, ou outros mais abrangentes como a frente do toráx.

Sistema Morfológico

Eis algumas considerações quanto ao género, grau, tempo e negação:

  • - O tempo verbal é marcado por um gesto que acompanha o verbo e que lhe atribui um tempo verbal.
  • A indicação do género (feminino/masculino) é feito colocando-se o sinal de mulher ou de homem antes da palavra que se vai gestualizar.
  • O grau dos adjectivos é diferenciado pela intensidade, movimento ou velocidade com que se faz o gesto.
  • A negação é efectuada pela mão ou cabeça, antecedendo a palavra que se quer negar.

Sistema Sintáctico

À semelhança das línguas orais que são especificadas pelo tipo de ordem de palavras a que obedecem, também a LG usa uma ordem de palavras que lhe é específica.
Fazendo uma analogia entre a língua portuguesa (LP) e a LG Portuguesa (LGP), temos:

ex.

LP: A mãe deu o livro
LGP: Mãe livro dar

LP: A mãe deu o livro ao filho
LGP: Mãe filho livro dar

A articulação das frases fica ao cuidado de quem as lê.

O Mundo dos deficientes auditivos

Depois de falar sobre a língua em si, penso que é útil falar sobre aqueles que a usam, e fazem dela a sua língua materna.
A comunidade com deficiências auditivas sempre foi menosprezada e a sua língua nunca foi muito divulgada. No passado os surdos/mudos não eram considerados “pessoas” pela constituição. Logo aqui se vê que a sua dificuldade em se impor na sociedade foi e ainda é difícil. Vivem sempre com o estigma de serem considerados inferiores, de terem um poder cognitivo menor em relação à comunidade falante.

Mas acaba por ser uma ideia errada. Os surdos/mudos têm a sua própria língua e muitos acabam por ter uma segunda língua materna. Esse facto não os impede de participar activamente em actividades culturais ou de outro género. A sua facilidade de expressão facial e corporal pode, em representações, ser muito cativante para quem assiste. Podem igualmente realizar palestras, recorrendo a um intérprete. Nem a música é um obstáculo para uma pessoa surda ou muda. Basta pensarmos em Beethoveen, um grande compositor, que tinha dificuldades de audição. Ele escrevia as suas composições através das vibrações provocadas pelos instrumentos. Compôs muitas músicas com o ouvido encostado ao piano. Mais que ouvir, os surdos/mudos “sentem” verdadeiramente a música e ouvem-na tocando em objectos que estão a reproduzir essas mesmas vibrações.

Mas existe, de facto, uma falta de adaptação do meio ambiente à vida de uma pessoa com dificuldades auditivas. Quantos de nós conseguem comunicar correctamente com uma pessoa surda? Quantos de nós têm dificuldades em ouvir?

Aos poucos vai-se vendo algumas melhorias das condições dessas pessoas. Actualmente existem programas de televisão traduzidos por um intérprete, e software’s que traduzem os gestos em palavras. É de louvar a existência de um programa infantil que é traduzido em directo para LG, permitindo criar assim um espaço lúdico acessível a todas as crianças.

Ao nível do ensino a própria educação acaba por separar a comunidade ouvinte da não ouvinte. A falta de algum material e de professores capazes de auxiliar as crianças surdas/mudas, acaba por dificultar e atrasar o seu desenvolvimento. Actualmente uma criança com dificuldades de comunicação não pode ser educada nem ensinada da mesma forma que as crianças sem dificuldades. Talvez o ensino devesse abordar também a LG. Criar uma segunda língua para todos os ouvintes. Da mesma forma que os surdos têm necessidade de conhecer as duas línguas, também nós, os ouvintes, deveríamos ter esse conhecimento, porque talvez, assim, fosse uma forma de quebrar as barreiras de comunicação existentes na sociedade, independentemente das nossas limitações.

Conclusões

Pretendeu-se com este trabalho dar a conhecer, um pouco, uma língua e cultura que muitos ainda desconhecem. Este trabalho aborda um pouco da história da LG, o que é a LG e de que maneira se destaca das outras línguas, e como é a vida daqueles que a usam. Pelo exposto espera-se ter realçado o quão importante é aceitar-se a LG paralelamente à língua dita normal, para uma melhor vivência em sociedade, pelo respeito total e igual de todos os seres humanos independentemente da sua especificidade, o que será concretizável se todos aqueles que desconhecem a LG desenvolverem o seu interesse para um possível envolvimento nesta língua e em tudo que gira à volta dela.

Agradecimentos

O autor agradece a todos os seus colegas, que o incentivaram e ajudaram na elaboração do artigo, em especial, a Ana Isabel Camelo e a Marisa Canha, alunas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Não podia, igualmente, deixar de agradecer aos docentes da disciplina de “Comunicação e Profissão”, da Licenciatura em Engenharia Informática, por toda a ajuda e conhecimentos dados.

Bibliografia

1. Gestuário da Língua Gestual Portuguesa, 5ª edição, Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência, Lisboa, 2001.

2. Gest, Linguagem e Gesualidade,
http://www.conhecerapoesia.hpg.ig.com.br/linguagem_e_gestualidade.htm

3. Baptista, Prof.ª C.. História,
http://www.apsurdos.pt/historia/linguagestual/lg_historia.html

4. Teixeira, J. C. Como comunicar com surdos e deficientes auditivos,
http://lgp.fl.ul.pt/arquivo/documentos/como_com.htm

5. MJS, Terras da Beira - 30/03/00 - Sociedade - Gestos que falam,
http://www.freipedro.pt/tb/300300/soc3.htm

6. Questões mais frequentes a propósito da Língua Gestual,
http://www.asurdosporto.rcts.pt/faqlgp.html

7. Campos, Prof. M., Costa, Prof. Dr. A., Stumpf, Prof. M. (1996). Sistema de Representação Interna e Externa das Línguas de Sinais.
http://lgp.fl.ul.pt/arquivo/documentos/sistema_ling.htm

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